segunda-feira, 17 de outubro de 2022

O Brasil e o Mito da Caverna

Parte significativa da sociedade brasileira parece ter sido capturada pelo obscurantismo de maneira que a indolência tem conseguido se sobrepor à busca pela verdade. Por mais aterrorizantes, contundentes e ameaçadores que sejam os fatos e as declarações, na maioria das vezes a retórica e a apatia têm prevalecido diante de versões e desmentidos que não se sustentam nem se justificam.

Coisa que lembra —e reveste de atualidade perturbadora— um dos textos filosóficos mais conhecidos da humanidade: O Mito da Caverna ou a Caverna de Platão. A metáfora criada pelo filósofo grego pode ser entendida como uma crítica a quem aceita tudo o que é posto pelo grupo dominante sem questionar a realidade. A filosofia, segundo autores clássicos, é o "amor pela sabedoria, experimentado apenas pelo ser humano consciente de sua própria ignorância".


Considerando que a verdade muitas vezes é dolorosa, até dá para entender certos comportamentos das massas num ambiente dominado pela pós-verdade. O que não dá é para aceitar placidamente o apoio e a complacência de algumas instituições e de setores ditos esclarecidos. Temos acompanhado a falta de compromisso público com direitos constitucionais como a vida, a saúde, a educação, a cultura, a alimentação, a segurança, a moradia —que vêm sendo tratados sem a devida diligência.

O que dizer das acusações infundadas acerca da higidez do processo eletrônico de votação? Das contestações sem embasamento científico para desacreditar as vacinas em plena pandemia? Ou da intolerância religiosa, das violações ao meio ambiente, da violência exacerbada, da insensibilidade em relação aos milhares que morreram de Covid-19, da indiferença com a fome, do descaso com o racismo?

O brasileiro está diante da oportunidade de deixar a caverna. Resta saber se por medo, indiferença, egoísmo, preconceito ou ignorância (tal qual os prisioneiros do Mito de Platão) vai optar por permanecer nas sombras.

Alegria, ódio, medo

Um presidente da República em busca da reeleição, que precisa do socorro de um coach preferencialmente amoral, sinaliza o quê? Seu estado de pavor das urnas. Todas as pesquisas de opinião que Jair Bolsonaro gostaria de excomungar teimam em apontá-lo como provável/possível derrotado no segundo turno. Daí o recurso emergencial. Foi com semblante bastante desgrenhado que ele participou de uma live em que havia uma segunda estrela. Era Pablo Marçal, o deputado federal do PROS que obteve quase 250 mil votos no primeiro turno. Apresentado pelo presidente como seu coach particular, Marçal elencou uma série de instruções dirigidas a influenciadores e devotos, a ser seguidas até a reta final. Alguns trechos do que não deveria ter ido ao ar acabaram vazando.

Primeiro, o recurso ao medo de quem tem o que esconder:

—As pessoas vão bater em todos que se levantarem para defender o presidente. Vai ser um por um. Vão revirar a vida de todo mundo... — alertou o coach.

Marçal também engatou numa inevitável menção ao perigo de um apocalipse:

—Vocês estão sendo convocados por mim... É convocação. Pra gente um dia não precisar pegar em arma, pra um dia a gente não ficar louco, pra querer o país de volta...

E para a eventualidade de algum agitador bolsonarista alimentar resquícios de pruridos, garantiu absolvição prévia:

—Este não é o momento para ficar olhando para moral... Não é melhor nesses próximos 15 dias todo mundo suspender a própria reputação para defender esta nação? Colocar sua reputação um pouquinho de lado?

Participaram dessa tertúlia pouco cristã a deputada federal Carla Zambelli, o meteoro mineiro Nikolas Ferreira, o filho Zero Um Flávio Bolsonaro e o ex-secretário de Governo Fabio Wajngarten, cujas reputação, decência e moral há tempos situam-se abaixo de qualquer suspeita.


O medo tem cheiro, cravou a gloriosa romancista Margaret Atwood em 1972. Mas há vários tipos de medo. Um deles — subserviente, acomodado, acovardado à força —foi descrito em histórica carta do dramaturgo tcheco Vaclav Havel ao então secretário-geral do Partido Comunista de seu país, sete anos depois de os tanques soviéticos entrarem em Praga e enterrarem a efêmera primavera democrática que ali se instalara. A carta endereçada ao “Prezado Dr. Husak” desmontava em pedacinhos o discurso oficial de que a nação estava unida e pacificada:

— Comecemos por uma pergunta básica e obrigatória — escreveu Havel — Por que a população age de maneira a formar um impressionante retrato de uma sociedade em total união, que apoia seu governo de forma irrestrita? Para qualquer observador isento, a resposta é evidente: as pessoas estão movidas pelo medo.

Na carta, Havel detalha uma dezena de motivos comezinhos para os tchecos terem se moldado ao regime imposto ao país. Ele esclarece não mais se tratar do medo físico de ser preso, torturado, executado ou deportado, como no início da ocupação. O que o alarmava era a população que vestia a máscara de cidadão confiante, satisfeito, escondendo de si mesma uma percepção coletiva de algum perigo permanente e onipresente. Um medo pouco consciente até de mudança, mesmo que fosse para melhor — todo mundo sempre tem algo a perder, e algo a temer. Esse medo difuso, apontou o dissidente ao “Dr. Husak”, explicava a aparência de uniformidade, disciplina e unanimidade do seu regime e Estado policial. Mas algum dia chegaria ao fim esse apoio, ora amedrontado, ora oportunista, ao governo de “homens sem princípios nem espinha dorsal, dispostos a qualquer ato para manter o poder e privilégios”, escreveu o dramaturgo, sem temor. A História demorou 14 anos para lhe dar razão: no dia 29 de dezembro de 1989, Vaclav Havel tornou-se o primeiro presidente da Tchecoslováquia.

Histórias de resistência democrática têm repique vigoroso no país entrevado de hoje. O desempenho do candidato do Partido dos Trabalhadores, Luiz Inácio Lula da Silva, nas pesquisas sugere que o Brasil democrático de 2022 não pretende esperar 14 anos para interromper a cavalgada autoritária — quatro anos lhe bastam. Por seu lado, o cardápio bolsonarista de incivilidade contém ativos poderosos, por perversos: o ódio como propulsor da ideologia, o escracho como forma de diálogo, a violência como meio de comunicação, a manipulação política da fé.

Por sorte, nada assusta mais o ódio e o medo de mudança do que a alegria da esperança. Alegria e democracia rimam. De qualquer ângulo que se olhe a disputa dos presidenciáveis — nas ruas, postagens, no humor, nos próprios candidatos —, a campanha por um Brasil mais democrático tem veio alegre, enquanto a do adversário tem o peso de uma cruzada messiânica. Certeza mesmo, apenas uma: nenhum dos dois Brasis será eliminado em 30 de outubro.

Quem usa fake news para ferir acaba morto pela verdade

Gostou do título? Também gostei, mas não estou convencido do triunfo final da verdade. É mais desejo do que certeza.

Há fake news que não resistem a uma verificação rápida, mas há outras capazes de prevalecer sobre a verdade por séculos.

Há quatro anos, Bolsonaro saiu na frente no uso da internet para disseminar notícias falsas. A esquerda foi surpreendida.

Ele e sua turma ainda estão anos adiantados no uso da internet e na criação de mentiras, mas a esquerda avançou muitas casas.

Na madrugada de sábado, em live com caráter de urgência, Bolsonaro disse que foi vítima de uma fake news “que ultrapassou todos os limites”.

Segundo ele, a esquerda acusou-o de ser pedófilo. E só porque ele disse que adolescentes venezuelanas viviam em má situação.

Em entrevista ao canal “Paparazzo Rubro-Negro”, Bolsonaro contou que avistou meninas e que “pintou um clima” entre eles.

Foi nas vizinhanças de Brasília, quando ele passeava de moto. Sem tirar nem pôr, segue o que Bolsonaro afirmou ao canal:

“Eu parei a moto numa esquina, tirei o capacete e olhei umas menininhas, três, quatro, bonitas, de 14, 15 anos, arrumadinhas num sábado numa comunidade. E vi que eram meio parecidas. Pintou um clima, voltei. ‘Posso entrar na sua casa?’ Entrei. Tinham umas 15, 20 meninas sábado de manhã se arrumando. Todas venezuelanas. E eu pergunto: meninas bonitinhas de 14, 15 anos se arrumando no sábado para que? Ganhar a vida.”

Gabriel Chalita, escritor paulista e político que nunca foi de esquerda, escreveu a propósito no Twitter:

“É normal um presidente da República ou homem adulto dizer que pediu pra entrar na casa de uma criança de 14 anos após ter ‘pintado um clima’ entre eles? É criminoso. É asqueroso.”

Rachel Sheherazade, jornalista, ex-âncora de jornais no SBT e na Jovem Pan, que nunca foi de esquerda, escreveu:

“Sujeito sessentão andando de moto pela periferia encontra menor de 14 anos, sente ‘um clima’, entra na casa dela, encontra outras menores em situação de risco e vulnerabilidade. Podendo e devendo denunciar a situação, não o faz. Que nome dar a esse senhor?”

Marina Silva, deputada federal recém-eleita pela Rede, duas vezes candidata a presidente da República, escreveu:

“A linguagem e a visão expressa por Bolsonaro diante de meninas venezuelanas refugiadas expõem a impostura de uma pessoa despreparada política, ética e socialmente para exercer a função de presidente da República.”

Ex-senador pelo Distrito Federal, ex-candidato a presidente da República, o professor e escritor Cristovam Buarque escreveu:

“Um dia, Bolsonaro disse que comeria carne humana, hoje que pintou um clima dele com meninas de 14 anos e ele foi à casa delas. Até quando temos de aguentar um candidato tão desqualificado?”

E a cantora Zélia Duncan:

“Como alguém pode querer como presidente um homem bem maduro que para de moto numa esquina, tira o capacete e faz clima com crianças que julga serem prostitutas, menores de idade!?”

Um político de esquerda, o ex-governador do Maranhão Flávio Dino (PSB), acusou diretamente Bolsonaro de ser pedófilo:

“Pintou um clima com uma menina de 14 anos? Um sujeito de quase 70 anos? Pediu para entrar na casa da menina! Esse que é o defensor da ‘família tradicional’? Esse sujeito, a cada dia, se supera no seu comportamento abjeto. Não podemos ter um pedófilo na presidência da República”.

Dino será colega no Senado de Flávio Bolsonaro (PL-RJ), que correu a defender o pai:

“É completamente abominável a mais nova mentira da esquerda! Pegou uma fala mal colocada do presidente para lhe imputar uma fake news nojenta! Um pai com uma filha e duas netas!”

“Uma fala mal colocada”. Tomara que tenha sido só isso. Mas Bolsonaro admitiu que “pintou um clima” entre ele e as meninas. Que clima? Clima de quê?

E não disse o que fez depois para retirá-las da condição de prostitutas infantis. Um presidente responsável e humano teria feito alguma coisa.

Como um presidente responsável e humano teria visitado durante a pandemia famílias que perderam parentes para a Covid-19. Ele jamais visitou. E ainda imitou quem morria asfixiado.

“Uma fala mal colocada”, é só disso que se trata, observou Flávio.

Uma frase de Lula pega pela metade foi usada, ontem, no programa de Bolsonaro na tv para insinuar que Lula celebrou a chegada ao Brasil do vírus que matou quase 700 mil pessoas.

Em Teresina, Piauí, Bolsonaro disse no sábado que Lula quer para o Brasil “banheiro unissex, liberação das drogas, aborto e invasões de terras”. Lula nunca disse isso.
Ricardo Noblat