Todos querem apenas sobreviver. Se analisarmos a história, vamos concluir que o nível de vida do povo baixou a zero. Não de todos. Os que se locupletaram estão lá. Aqueles que os serviram se arranjaram. E todo mundo só quis servir. Foram décadas que derrotaram a civilizaçãoIgnácio de Loyola Brandão
sábado, 11 de setembro de 2021
Povo zerado
A facilidade irresponsável com que o governante daqui atrai e aglutina gente medrosa
O Brasil é o país que mais lincha no mundo, um linchamento ou tentativa de linchamento por dia. Há cerca de 30 anos, quando comecei uma extensa pesquisa sociológica sobre esse grave problema social, a geografia desse crime de multidão mostrava que eram estados de maior incidência de linchamentos a Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro, nessa ordem.
Hoje o centro está deslocado para o Norte, o Amazonas, sobretudo Manaus. A multidão, com facilidade, elege inimigos e os trucida, supondo com isso assegurar sua liberdade e seu modo de ser. Seu medo é juiz e carrasco.
Os linchamentos ocorrem em áreas de ocupação relativamente recente, seja pelo advento de novas populações migrantes, seja pela chegada de novos vizinhos em bairros urbanos. O crime de multidão, no Brasil, é praticado por gente que tem medo. Medo do que é novo, do que é diferente e de quem é diferente. É crime da ordem sem progresso, a da sociedade do medo.
O medo tem muitas causas. Como a exclusão social, crônica no Brasil. Somos uma sociedade alicerçada sobre escravidões, a do índio, a do negro e a dos brancos e mestiços condenados a viver aquém do mínimo próprio da sociedade capitalista. O que se compreende neste nosso capitalismo subdesenvolvido, inconcluso, baseado no ganho fácil e não raro meramente rentista. E, não tão raro, no saque das riquezas nacionais, no patrimônio da pátria e na lesão ao princípio civilizado do bem comum. Nossa pobreza já é a da miséria de condição humana.
O presidente da República, desde o primeiro dia de seu mandato, vem mobilizando, com êxito, essas multidões residuais que têm medo. Os que conseguiram ter mais riqueza do que a que pode ser moralmente justificada, os que ganharam facilmente nas brechas do capitalismo frágil e ultrapassado em que o lucro vem mais da esperteza do que da competência empresarial.
Vem mais das brechas do próprio poder ainda capturado mais pelo oligarquismo da política brasileira do que da consciência democrática dos direitos individuais comprometidos com o bem comum e a concepção de pátria. Gente cuja pátria está reduzida à cueca verde e amarela. Gente que tem pavor da ética possível e necessária que acabará motivando a insurgência cívica dos verdadeiros cidadãos.
O presidente da República tem medo, medo da verdade própria da política e da democracia. Comete um erro que dele fará grande vítima do equívoco que comete todos os dias. O erro é o de convocar as multidões para dar-lhe o raivoso apoio de que julga carecer para sustentar-se no poder e na concepção autoritária e antidemocrática de poder que o inspira.
É que a multidão não tem caráter. Diferente do cidadão e da pessoa, que são entidades íntegras das sociedades modernas, a multidão é apenas sujeito da desordem, da baderna destrutiva.
Os mais de 2 mil linchamentos que estudei, analisados em meu livro “Linchamentos - a justiça popular no Brasil”, confirmaram a tese de Gustave Le Bon, que, no século XIX, estudou pela primeira vez de modo sistemático o comportamento de multidão.
A multidão é o sujeito social da loucura coletiva. Essa loucura é gradativa. A multidão se transforma ao longo de seus atos. Vai do senso comum ignorante, motivado por um fato real ou suposto, até a loucura coletiva, cúmplice do louco que a simboliza. O nazismo e o fascismo foram isso.
Não é estranho que consignas nazistas apareçam aqui em ideias como “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Deus nunca está acima de todos. Ele pode estar na alma de todos que a têm no lugar da sublime concepção do divino e do sagrado.
A convocação das multidões anômalas no Dia da Pátria e em eventos anteriores para peitar nas ruas a Constituição e aqueles que, em nome dela, foram designados pela história para cumpri-la e fazê-la cumprir, coloca no centro do acontecer político essa personagem enlouquecida da sociedade moderna.
Esse louco coletivo tem gerado líderes loucos, como Hitler, Mussolini, Trump no período recente e todos que o copiam e imitam. A multidão é uma entidade social de dois gumes. Danton e Robespierre, que mobilizaram multidões, acabaram perdendo a cabeça na guilhotina.
A facilidade irresponsável com que o governante daqui atrai e aglutina gente medrosa é notória tanto em suas bravatas quanto nas bravatas dos que são por ele atraídos.
A era de Bolsonaro será conhecida como a era do medo. Não só por conta da pandemia, coadjuvante satânica, filha da falta de responsabilidade social que há muito tomou conta do Estado brasileiro. Mas também da crônica enfermidade social da insegurança que cada vez mais tomou conta do país e já corroeu os fundamentos identitários do caráter nacional brasileiro. Estamos à beira do abismo da história.
Hoje o centro está deslocado para o Norte, o Amazonas, sobretudo Manaus. A multidão, com facilidade, elege inimigos e os trucida, supondo com isso assegurar sua liberdade e seu modo de ser. Seu medo é juiz e carrasco.
Os linchamentos ocorrem em áreas de ocupação relativamente recente, seja pelo advento de novas populações migrantes, seja pela chegada de novos vizinhos em bairros urbanos. O crime de multidão, no Brasil, é praticado por gente que tem medo. Medo do que é novo, do que é diferente e de quem é diferente. É crime da ordem sem progresso, a da sociedade do medo.
O medo tem muitas causas. Como a exclusão social, crônica no Brasil. Somos uma sociedade alicerçada sobre escravidões, a do índio, a do negro e a dos brancos e mestiços condenados a viver aquém do mínimo próprio da sociedade capitalista. O que se compreende neste nosso capitalismo subdesenvolvido, inconcluso, baseado no ganho fácil e não raro meramente rentista. E, não tão raro, no saque das riquezas nacionais, no patrimônio da pátria e na lesão ao princípio civilizado do bem comum. Nossa pobreza já é a da miséria de condição humana.
O presidente da República, desde o primeiro dia de seu mandato, vem mobilizando, com êxito, essas multidões residuais que têm medo. Os que conseguiram ter mais riqueza do que a que pode ser moralmente justificada, os que ganharam facilmente nas brechas do capitalismo frágil e ultrapassado em que o lucro vem mais da esperteza do que da competência empresarial.
Vem mais das brechas do próprio poder ainda capturado mais pelo oligarquismo da política brasileira do que da consciência democrática dos direitos individuais comprometidos com o bem comum e a concepção de pátria. Gente cuja pátria está reduzida à cueca verde e amarela. Gente que tem pavor da ética possível e necessária que acabará motivando a insurgência cívica dos verdadeiros cidadãos.
O presidente da República tem medo, medo da verdade própria da política e da democracia. Comete um erro que dele fará grande vítima do equívoco que comete todos os dias. O erro é o de convocar as multidões para dar-lhe o raivoso apoio de que julga carecer para sustentar-se no poder e na concepção autoritária e antidemocrática de poder que o inspira.
É que a multidão não tem caráter. Diferente do cidadão e da pessoa, que são entidades íntegras das sociedades modernas, a multidão é apenas sujeito da desordem, da baderna destrutiva.
Os mais de 2 mil linchamentos que estudei, analisados em meu livro “Linchamentos - a justiça popular no Brasil”, confirmaram a tese de Gustave Le Bon, que, no século XIX, estudou pela primeira vez de modo sistemático o comportamento de multidão.
A multidão é o sujeito social da loucura coletiva. Essa loucura é gradativa. A multidão se transforma ao longo de seus atos. Vai do senso comum ignorante, motivado por um fato real ou suposto, até a loucura coletiva, cúmplice do louco que a simboliza. O nazismo e o fascismo foram isso.
Não é estranho que consignas nazistas apareçam aqui em ideias como “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Deus nunca está acima de todos. Ele pode estar na alma de todos que a têm no lugar da sublime concepção do divino e do sagrado.
A convocação das multidões anômalas no Dia da Pátria e em eventos anteriores para peitar nas ruas a Constituição e aqueles que, em nome dela, foram designados pela história para cumpri-la e fazê-la cumprir, coloca no centro do acontecer político essa personagem enlouquecida da sociedade moderna.
Esse louco coletivo tem gerado líderes loucos, como Hitler, Mussolini, Trump no período recente e todos que o copiam e imitam. A multidão é uma entidade social de dois gumes. Danton e Robespierre, que mobilizaram multidões, acabaram perdendo a cabeça na guilhotina.
A facilidade irresponsável com que o governante daqui atrai e aglutina gente medrosa é notória tanto em suas bravatas quanto nas bravatas dos que são por ele atraídos.
A era de Bolsonaro será conhecida como a era do medo. Não só por conta da pandemia, coadjuvante satânica, filha da falta de responsabilidade social que há muito tomou conta do Estado brasileiro. Mas também da crônica enfermidade social da insegurança que cada vez mais tomou conta do país e já corroeu os fundamentos identitários do caráter nacional brasileiro. Estamos à beira do abismo da história.
Barbacena, a cidade-manicômio que sobreviveu à morte atroz de 60.000 brasileiros
Quando João Bosco Siqueira completou 45 anos, seus colegas do corpo militar de bombeiros lhe deram algo de valor inestimável: localizar sua mãe. Aquela desconhecida era a chave das origens para este brasileiro que nasceu em um manicômio e cresceu em um orfanato. Missão cumprida. O abraço que dona Geralda e o filho arrebatado tanto desejavam aconteceu no dia 11 de novembro de 2011 em um quartel diante do olhar emocionado de dezenas de uniformizados. Um ponto final nas vidas de ambos. Geralda tinha 15 anos quando deu à luz no Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais, a 500 quilômetros de São Paulo. Seu patrão, um advogado, levou-a até lá para evitar o escândalo depois de estuprá-la e engravidá-la, conta Siqueira em uma entrevista por videochamada. A dor de relembrar o drama é tanta que para várias vezes para conter o choro e tomar ar antes de continuar seu relato. Antes e depois dela, dezenas de milhares de brasileiros foram abandonados em hospícios de Barbacena, que ficou conhecida como a cidade dos loucos.
A maioria dos internos, como Geralda, eram sãos. Eram alcoólatras, sifilíticos, prostitutas, homossexuais, epiléticos, mães solteiras, esposas substituídas por uma amante, inconformistas... supostas escórias sociais que suas famílias ou a polícia enviavam em trens a esta cidade de Minas Gerais. Cerca de 60.000 internos morreram de fome, frio ou diarreia durante nove décadas até o fechamento nos anos noventa. Viviam mal, nus, forçados a trabalhar como suposta terapia em pátios na intempérie ou em celas.
A ansiedade que o confinamento da pandemia causou a milhões de pessoas em todo o mundo reacendeu o debate sobre a saúde mental e o estigma que ainda a cerca. Um segredo que ídolos como a ginasta Simone Biles ou a tenista Naomi Osaka ajudam a romper ao falarem de seus problemas mentais.
Barbacena chama atenção porque, em vez de enterrar a infâmia perpetrada em nome da psiquiatria, as autoridades concordaram em olhá-la de frente. Transformaram um dos pavilhões do Colônia no Museu da Loucura, que agora completa 25 anos, aniversário que junto com uma série trouxe o assunto de volta à atualidade. E, em sintonia com o movimento internacional de humanização dos cuidados aos doentes mentais, a partir do ano 2000 empreenderam uma mudança transcendental.
Esta cidade que vivia de hospitais psiquiátricos e do cultivo de rosas substituiu aqueles depósitos indesejáveis por residências terapêuticas. “Até então não havia limite. Entrava todo aquele que aparecia na porta. Começamos a avaliá-los um a um e a maioria não precisava ser internada. As internações caíram de 130 por mês para 30”, explica Flávia Vasques, coordenadora da rede pública de saúde mental desta cidade de 140.000 habitantes, durante entrevista em um ambulatório.
O museu é um percurso pelas atrocidades sofridas por milhares de pacientes, algumas em consonância com práticas internacionais. “Escolheram chamá-lo de Museu da Loucura para despertar o interesse do público e por não se referir apenas a uma história local, mas por ser uma referência para analisar o passado, preservá-lo e não repeti-lo”, explica a diretora do museu, Lucimar Pereira, enquanto guia a visita.
Aproveitando o clima de montanha, nasceu como sanatório para ricos, com telefone e talheres de prata, mas em 1903 tornou-se o primeiro manicômio de Minas Gerais, que centralizou em Barbacena o atendimento psiquiátrico neste Estado que tem a mesma área da Espanha.
O Colônia era um manicômio com cemitério, evidência de que curar não era a missão. Durante décadas não houve médicos ou enfermeiras, mas meros guardas. O tratamento era simples: comprimidos azuis ou rosas em função dos sintomas, além de eletrochoques e lobotomia, como mandava então a medicina.
Quando faltou espaço para dormir, os burocratas adotaram uma solução batizada de leito único que recomendaram estender a outros centros: fora com as camas, eliminadas. Sem elas, cabiam mais pacientes. Os internos dormiam amontoados no chão para se aquecer nas noites frias. Alguns morriam sufocados. Muitas vezes os sãos enlouqueciam. E nem mesmo depois de mortos tiveram piedade deles. Os cadáveres de mais de 1.800 pacientes foram vendidos para universidades até os anos setenta. O resto era levado em um carrinho até o cemitério para ser jogado em valas comuns. O cemitério ainda está lá, fechado, mas uma placa promete um dia transformá-lo em um memorial que combinará rosas e loucura. Eram alimentados com purês putrefatos porque baniram os talheres —em nome da segurança—, de modo que depois de décadas sem mastigar muitos perderam os dentes.
“Hoje estive em um campo de concentração nazista. Em nenhum lugar vi algo assim”, declarou depois de visitar o Colônia em 1979 o psiquiatra Franco Basaglia, promotor da reforma dos manicômios na Itália. Jornalistas locais fizeram as primeiras denúncias públicas nas décadas de sessenta e setenta. Suas fotos e relatos causaram espanto, mas logo caíram no esquecimento. A jornalista Daniela Arbex era adulta quando ouviu falar pela primeira vez do atroz episódio da história local. “Fui procurar os sobreviventes. E graças a eles consegui resgatar o que acontecia atrás das paredes”, explica por telefone a autora do livro Holocausto Brasileiro, publicado em 2019. Um best-seller que contribuiu para divulgar um horror de que muitos brasileiros nunca ouviram falar. Ela insiste que todos foram cúmplices: os médicos, as famílias, os moradores, a sociedade em geral.
Siqueira conta na cidade onde passa o confinamento com a família que sua mãe, dona Geralda, ainda mora em Barbacena. Eles se viam todo mês até que o coronavírus perturbou tudo. O bombeiro se irrita com o fato de que alguns moradores acreditem que divulgar as atrocidades prejudica a reputação local. Para ele é o melhor antídoto para evitar que ninguém mais seja tratado de maneira tão desumana. “Apesar de ter nascido na barbárie, sou fruto de uma rede de solidariedade”, insiste, referindo-se às freiras e outros adultos dos orfanatos, que o guiaram quando era adolescente e invejava aqueles que recebiam alguma visita.
Bento Marcio da Silva sempre teve família. Mas passou metade de seus 57 anos entrando e saindo de hospitais psiquiátricos, incluindo o Colônia. Fala com naturalidade de sua doença —”sou bipolar”— e da batalha para que os psiquiatras mudassem a medicação que durante 15 anos lhe causou terríveis efeitos colaterais. Ele conta entre risadas que em seus momentos de euforia cantava, cantava, cantava e cantava sem descanso. A resposta? “Eles me amarravam em uma maca, me davam injeções aqui, aqui, aqui e aqui, e me mantinham ali o dia todo. Acabava totalmente encharcado de urina e fluidos. ‘Se me derem Aldol, vou perder o juízo’, lhes dizia, mas insistiam”, conta. Ninguém o escutava então. Durante anos vagou pelas estradas do Brasil para evitar que o encerrassem novamente. “Cheguei a ter uma barba tão longa que me chamavam de Bin Laden”, diz. Uma imagem que contrasta com sua esmerada elegância atual.
Silva mora em uma residência terapêutica que na terça-feira estava em festa porque Zezé, um dos sete pacientes, completava 60 anos. É emocionante ver esses homens abandonados e degradados durante tantos anos concentrados em segurar os talheres para levar à boca um pedaço de bolo ou um copo de Coca-Cola sem cafeína. No êxtase da alegria, Zezé ri tão alto que desloca a dentadura. Com suas muitas sequelas, parecem imensamente felizes enquanto cantam “parabéns para você”. Não têm mais medo dos desconhecidos nem de sair na rua. E os moradores da cidade também não os temem, explica Leandra Melo Vidal, coordenadora das 27 residências espalhadas por Barbacena, que conhece detalhadamente as histórias de cada um. Eles a adoram.
Mediante programas financiados pelo sistema de saúde pública, deixaram para trás uma vida em hospitais psiquiátricos desumanos para viverem a velhice juntos e com dignidade. Existem legalmente, recebem uma pensão. O processo de esvaziamento dos hospitais continua. Os 85 pacientes crônicos que ainda estão internados serão distribuídos pelos municípios vizinhos devido à saturação de Barbacena.
Quando Geralda tinha quinze anos e protestava desconsolada que seu bebê havia sido roubado, era tratada com eletrochoques. “Chorar e protestar não vai adiantar nada, você não vai voltar a vê-lo”, avisaram-na então. O bombeiro Siqueira, que lhe deu dois netos, fica feliz por ela não ter feridas mais graves: “Deus foi generoso com a minha mãe, que é uma mulher simples, porque se ela tivesse consciência da violência que sofreu teria enlouquecido”.
A maioria dos internos, como Geralda, eram sãos. Eram alcoólatras, sifilíticos, prostitutas, homossexuais, epiléticos, mães solteiras, esposas substituídas por uma amante, inconformistas... supostas escórias sociais que suas famílias ou a polícia enviavam em trens a esta cidade de Minas Gerais. Cerca de 60.000 internos morreram de fome, frio ou diarreia durante nove décadas até o fechamento nos anos noventa. Viviam mal, nus, forçados a trabalhar como suposta terapia em pátios na intempérie ou em celas.
A ansiedade que o confinamento da pandemia causou a milhões de pessoas em todo o mundo reacendeu o debate sobre a saúde mental e o estigma que ainda a cerca. Um segredo que ídolos como a ginasta Simone Biles ou a tenista Naomi Osaka ajudam a romper ao falarem de seus problemas mentais.
Barbacena chama atenção porque, em vez de enterrar a infâmia perpetrada em nome da psiquiatria, as autoridades concordaram em olhá-la de frente. Transformaram um dos pavilhões do Colônia no Museu da Loucura, que agora completa 25 anos, aniversário que junto com uma série trouxe o assunto de volta à atualidade. E, em sintonia com o movimento internacional de humanização dos cuidados aos doentes mentais, a partir do ano 2000 empreenderam uma mudança transcendental.
Esta cidade que vivia de hospitais psiquiátricos e do cultivo de rosas substituiu aqueles depósitos indesejáveis por residências terapêuticas. “Até então não havia limite. Entrava todo aquele que aparecia na porta. Começamos a avaliá-los um a um e a maioria não precisava ser internada. As internações caíram de 130 por mês para 30”, explica Flávia Vasques, coordenadora da rede pública de saúde mental desta cidade de 140.000 habitantes, durante entrevista em um ambulatório.
O museu é um percurso pelas atrocidades sofridas por milhares de pacientes, algumas em consonância com práticas internacionais. “Escolheram chamá-lo de Museu da Loucura para despertar o interesse do público e por não se referir apenas a uma história local, mas por ser uma referência para analisar o passado, preservá-lo e não repeti-lo”, explica a diretora do museu, Lucimar Pereira, enquanto guia a visita.
Aproveitando o clima de montanha, nasceu como sanatório para ricos, com telefone e talheres de prata, mas em 1903 tornou-se o primeiro manicômio de Minas Gerais, que centralizou em Barbacena o atendimento psiquiátrico neste Estado que tem a mesma área da Espanha.
O Colônia era um manicômio com cemitério, evidência de que curar não era a missão. Durante décadas não houve médicos ou enfermeiras, mas meros guardas. O tratamento era simples: comprimidos azuis ou rosas em função dos sintomas, além de eletrochoques e lobotomia, como mandava então a medicina.
Quando faltou espaço para dormir, os burocratas adotaram uma solução batizada de leito único que recomendaram estender a outros centros: fora com as camas, eliminadas. Sem elas, cabiam mais pacientes. Os internos dormiam amontoados no chão para se aquecer nas noites frias. Alguns morriam sufocados. Muitas vezes os sãos enlouqueciam. E nem mesmo depois de mortos tiveram piedade deles. Os cadáveres de mais de 1.800 pacientes foram vendidos para universidades até os anos setenta. O resto era levado em um carrinho até o cemitério para ser jogado em valas comuns. O cemitério ainda está lá, fechado, mas uma placa promete um dia transformá-lo em um memorial que combinará rosas e loucura. Eram alimentados com purês putrefatos porque baniram os talheres —em nome da segurança—, de modo que depois de décadas sem mastigar muitos perderam os dentes.
“Hoje estive em um campo de concentração nazista. Em nenhum lugar vi algo assim”, declarou depois de visitar o Colônia em 1979 o psiquiatra Franco Basaglia, promotor da reforma dos manicômios na Itália. Jornalistas locais fizeram as primeiras denúncias públicas nas décadas de sessenta e setenta. Suas fotos e relatos causaram espanto, mas logo caíram no esquecimento. A jornalista Daniela Arbex era adulta quando ouviu falar pela primeira vez do atroz episódio da história local. “Fui procurar os sobreviventes. E graças a eles consegui resgatar o que acontecia atrás das paredes”, explica por telefone a autora do livro Holocausto Brasileiro, publicado em 2019. Um best-seller que contribuiu para divulgar um horror de que muitos brasileiros nunca ouviram falar. Ela insiste que todos foram cúmplices: os médicos, as famílias, os moradores, a sociedade em geral.
Siqueira conta na cidade onde passa o confinamento com a família que sua mãe, dona Geralda, ainda mora em Barbacena. Eles se viam todo mês até que o coronavírus perturbou tudo. O bombeiro se irrita com o fato de que alguns moradores acreditem que divulgar as atrocidades prejudica a reputação local. Para ele é o melhor antídoto para evitar que ninguém mais seja tratado de maneira tão desumana. “Apesar de ter nascido na barbárie, sou fruto de uma rede de solidariedade”, insiste, referindo-se às freiras e outros adultos dos orfanatos, que o guiaram quando era adolescente e invejava aqueles que recebiam alguma visita.
Bento Marcio da Silva sempre teve família. Mas passou metade de seus 57 anos entrando e saindo de hospitais psiquiátricos, incluindo o Colônia. Fala com naturalidade de sua doença —”sou bipolar”— e da batalha para que os psiquiatras mudassem a medicação que durante 15 anos lhe causou terríveis efeitos colaterais. Ele conta entre risadas que em seus momentos de euforia cantava, cantava, cantava e cantava sem descanso. A resposta? “Eles me amarravam em uma maca, me davam injeções aqui, aqui, aqui e aqui, e me mantinham ali o dia todo. Acabava totalmente encharcado de urina e fluidos. ‘Se me derem Aldol, vou perder o juízo’, lhes dizia, mas insistiam”, conta. Ninguém o escutava então. Durante anos vagou pelas estradas do Brasil para evitar que o encerrassem novamente. “Cheguei a ter uma barba tão longa que me chamavam de Bin Laden”, diz. Uma imagem que contrasta com sua esmerada elegância atual.
Silva mora em uma residência terapêutica que na terça-feira estava em festa porque Zezé, um dos sete pacientes, completava 60 anos. É emocionante ver esses homens abandonados e degradados durante tantos anos concentrados em segurar os talheres para levar à boca um pedaço de bolo ou um copo de Coca-Cola sem cafeína. No êxtase da alegria, Zezé ri tão alto que desloca a dentadura. Com suas muitas sequelas, parecem imensamente felizes enquanto cantam “parabéns para você”. Não têm mais medo dos desconhecidos nem de sair na rua. E os moradores da cidade também não os temem, explica Leandra Melo Vidal, coordenadora das 27 residências espalhadas por Barbacena, que conhece detalhadamente as histórias de cada um. Eles a adoram.
Alguns dos sobreviventes são muito dependentes, mas a mudança experimentada por outros é impressionante. “Com a reabilitação, foram recuperando capacidades humanas como escolher”, decidir quando tomar banho ou que roupa vestir. Foi difícil para eles abandonar as rotinas dos anos intramuros ou assumir que podiam acumular pertences, comer à vontade. No início, os terapeutas acreditaram que alguns eram mudos porque ficaram sem pronunciar uma palavra durante 50 anos —”talvez para se proteger”, arrisca Vidal—, até que um dia recuperaram a fala.
Mediante programas financiados pelo sistema de saúde pública, deixaram para trás uma vida em hospitais psiquiátricos desumanos para viverem a velhice juntos e com dignidade. Existem legalmente, recebem uma pensão. O processo de esvaziamento dos hospitais continua. Os 85 pacientes crônicos que ainda estão internados serão distribuídos pelos municípios vizinhos devido à saturação de Barbacena.
Quando Geralda tinha quinze anos e protestava desconsolada que seu bebê havia sido roubado, era tratada com eletrochoques. “Chorar e protestar não vai adiantar nada, você não vai voltar a vê-lo”, avisaram-na então. O bombeiro Siqueira, que lhe deu dois netos, fica feliz por ela não ter feridas mais graves: “Deus foi generoso com a minha mãe, que é uma mulher simples, porque se ela tivesse consciência da violência que sofreu teria enlouquecido”.
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