quarta-feira, 17 de junho de 2020

Brasil do mito revelado


A batalha mascarada

Coube a um ministro, general de Exército da ativa, ocupando o cargo civil e político mais importante desta gestão, abrir uma fresta de luz sobre algo muito grave que ferve no corpo a corpo do interior do governo. Há muito se falava de uma tensão latente pela cisão que o presidente Jair Bolsonaro tenta promover nas Forças Armadas, sem que nenhuma autoridade a admitisse abertamente.

Bolsonaro tem a ascendência constitucional sobre Exército, Marinha e Aeronáutica, e é, portanto, legalmente o comandante supremo. Porém, para fazer particularmente o que deseja deste arsenal, teria de passar por cima de algumas cabeças de bom senso que têm ascendência direta sobre as tropas. Entre seus objetivos não explicitados estaria o de manobrá-las politicamente na guerra pessoal que declarou à República.

Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, o ministro mencionado, deixou nas entrelinhas da sua já célebre entrevista à Veja, semana passada, que a cisão pode estar por trás do intenso trânsito na política dos generais e coronéis da reserva, das três Forças.

Uma excitação desproporcional para quem jura que não vai deflagrar um golpe, revelada na redação de notas, advertências e presença em atos que pregam ruptura. Sem cuidados com a imagem, associam-se aos grupelhos de fanáticos que perambulam pela Esplanada em estado de provocação permanente.

Ramos deu a senha que faltava. Disse que ex-alunos seus estão atualmente no comando de unidades do Exército. “Eles têm tropas nas mãos”, avisou. Ou seja, que fique clara sua ascendência (de Ramos e, portanto, de Bolsonaro) sobre eles (alunos) e elas (tropas). Pode-se inferir que quis, com isso, evidenciar o poder de vencer a resistência dos comandantes a atuar na política.


Não há dúvidas de que armas, munições, incentivo à guerra civil, compõem o mundo bélico construído à volta do presidente e seus filhos, bons alunos de clubes de tiro. Tanto melhor se nele puder contar com os amigos que integram as tropas (armadas) do Exército, os amigos das polícias (armadas) militares, que se somariam aos apoiadores (armados) dos acampamentos e às milícias digitais.

A cisão das Forças Armadas, embutida neste enredo, é a crise das crises entre tantas encomendadas pelo presidente neste ano e meio de governo.

O constrangimento de alguns comandantes revela-se também no seu silêncio diante de tudo que se tem dito em seu nome.

Jair Bolsonaro, desde sempre atuando no informal sindicalismo militar, conquistou a admiração dos quartéis, o voto das famílias militares, o apoio eleitoral de oficiais de patentes variadas. A hierarquia e a disciplina, porém, ainda são valores essenciais para as tropas. Um limite em que se equilibram os comandantes, mas o presidente busca estreitar cada vez mais a relação pessoal e direta.

Aposta na concessão de vantagens financeiras, é fato, uma vez sindicalista, sempre sindicalista. Mas também cultiva amizades, comparece a solenidades, testa seu poder de sedução. Não se vê como poderá desistir de seus planos.

Além da divisão nas estruturas verticais, fica cada vez mais claro o incentivo ao racha entre as três Forças. Da última tentativa concreta teve de recuar sem disfarces: a criação da aviação de asa fixa no Exército. A Aeronáutica, claro, não gostou de perder uma briga antiga numa mísera canetada.

As polícias militares, conquistadas também pelo bolso, onde a disciplina e a hierarquia são valores mais frouxos, integraram-se mais rapidamente ao projeto Bolsonaro. Muitas já lhe devem mais vassalagem do que devem aos governadores. Embora as Forças Armadas olhem com certa desconfiança o movimento do presidente em direção às polícias militares, nada podem fazer quando não podem se distrair e precisam se dedicar, integralmente, à disciplina dos seus. Certamente para não perderem de vez o controle e não terem de ouvir, de um subalterno, que é Bolsonaro que o representa.

Um herói muito atual

Num momento em que militares de alta patente, sob o comando de um capitão desorientado, se envolvem cada vez mais com a política, e nem sempre com moderação, é importante observar essa sábia opinião, de 1956: “O Exército deveria ser o grande mudo da vida nacional”.

Ela é de um eminente marechal e acaba de ser lembrada pelo jornalista Larry Rohter, colunista da revista “Época”, ex-correspondente no Brasil do “New York Times” e autor de “Rondon, uma biografia”.

A frase mais famosa desse patrimônio das Forças Armadas — “Morrer se preciso for; matar nunca” — foi um lema posto à prova em 1957, ao ser atingido por uma flecha envenenada dos índios nhambiquara e salvo pela correia de couro de sua espingarda. A sua reação foi ordenar aos comandados que não revidassem.

No seu livro, Rohter afirma que “Rondon, com sua vigorosa defesa dos povos indígenas e de suas terras, evitou um genocídio”. Ao contrário, o capitão Bolsonaro, quando deputado, lamentou: “pena que a cavalaria brasileira não tenha sido tão eficiente quanto a americana, que exterminou os índios”.

O general e vice-presidente Hamilton Mourão garante que hoje “não tem general fardado metido em política”. Fardado, pode ser. Mas vestido à paisana há pelo menos o caso do general Luiz Eduardo Ramos, ministro-chefe da Secretaria de Governo, que se escondeu para observar uma manifestação contrária. “Fiquei disfarçado no gramado em frente ao Congresso observando o pessoal”, confessou. Ele foi aquele que em entrevista à “Veja” advertiu o “outro lado” a não “esticar a corda”.

Os feitos de Rondon, o Pacificador, o Patrono das Comunicações, não cabem neste espaço. Eis alguns: fundou o Serviço de Proteção ao Índio, percorreu mais de cem mil quilômetros abrindo estradas, foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz pelo The Explorers de NY, teve o seu nome no Livro de Heróis da Pátria e no Panteão da Pátria em Brasília. E muito mais.

Com um personagem como esse à disposição, quem o capitão Jair Bolsonaro escolheu como seu herói? Ninguém menos que o coronel Brilhante Ustra, reconhecido pela Justiça como torturador. Será preciso dizer mais alguma coisa?

Porrada no opressor!

90% dos chargistas no mundo moderno são humanistas. Vejo cada vez menos charges que machucam o oprimido, vejo uma quantidade gigantesca de charges que batem no opressor. Não mudamos o mundo. Quem muda o mundo é o oprimido que foi explorado, espoliado
Aroeira, chargista

O presidente com vocação de ditador exalta a democracia

Tem preço assistir o presidente Jair Bolsonaro a defender-se dizendo que o histórico do seu governo “prova” que ele e sua turma sempre estiveram “ao lado da democracia e da Constituição”? Que “não houve por parte do governo, até agora, nenhuma medida que demonstrasse apreço ao autoritarismo”? E que está sendo “vítima de abusos”? Não, não tem preço.

Tudo isso e um pouco mais ele disse por meio de uma longa nota postada nas redes sociais no fim do dia em que, a pedido da Procuradoria-Geral da República, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, determinou a quebra de sigilo bancário de dez deputados federais e um senador bolsonaristas. Moraes também é relator do inquérito das fake news.

Além de parlamentares, o inquérito tem como alvos o vice-presidente do novo partido de Bolsonaro, o Aliança Pelo Brasil, o marqueteiro do partido e empresários suspeitos de financiar a rede bolsonarista de produção de notícias falsas e manifestações de rua de natureza claramente antidemocráticas. A muitas delas compareceram Bolsonaro e vários dos seus ministros.


Quando se vê em apuros, o presidente da República, que sempre defendeu a ditadura, invoca a seu favor os valores da democracia. “Luto para fazer a minha parte, mas não posso assistir calado enquanto direitos são violados e ideias são perseguidas”, escreveu. Direitos violados de quem? Não disse. Que ideias estão sendo perseguidas? Não disse. Quem viola os direitos? Não disse.

“Fingir naturalidade diante de tudo o que está acontecendo só contribuiria para sua destruição. Nada é mais autoritário do que atentar contra a liberdade de seu próprio povo”, prosseguiu. Sem detalhar “o que está acontecendo”. Sem identificar quem atenta “contra a liberdade” do povo. E ensinou: “É o povo que legitima as instituições, e não o contrário. Isso, sim, é democracia”. Bravo!

O sujeito oculto das admoestações de Bolsonaro é o Supremo Tribunal Federal e demais instâncias da Justiça que, com decisões, põem seu mandato em risco, assim como os mandatos dos seus filhos – um senador, outro vereador, o terceiro deputado federal, todos envolvidos em negócios mal explicados. Foi para garantir o futuro deles que Bolsonaro se candidatou a presidente.

O público a quem se destinou a nota, também oculto, é a base eleitoral que resta a Bolsonaro. Não é pequena e não está se evaporando. Mas já foi muito maior. Os bolsonaristas de raiz, os mais radicais, aqueles que sempre defenderam tudo o que o capitão faz e fala, principalmente esses estão assustados com a inépcia do governo e a situação a que se encontram expostos.

O cerco político e judicial a Bolsonaro e aos seus garotos está se apertando. Na Praça dos Três Poderes, dois canhões apontam para o terceiro andar do Palácio do Planalto onde o presidente despacha. Um é o Congresso. O outro, o Supremo. O cerco a Lula começou com ele presidente e acabou com ele sem mandato e preso. O cerco a Bolsonaro poderá se fechar mais rápido.

Fernando Henrique Cardoso admitiu ter governado o país no seu primeiro mandato à base do gogó. Bolsonaro não tem competência para isso. Lula tinha um partido para chamar de seu e socorrê-lo nas dificuldades. Bolsonaro não tem. O que teve desprezou. O que gostaria de ter foi incapaz de montar até aqui. Corre atrás do prejuízo quando apela para a ratatuia do Congresso.

A carta que joga na mesa à falta de outra, a do apoio militar que poderia resultar em um golpe para favorecê-lo, configura mais um blefe do que uma possibilidade de vitória real. Onde já se viu generais darem um golpe em defesa de um capitão? E em nome do quê dariam? Da democracia ameaçada pelo Supremo e o Congresso? Do uso da cloroquina contra qualquer doença?

Só resta uma saída para Bolsonaro completar o mandato: submeter-se às leis e entender-se com os demais Poderes. Por ora, ele está a caminho do suicídio político, com direito a figurar num pé de página da História.

No rastro do dinheiro

Dificilmente será superada a crise entre o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal (STF). Sobretudo porque não há nenhuma serventia em fazer acordo com os demais poderes da República, pois Bolsonaro acha que o Executivo tem que se sobrepor, e almeja que os outros se imbuam dessa secundariedade para que o deixem trabalhar sem limitações institucionais.

É seu entendimento autoritário do que seja democracia representativa. Vários acordos já foram feitos, pactos firmados, e Bolsonaro continua o mesmo, a ponto de o presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, o mais empenhado nesse pacto de governabilidade, ter desabafado em sua mais recente manifestação, dizendo que não é mais possível aceitar “dubiedades” de Bolsonaro e Mourão.


Outra impossibilidade é o presidente renegar as atitudes insanas dos extremistas que o apoiam. Bolsonaro trata o pessoal do acampamento “300 do Brasil” como a sua base, e as operações da Polícia Federal contra eles, pedidas pelo Procurador-Geral da República Augusto Aras e aprovadas pelo ministro Alexandre de Moraes, são consideradas uma ação direta contra o governo, desnecessária já que os extremistas não são em grande número.

Essa leniência com esses malucos, mesmo que ainda não tenham passado da pirotecnia para atentados reais, só transmite a ideia de que eles têm a complacência do governo, que os considera seus aliados. Os blogueiros das fake news são “a mídia que eu tenho”, confessa Bolsonaro, tornando crível o financiamento oficial dessa máquina de destruir reputações.

O lado do presidente e sua trupe já está determinado por gestos e, principalmente, pela falta de crítica aos ataques ao Supremo Tribunal Federal e ao Congresso. O autoritarismo que esses comportamentos revelam, porém, não passam despercebidos pelos ministros do Supremo, especialmente quando a crítica passa também a ser pessoal, e não apenas às decisões de seus ministros, em termos apropriados a uma relação civilizada. Não é o caso do ataque desclassificado ao decano da Corte, ministro Celso de Mello, por um abaixo assinado de militares da reserva e poucos e desconhecidos civis. Nem dos ataques e ameaças pessoais que esses grupos fazem abertamente pela internet, sem receio de pagar por seus crimes por se sentirem respaldados.

Foi esse estado de coisas que fez com que Celso de Mello, na reunião ontem da segunda Turma do STF, se pronunciasse: “É inconcebível que ainda sobreviva no íntimo do aparelho de Estado brasileiro o resíduo de forte autoritarismo, que insiste em proclamar que poderá desrespeitar, segundo sua própria vontade arbitrária, decisões judiciais”.

Chamando a Suprema Corte de “a sentinela das liberdades”, Celso de Mello disse que é preciso resistir com armas da lei “(...) porque sem juízes independentes, jamais haverá cidadãos livres neste país”.

O comentário foi em resposta à ministra Carmem Lucia, presidente da Segunda Turma, que abriu a sessão com uma defesa da democracia, afirmando: “Somos nós, juízes constitucionais, a quem incumbe o dever de, em última instância judicial, não deixar que o Estado Democrático de Direito se perca, porque todos perderão. Atentados contra instituição, contra juízes e contra cidadãos que pensam diferente volta-se contra todos, contra o país”.

O objetivo do inquérito do STF é conter a propagação de fake news, e os ataques e ameaças aos ministros. É claro para todos que Bolsonaro tem apoio das chamadas milícias digitais. Ele próprio já disse que eles “são a mídia que eu tenho”. Jamais abriu a boca para criticá-los – até para o ministro Weintraub, que disse e repetiu que os vagabundos do Supremo deveriam ir pra cadeia, está procurando uma saída honrosa.

As investigações do STF descobrirão quem financia esses movimentos e se, como tudo indica, já estavam organizados antes da eleição e ajudaram ilegalmente a campanha de Bolsonaro e Mourão. Se ficar provada a conexão dos mesmos grupos durante a campanha, é financiamento ilegal. É um caixa 2 duplamente ilegal, porque agora o dinheiro privado é proibido por fora e por dentro nas campanhas.

Não adianta dizer que não admite julgamentos políticos, como se uma decisão contrária fosse política, e a favor, “justa”. Não há outra alternativa dentro da legalidade a não ser aceitar decisões dos tribunais superiores. Como disse o ministro Luis Roberto Barroso, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a um interlocutor de Bolsonaro que lhe perguntou se o presidente tinha motivos para se preocupar com o julgamento: “ Só se tiver feito alguma coisa errada”.

Merval Pereira

Pensamento do Dia


Tiranias só sobrevivem porque pessoas aceitam o aberrante como normal

1. Foi Hannah Arendt quem popularizou a expressão “banalidade do mal”. Quando estava em Jerusalém, cobrindo para a New Yorker o julgamento de Adolf Eichmann, Arendt concluiu que aquele homem não era o monstro amoral que se poderia imaginar.

Era apenas um funcionário que cumprira ordens sem pensar seriamente no que fazia. Essa explicação de Arendt nunca me convenceu. Motivo simples: Eichmann não era um personagem menor. Era um nazista convicto e um operacional decisivo do Holocausto.

Mas se a análise de Arendt não serve para Eichmann, o que ela nos diz sobre a “banalidade do mal” mantém a sua validade.

Quando falamos do comportamento dos alemães durante o Terceiro Reich, há teses para todos os gostos.

Os alemães colaboraram com o regime (ou, pelo menos, não se opuseram) porque o antissemitismo era endêmico na sociedade.

Os alemães se submeteram a Hitler porque a reverência pela autoridade era um traço de caráter.

Os alemães toleraram a indignidade porque também temiam pelas suas vidas.


Admito que todas essas explicações sejam válidas. Mas a “banalidade do mal”, entendida como ausência de pensamento e de empatia, é a mais poderosa.

Que o diga Brunhilde Pomsel, que só agora conheci. O documentário intitula-se “Uma Vida Alemã” e consiste numa longa entrevista com essa mulher, que na altura das filmagens, em 2016, tinha 104 anos. Acabaria por morrer no ano seguinte.

Entendo o interesse pela personagem: não é todos os dias que encontramos uma das secretárias de Joseph Goebbels, o chefe da propaganda nazista. E que nos tem a dizer Brunhilde com uma clareza impressionante?

De início, ela ensaia as explicações clássicas para a submissão: pais autoritários; educação prussiana; medo da ditadura. E ignorância, muita ignorância sobre assuntos políticos.

Mas, depois, nos momentos de confissão mais sincera, tudo que vemos é a mediocridade do pensamento e da imaginação.

Nas vésperas da derradeira vitória eleitoral dos nazistas, em março de 1933, Brunhilde inscreve-se no partido para conseguir um bom emprego.

Depois, já no Ministério da Propaganda, Brunhilde fala do salário (ótimo), dos colegas (simpáticos), das roupas (elegantes), dos móveis (modernos) e até do próprio Goebbels (sempre bem vestido, apesar de coxear).

Nem o fato de ter uma amiga judia, que lentamente foi desaparecendo da sua vida, é analisado com tempo e seriedade. Sabemos que foi assassinada em Auschwitz, no último ano da guerra, e não se fala mais do assunto.

Dizer que Brunhilde Pomsel representa o mal seria ridículo, até porque a própria, aos 104 anos, reconheceu a desumanidade do regime.

O documentário é importante por outro motivo: as tiranias só sobrevivem porque as pessoas banais aceitam o aberrante como normalidade. Essa falha de pensamento, essa sabotagem da imaginação moral, essa redução da ética à mera conveniência pessoal é o sonho úmido dos tiranos.

Ontem como hoje, confesso que tenho mais medo desses seres banais do que dos monstros propriamente ditos.

2. Minha coluna da passada sexta-feira recebeu incontáveis emails. Metade dos leitores entendeu o ponto, que era essencialmente filosófico, concordando ou discordando.

A outra metade preferiu delirar, como se eu estivesse a defender ações do Exército sobre manifestantes, a beleza da Confederação americana ou a biografia de escravocratas. Como dizia o pai de George Costanza, “serenity now!”.

Repito, mais lentamente, para o pessoal que tem problemas cognitivos: falar em “tolerância liberal” não significa respeitar igualmente todas as opiniões ou obras que existem.

Significa entender que o espaço público deve ser o mais neutro possível para que as vozes do passado e do presente possam coexistir na sua grandeza ou miséria. Uma sociedade adulta aprende com tais grandezas e misérias, até para evitar repetir os mesmos erros.

Isso não significa que um jornal não possa escolher os colunistas que entende, que certas obras de arte não devam ser discutidas ou que certas estátuas não possam ser removidas para um museu ou para um depósito.

Significa, tão só, que a melhor forma de fazer isso não é pela perseguição de hereges, pela remoção censória de filmes e séries ou pela destruição pura e simples de estátuas ou monumentos. Esses são os métodos dos fascistas, não dos democratas.

João Pereira Coutinho

Ilusão de pobre

Ora veja já o senhor este pobre homem quezilento, com mau estômago e maus dentes, e dívidas, que sorte, no talho e no padeiro: julga-se obrigado a ter uma ilusão de vida própria 
José Rodrigues Migueis, " É proibido apontar"

Dois bicudos

Covid-19 e suas causas, padrões de relacionamento entre humanos, uso de recursos naturais, mudanças climáticas e as consequências da quarentena sobre a economia persistem ocupando lugar central na cena mundial. O Brasil, após quatro meses do primeiro óbito, tem 2,7% da população mundial e 10% das mortes. Desproporção que poderia ter sido evitada se o que foi dito, repetido e evidenciado na planície pela Ciência subsidiasse as políticas decididas pelas autoridades no Planalto. Para infortúnio do país, as recomendações de segurança, isolamento e proteção social foram preteridas. É verdade que saúde pública e negócios nunca se bicaram. Saúde da população exige saneamento, ruas iluminadas com calçadas largas e arborizadas, moradias amplas e ventiladas, controle de poluição, acesso a boa nutrição, controle de peso, exercícios físicos e repúdio ao racismo. 

Processos empresariais produzem valor e retornos monetários para indivíduos. Alimentos que causam obesidade, produção de danos ambientais e atividades comerciais e industriais que acentuam desigualdades reduzem as chances de viver mais e bem.


Na fase inicial da pandemia, houve troca de bicadas. Frigoríficos que expuseram trabalhadores ao ar rarefeito empacotando carne se converteram em “covidários”. Empresários sugeriram que os profissionais de saúde pública estavam “politizando” a doença e não conseguiam responder a interrogações sobre o planejamento para o futuro da economia. Depois de experiências malsucedidas de reabertura de atividades, sem critérios sanitários, novas ondas de disseminação e mais mortes evitáveis, os tradicionais adversários se aproximaram. Grandes grupos empresariais contrataram especialistas em saúde pública e anunciaram disposição para ampliar o espectro de ações de segurança para trabalhadores e clientes. 

Companhias aéreas terão que convencer os passageiros de que as viagens serão seguras. Voos demorados, no “novo normal”, talvez fiquem ainda menos prazerosos do que aqueles espremidos nos assentos da classe econômica. Bagagens de mão e refeições tendem a ser proibidas, e não poderá haver filas de espera em banheiros, que disseminam germes. 

Negócios e saúde pública não se beijaram, mas agora compartilham problemas comuns. O setor biofarmacêutico passou a declarar que tem desafios para além da produção de novas vacinas e tratamentos; terá que resolver em conjunto com governos e organizações sem fins lucrativos como propiciar acesso para todos. Consórcios envolvidos com a produção da vacina para Covid-19 anunciam que estão olhando para fora da janela. A velha equação — inovação, risco, patentes e altos retornos financeiros — inclui a perspectiva regulatória que antecipa controle de eficácia, compras, preços e responsabilidade por efeitos adversos. Em maio, o Fórum Econômico Mundial constatou que, para a maioria da população (dois terços), “governos devem salvar o maior número de vidas possível, mesmo que isso signifique que a economia se recuperará mais lentamente”, e registrou alteração nos escores de credibilidade institucional. A confiança na saúde pública é maior do que nas empresas.

Saúde pública é uma ciência do anonimato, salva e preserva milhares de vidas sem que se saiba quem são os profissionais por trás das ações de prevenção e as pessoas beneficiadas. O enfoque populacional tem sido pouco atraente para políticos e doadores, sensíveis a indivíduos com nome e sobrenome doentes e necessidades tangíveis de hospitais e unidades de saúde. O súbito e possivelmente duradouro estrelato — em função de ameaças de outras patologias infecciosas e possibilidades de intervenção sobre doenças crônicas — é promissor. Temos muitos estudantes que precisarão de emprego estável. Mas é preciso advertir que somos confiáveis porque buscamos fundamentos na Ciência. Nossas reflexões autônomas quase sempre desagradam, não atendem solicitações para legitimar atalhos particulares. Manter distância e usar máscara não é autorização para reabrir shopping centers, pelo contrário. 

A saúde pública brasileira tem sido incansável nas tentativas para evitar mortes por Covid-19. Mas não conseguimos convencer o estado-maior do governo de que um general ministro da Saúde, responsável pelo elevado número de mortes na epidemia, passará para a história mais como Pétain do que como Montgomery.
Ligia Bahia

Espanha introduz benefícios sociais para frear aumento da pobreza

Padre Angel sabe que a pobreza na Espanha existia muito antes de a crise do coronavírus atingir o país. Em sua congregação em Madri, ele vem tentando há anos fazer o que o estado não é capaz. Além da Caritas, o Mensajeros de la Paz, do Padre Angel, está entre as muitas organizações do país que distribuem alimentos, prestam aconselhamento pastoral e abrigam os sem-teto.

"Nunca houve tanta pobreza como agora", diz o homem de 83 anos. "Antes da crise do coronavírus, costumávamos distribuir cerca de cem pacotes de café da manhã por semana; agora é a mesma quantidade por dia".

Os números atuais não estão disponíveis, mas um relatório do banco central espanhol de 2018 aponta que a pobreza aumenta desde 2009, principalmente na faixa etária entre 45 a 54 anos. Há mais de 10 anos, 720.000 famílias eram afetadas pela pobreza – nove anos depois, eram 1,2 milhão.


Durante muito tempo, o Estado relutou em introduzir benefícios sociais para os mais vulneráveis. Em 2011, muitas vítimas da crise financeira global e da corrupção na Espanha saíram às ruas para exigir uma ordem econômica mais justa. Isso não aconteceu até que um governo de coalizão de esquerda assumiu o cargo em janeiro, e deu os primeiros passos em direção a mais justiça social.

Embora questionados por muitos espanhóis, a Comissão Europeia é a favor dos benefícios sociais que a Espanha está concedendo, apesar do alto déficit público. Esses benefícios são apenas para pessoas cuja renda anual bruta não excede 16.000 euros (91.000 reais) ou para famílias com quatro membros e uma renda agregada inferior a 45.000 euros anuais.

Cerca de 850.000 famílias devem ter direito a 462 euros mensais (2.600 reais) em benefícios sociais a partir de junho. Cada criança que vive em uma família pobre aumentará o pagamento de benefícios em 130 euros (740 reais) por família afetada.

A igreja de Padre Angel, no centro de Madri, está aberta a pessoas em situação de vulnerabilidade. Lá, pode-se tomar banho, usar a internet e até cortar o cabelo, tudo gratuitamente.

"Queremos devolver alguma dignidade ao maior número possível de pessoas, para que não tenham vergonha de comparecer a uma entrevista de emprego", afirma.

A Espanha tem a segunda maior taxa de desemprego da UE, de 17%, à frente apenas da Grécia. Além disso, estima-se que a economia informal represente 25% do Produto Interno Bruto (PIB) do país – o que evidencia como a economia ainda é ineficiente.

"Ao contrário da crise financeira global de 2008, a pandemia atual também está trazendo famílias de classe média para as filas de sopa", alerta Maria Blanc Fernandez-Cavada, da Caritas em Madri.

"O governo espanhol tem a oportunidade única de mudar para uma economia mais sustentável e tornar nossa rede social mais resiliente", disse o vice-presidente espanhol Pablo Iglesias.

Mas nem todos os necessitados têm ou terão acesso aos benefícios sociais. As estimativas sugerem que há meio milhão de migrantes no país sem autorização de residência e essas pessoas ficam de fora.

A Cruz Vermelha Espanhola (Cruz Roja) calcula que terá que ajudar mais 2,4 milhões de pessoas a lidar com as consequências da pandemia, fornecendo assistência psicológica e material.

Segundo a instituição, mulheres e crianças são as mais afetadas pela pandemia, que deve levar a demissões em massa nos próximos dois meses. Uma das que já sofrem é Carmen Perez - o nome foi alterado para proteger seu anonimato –, de 40 anos.

Perez tem dois filhos, de 9 e 11 anos e é mãe solteira. Ela trabalha em uma agência de comunicações em Madri, onde tem visto uma queda drástica de demanda desde março. Ela precisou aceitar um trabalho temporário e suas economias estão esgotadas.

"Se eles me despedirem, terei que voltar para meus pais", diz. No momento, ela consegue sobreviver porque seu proprietário concordou em reduzir temporariamente seu aluguel em 20%.

"Não tomamos precauções para momentos como estes, os alemães são melhores nisso", afirma Villena, acrescentando que espera que alguma reflexão finalmente se concretize na Espanha, na esteira da atual crise.

Padre Angel, por sua vez, observa que nada é mais importante que o próprio povo: "Isso é o que as 30.000 mortes causadas pelo coronavírus nos mostraram de uma maneira muito dramática".

Graciliano Ramos criou 'manual' do político irônico ao renunciar a prefeitura 90 anos atrás

Com a política tradicional mal avaliada por grande parcela da sociedade, caciques partidários buscam outsiders, de preferência com um discurso de exaltação da ética e do combate à corrupção, para disputar as eleições às prefeituras.

O cenário parece descrever as articulações para a última eleição e a deste ano, mas a estratégia é centenária na política brasileira. Foi assim que, há quase um século, um dos maiores escritores do país chegou à chefia do Executivo de um pequeno município alagoano.

O mandato que marcou o início da vida política de Graciliano Ramos (1892-1953) chegou ao fim há 90 anos. Em 10 de abril de 1930, aquele jornalista —filho de comerciante e depois autor de "Caetés" (1933) e outras referências da literatura— renunciava ao cargo de prefeito de Palmeira dos Índios.


Durante pouco mais de dois anos, deixou como legado dois relatórios de gestão publicados no Diário Oficial de Alagoas, que, fugindo à escrita burocrática e mais se aproximando de sua literatura social, podem ser uma espécie de manual político irônico para os prefeitos dos dias de hoje.

Os relatórios mostram as atitudes do prefeito ao assumir um município sem verba, com quadro de servidores inchado e corrupção sistêmica. Ao menos duas lições são louvadas por gestores que pregam a "nova política": combater o aparelhamento estatal e aumentar a produtividade.

"Dos funcionários que encontrei [...] restam poucos: saíram os que faziam política e os que não faziam coisa nenhuma", escreveu Graciliano, ao fim do primeiro ano de mandato, em relatório publicado em 24 de janeiro de 1929.

O enfrentamento do aparelhamento da máquina pública foi uma das primeiras medidas prometidas pela gestão Jair Bolsonaro em 2019. Então ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni falou, logo após assumir, que era preciso "fazer a despetização do governo".

Outra lição atual de Graciliano: denunciar supostas irregularidades de gestões anteriores. "A prefeitura foi injuriada quando, em 1920, aqui se firmou um contrato para o fornecimento de luz. Apesar de ser negócio referente à claridade, julgo que assinaram às escuras. É um bluff. Pagamos até a luz que a lua nos dá."

Algo que parece não fazer parte da cartilha de hoje, porém, é a modéstia de Graciliano, que dizia que seus erros decorriam da sua inteligência, a qual julgava fraca.

"Convenho em que o dinheiro do povo poderia ser mais útil se estivesse nas mãos, ou nos bolsos, de outro menos incompetente do que eu", relata. "Em todo o caso, transformando-o em pedra, cal, cimento etc., sempre procedo melhor que se o distribuísse com os meus parentes, que necessitam, coitados."

Admitia ainda que havia descontentamento com sua gestão. Escreveu que, se sua permanência no cargo dependesse de um plebiscito, talvez não obtivesse dez votos. "O Município, que esperou dois anos, espera mais um. Mete na Prefeitura um sujeito hábil e vinga-se dizendo de mim cobras e lagartos."

Ao menos uma coisa mudou substancialmente dos tempos de Graciliano, na República Velha, para cá: a fraude eleitoral como regra. O escritor, apoiado pelo então governador de Alagoas, se elegeu em um pleito com candidatura única. A oposição temia que, ainda que ganhasse nas urnas, perderia na apuração.

Mas convencer o então escritor a candidatar-se não foi fácil. Dono de uma loja de tecidos chamada Loja Sincera, ele rejeitava negociatas políticas.

Valdemar de Souza Lima, autor de "Graciliano Ramos em Palmeira dos Índios", explica que o clamor pela candidatura de Graciliano decorria do fato de ele ser um nome de fora da política tradicional. "O município não ia bem, administrativamente falando. Impunha-se uma mudança. O que estava agora na ordem do dia eram as ideias novas."

Outro fator que diferenciava Graciliano diz respeito ao ufanismo, tão em voga hoje. Em uma das publicações, o então prefeito ironiza o apelido de Palmeira dos Índios, conhecida ainda hoje como a Princesa do Sertão. "Uma princesa, vá lá, mas princesa muito nua, muito madraça, muito suja e muito escavacada."

Segundo a professora da UFBA Elizabeth Santos Ramos, especialista na obra do escritor e neta de Graciliano, o estilo da prosa e o tom de denúncia dos relatórios "podem ser observados em vários dos personagens da escrita de ficção do romancista".

"O que fica patente nos relatórios é a ética, a lisura, a consciência com relação ao dinheiro e ao bem públicos. Lamentavelmente, vejo muito pouco disso na política atual", diz a professora à Folha.

O fim da vida política do escritor, no entanto, não se deu com a renúncia à Prefeitura de Palmeira dos Índios. Depois da experiência, ele exerceu outros cargos na administração pública, como o de diretor da Instrução Pública de Alagoas —equivalente a um secretário de Educação.

Em março de 1936, foi preso pelo regime de Getúlio Vargas. Levado de Maceió ao Rio de Janeiro, foi mantido em cárcere por 11 meses e posto em liberdade sem ter sido formalmente acusado de nada nem tampouco julgado.

Em carta endereçada a Getúlio em agosto de 1938, Graciliano questiona os motivos de ter sido preso e enviado para longe de Alagoas.

"Como declarei a V. Ex.a, ignoro as razões por que me tornei indesejável na minha terra. Acho, porém, que lá cometi um erro: encontrei vinte mil crianças nas escolas e em três anos coloquei nelas cinquenta mil, o que produziu celeuma. Os professores ficaram descontentes, creio eu. E o pior é que se matricularam nos grupos da capital muitos negrinhos."

Em 1945, Graciliano filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro, a convite de Luís Carlos Prestes. "O que eu desejava era a morte do capitalismo, o fim da exploração", escreveu em "Memórias do Cárcere".

Apesar disso, o autor, que retratou a miséria brasileira em obras como "São Bernardo" (1934) e "Vidas Secas" (1938), julgava-se um "revolucionário chinfrim". "Se todos os sujeitos perseguidos fizessem como eu, não teria havido uma só revolução no mundo", escreveu. O motivo, segundo o próprio Graciliano, é que suas armas eram fracas: eram de papel.