domingo, 30 de outubro de 2022

Brasil em decisão

 


Estupidez é arma, e mata

A estupidez seria má conselheira, segundo ditado português. Há quatro anos neste mesmo período, a estupidez espumava com dentes arreganhados, para quem não seguia seu pensamento infame. Fosse quem fosse, votasse até mesmo em azarão ou optasse pelo voto nulo ou a abstenção, merecia a mesma infâmia de não ser patriota. 

A demolição sistemática do país, das instituições e mesmo de órgãos de reconhecimento internacional, incrementou a estupidez nacional, agora infiltrada em outros rincões nunca antes atingidos. 

Enterrados as centenas de milhares de mortos pela Covid, não há um resquício de respeito àqueles que sofreram e morreram em nome da estupidez. Continuam milhões a espumarem o ódio sem olhar a quem. É a hora do assédio constante no melhor estilo do autoritarismo a impor-se sobre tudo e todos.

O país está atolado na mediocridade, que os "arrependidos" tanto impulsionaram, os calados deixaram pra lá e a cambada dos canalhas ainda ovaciona. 

Independente do que aconteça neste domingo, e nos dias subsequentes, há uma certeza que serve de lição: a estupidez mata e destrói uma nação sem ficar pedra sobre pedra. 

Os quatro anos de estupidez, se não houver recaída, fizeram uma estrago que não está contabilizado em moeda. Seria o de menos, estes últimos anos abalaram a estrutura social e emocional das pessoas a partir do momento que a bandeira de todos foi sequestrada pela estupidez. 

A Alemanha sabe muito bem o quanto custou para domar a estupidez nazista. O Brasil ainda precisa aprender mais sobre sobre essa face do autoritarismo que divide em torcida para 
melhor dominar.

Luiz Gadelha

Duro opositor do PT, médico torturado por Ustra declara voto em Lula

O médico Gilberto Natalini, de 70 anos, foi preso 18 vezes durante a ditadura militar. Sua primeira prisão, em 1972, foi a que mais a marcou. Foram 42 dias detido no temido Doi-Codi de São Paulo, comandado pelo oficial Carlos Alberto Brilhante Ustra, quem o recebeu naquelas instalações.

Natalini relata que foi torturado diretamente por Ustra, quem via todos esses dias. Então com 18 anos, o médico era naquele ano estudante de medicina. Levou choques elétricos nos ouvidos, que comprometeram sua audição até hoje. Gostaria de ter sido cardiologista, mas a dificuldade em ouvir as captações do estetoscópio o impediu.

Os dois – Ustra e Natalini – se reencontraram 41 anos depois, quando prestaram depoimento na Comissão Nacional da Verdade, em Brasília, em 10 de maio de 2013. O militar disse que impediu a instalação do comunismo no Brasil, que lutou contra o terrorismo e que nunca matou ou torturou alguém.

“Cumpri todas as ordens. Ordens legais. Nunca, como se diz, ocultei cadáver, cometi assassinato. Vou em frente nem que morra assim. Lutei, lutei e lutei. E tenho dito” – declarou Ustra naquele dia.

Presente no auditório, Natalini deu um testemunho antes e confirmou ter sido vítima de Ustra. A certa altura, o então presidente da comissão, Cláudio Fonteles, perguntou a Ustra uma acareção com Natalini. Ele recusou.

“Não faço acareação com terrorista”.

E se iniciou um bate-boca entre eles.

“O senhor que é bandido”.

Passados todos esses anos, Natalini, que foi do PCdoB, ajudou a fundar o PSDB. Depois, se filiou ao PV. Nunca morreu de amores, de quem é crítico ferrenho. Foi vereador por cinco mandatos e sempre de oposição a gestões petistas. Mas, agora, anunciou voto em Lula. Será a segunda vez que vota num petista. A primeira vez foi também em Lula, em 1989.

“Vou relevar tudo que fizeram para evitar o mal maior”.


O senhor anunciou agora que irá votar no Lula, partido que sempre se opôs, apesar de tudo. Qual a razão?

Sou muito crítico ao PT. Vi o PT nascer, eu era PCdoB. Tivemos uma guerra com o PT no início, que veio tomando o lugar dos comunistas. Disputou muito com a gente, do partidão. Disputa quase até física. Até João Amazonas (fundador do partido) criticou o PT. E depois aderiu. O PCdoB aderiu ao PT. Depois, saí. Fiz muita oposição na Câmara ao PT. Nunca votei no PT. Exceção em 1989, contra o Collor. Sou um crítico contundente do PT. Em 2018 anulei meu voto no segundo turno. Fiz oposição ao Haddad na Prefeitura.

O que o sr. critica no PT?

O PT não tinha o direito de fazer o que fizeram. Vieram empurrando todo mundo. Fui secretário de saúde de Diadema (SP), logo após uma gestão do PT. Para ter ideia, apagaram todos os dados dos computadores da secretaria. Simplesmente isso.

Não seria natural um ex-perseguido e torturado pela ditadura votar em Lula?

É um engano isso. Nem todos perseguidos votam no Lula. A turma da esquerda velha de guerra morreu toda de fome. O João Amazonas, tiveram que fazer vaquinha para comprar o seu caixão. Prestes, Brizola. A turma tinham muito princípio e moralidade imensa. Aquela esquerda não era demagógica. Por isso eu critico do PT. Tomou a bandeira da esquerda, só que os princípios não preservaram. Tem coisas graves do PT no trato da coisa pública.

Mas agora irá votar em Lula.

Em 1989, votei contra o Collor. Agora, vou relevar minhas críticas ao PT, que não vou esquecer jamais. Sei o que vocês fizeram no verão passado, como se diz. Estamos diante de uma ameaça brutal a democracia, que é o Bolsonaro. Eu vou me compor com essa frente democrática. Tenho pedido voto para o Lula nas redes. Só não participo de reuniões. Não sou baba ovo. Meu apoio a Lula é pela democracia, pela defesa do meio ambiente, uma causa cara para mim. Meu voto foi muito sofrido para ele conquistar.

Mas em 2018, não votou em Haddad? Bolsonaro tinha elogiado Ustra.

Em 2018, não conseguia votar em Bolsonaro por causa do Ustra. Fui torturado diretamente por ele. Choque elétrico. Me torturou em 1972, no Doi-Codi, na Oban, em São Paulo. Jamais votaria nessa direita incivilizada e cruel. No Haddad, não conseguia porque fui oposição a ele na Câmara. Mas dessa vez, não dá. Bolsonaro é truculento, armamentista. Não posso me omitir quem tem Ustra como ídolo. Está em jogo a sorte do meu país. Vou fazer um esforço enorme, passar por cima do que tenho contra o petismo e vou votar no Lula. E estou recomendando na minha família.

Pode comentar um pouco de sua perseguição e prisão na ditadura?

Fui 18 vezes preso. Na primeira vez, foram 45 dias lá no Doi-Codi. Interrogado e torturado pelo Ustra. O via todo dia. Me deu choque, ficou horas com o pedaço de pau à minha frente. Eu tinha 18 anos, era estudante de medicina. Eu nunca dei um tiro em ninguém. Nunca dei uma facada. Sou da disputa política, não da luta armada. Mas, mesmo que eu tivesse pego em armas, depois que você prende uma pessoa, a desarma e submete um ser humano adversário na cadeia não pode, pelas leis de guerra, torturar. É muito ignóbil. Ele era um expert em tortura. Depois, fui preso pelo Dops. Minha última prisão foi no governo Sarney, em 1985, após uma manifestação. Fiz o enterro do Sarney. Fiquei horas preso, mas era uma prisão mais para constrangimento. Já estava começando a abertura. Tenho 70 aos e sigo estribuchando na luta. Só vou parar quando parar de respirar.

Como foi reencontrá-lo 40 anos depois?

Não foi fácil. O enfrentei e ele se negou a fazer uma acareação. Disse que não faria acareação com terrorista. O chamei de mentiroso na sua frente e de bandido e torturador. O pessoal da Comissão da Verdade, depois do embate, me ofereceu ir num carro da Polícia Federal até o aeroporto e que um delegado me acompanhasse até entrar no avião. Dispensei. Enfrentei o Ustra quando comandante do Doi-Codi.

A tortura deixou o sr. com sequelas.

Sim. Fiquei com uma lesão auditiva, perda nos dois ouvidos. Foi choque elétrico. Ustra rodava a manivela da máquina. Um fio era chamado de pimentão, choques de 250 volts. O outro, era o pimentinha, de 100 volts. Tive cada um deles nos meus ouvidos. Uma dor indescritível. Queria ser cardiologista, mas, pelas lesões, não conseguia ouvir os sopros cardíacos com o estetoscópio. Quem tem Ustra como ídolo se afastou da raça humana.

Os evangélicos contra-atacam com ‘Messias’

Na época da ditadura militar, um censor, furibundo com alguns diálogos de uma peça teatral, convocou o autor a dar explicações. Por razões conhecidas, Shakespeare não pôde comparecer. Nestes tempos michelenescos, o afável arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer, se viu obrigado a explicar por que usa vestes vermelhas. O inquisidor ouviu algo mais ou menos assim:

“É a cor dos cardeais, meu filho”, e no Twitter, dom Odilo cravou: “Conheço bastante a História. Às vezes, parece-me reviver os tempos da ascensão ao poder dos regimes totalitários, especialmente o fascismo. É preciso ter muita calma e discernimento nesta hora!”

Dom Leonardo Steiner, arcebispo de Manaus, buscou inspiração em trecho de “Irmãos Karamazov”, de Dostoiévski, para cravar sua incredulidade diante da terra arrasada pelo Bolsolão: “Quem mente a si mesmo e escuta as próprias mentiras chega ao ponto de já não poder distinguir a verdade dentro de si mesmo”.


É possível que algum eleitor de Damares ou um pastor que prega nos cultos contra os homossexuais venha a chamar os Karamazov de comunistas, mas, vá lá, é da vida: o chefe deles já disse que -5% + 4% são 9% positivos. Perdoai-o, mas com Oscar Wilde na cabeça:

“Os loucos às vezes se curam; os imbecis, nunca”.

Desde a redemocratização, pela primeira vez a Igreja Católica, trazida à vida terrena, se vê às voltas com laivos autoritários. Na ditadura militar não ocorreu; mas no regime nazista aconteceu algo semelhante às cenas de 12 de outubro. No dia de Nossa Senhora Aparecida, a milícia bolsonarista perseguiu padres em Aparecida , vaiou a homilia da missa principal, gritou palavrões e ainda fez brindes com latas de cerveja dentro da igreja.

A turba ensandecida saiu das redes sociais, incensada pelos pastores bolsonaristas, e, inspirada pelo desamor exalado por seu capitão, agora se comporta como milícia armada —e mira o contingente de fiéis católicos.

Ali pelo século IV e V, os protocristãos, perseguidos pela ignorância e pelo ódio, eram jogados aos leões, em espécie de sádico prazer.

O sadismo se manifesta diante do infortúnio alheio — por exemplo, imitar alguém sufocado pela Covid-19. Ou na descrição libidinosa, detalhada e colorida, com brilho nos olhos, de crianças com dentes arrancados para fazer sexo oral. O prazer doentio se revela nas interjeições.

A milícia atual vigia, e ameaça e caça, conceitos vagos ditados por uma sombra escura de inclemência e ressentimento. Reagem, à semelhança dos ratos de Pavlov, quando explodem em seus ouvidos palavras como miséria, fraternidade ou empatia. Por desconhecerem o Evangelho, atacam os padres durante os sermões. E destroem imagens de santos. E correm atrás de quem veste batina.

As palavras de Cristo, em ensinamentos gravados na Bíblia, são ouvidas agora como acintes da esquerda. A turba esquece que Jesus Cristo acabou crucificado por seu tom solidário e generoso, verdadeiro incômodo ao poder da época: “Não roubarás; não matarás”; e, sentiram as meninas venezuelanas, “não desejarás a mulher do próximo”.

O problema de quem vaiou a catequese no Santuário de Aparecida é ter lido apenas a orelha dos Evangelhos e/ou acreditar na má-fé dos pastores bolsonaristas, religiosamente incultos e ideologicamente comprometidos. O cristianismo (como filosofia) nasceu em meio ao descalabro da escravidão, da pobreza brutal e da miséria civilizacional —pedofilia, satanismo, matanças entre os clãs, abuso de poder.

Demorou para a Igreja Católica ser enredada e reagir, de maneira ainda capenga, à instrumentalização da fé religiosa como base partidária. Os cães bolsonaristas há tempos vociferam a postura intolerante de jogar os adversários aos leões. É a mesma toada da turba romana.

Os ataques às homilias e aos padres em diversas igrejas Brasil afora ocorrem quando ecoam os ensinamentos contra a violência, a intolerância e a mentira. De novo, Dom Leonardo Steiner: “Usar a religião como ameaça a fim de angariar voto tem cheiro de imoralidade”.

O manejo descarado e argentário da religião, se no momento atiçou parte da cúpula católica brasileira, obrigada a reagir ao retrocesso civilizacional (“quero todo mundo armado”), agora gera mobilização entre as denominações não embolsadas.

Desde dias atrás, o projeto de poder messiânico de Michelle e Damares é desafiado dentro de seu quintal, encarnado pelo hit gospel “Messias”, cantado por Leonardo Gonçalves, entre os maiores sucessos no YouTube. Vale muito ouvir. A letra deve azedar as manhãs delas: E tudo isso por causa de política/Por causa de um falso pânico moral/Promovido pelos donos de igreja/Que tiveram o perdão de uma dívida /De 1,4 bilhões de reais/Decretado pelo presidente da República (…)/A gente tem fome e sede de justiça.

Para os religiosos independentes, tem nome e endereço o satanás.

O sétimo círculo do inferno

Nada é mais perigoso do que uma ideia quando não se tem outras. Isso soa clichê, mas resume à perfeição o programa de governo atual: a ideia fixa da violência armada. Para essa questão social, potencializada pela triplicação da posse de armas no país, é fraquíssima a oposição do discurso progressista. Talvez porque seja fraca a percepção democrática da diferença entre força e violência. Vale uma mirada etimológica: a origem da palavra ("vis") traduz as duas noções.

Não há sociedade que prescinda da força, nem história social de que esteja ausente a violência, seja como condição ou como ato. É disruptiva tanto coletivamente, em caso de guerra, quanto individualmente, como anomia. Na Divina Comédia, Dante reserva aos violentos o vale do Flegetonte, o sétimo círculo do inferno. A modernidade tenta proteger-se com o monopólio estatal do fenômeno.


Mas os cidadãos temem primeiro os atos e não o pouco visível estado de violência, por mais que uma sociedade estruturalmente desigual esteja sempre afeta a atos de anomia. De fato, a iniquidade econômica e política dá sempre margem a ciclos expansivos da violência.

Entre nós, uma política preventiva deveria começar desmistificando a imagem romantizada do país. O escravismo e o patriarcalismo adestraram as elites na negação das diferenças pelo extermínio puro e simples. Atávicos nas formas coletivas de consciência, esses fenômenos fossilizados respondem até hoje pela naturalização de práticas violentas contra a gente mais pobre.

Individualmente, violência ou desmedida da força é o ovo da serpente entocada no mesmo terreno do diálogo. É o espaço também marcado por vetores sociais anacrônicos, como a suposta ascendência física do homem sobre a mulher. Um mito desmentido pela própria tecnologia dos corpos: força muscular jamais foi a fonte real de poder. Sem diálogo, ao ver contrariada a perspectiva mítica de seu domínio, a contraparte masculina, movida por fúria patriarcal-narcísica, resvala para a violência. Em ricos e pobres, violência é linguagem sem palavras, expressão envenenada da miséria humana.

Violência organizada, porém, é estratégia coletiva de poder, aliás, o único ponto inequívoco do desgoverno federal. A farra das armas, que inflama o estado de violência com surtos agressivos, é a cara sem máscara do terror. Colecionador, praticamente um miliciano incubado, é uma intimidação latente. Mafializou-se a vida social desde o Norte até o Sudeste, que perde território para milícia e tráfico. O elevado potencial de guerra urbana é a mais vexatória ameaça à sociedade civil. Com o Estado caindo de quatro frente ao crime, a política de violência armada é a própria autonegação do Brasil republicano.

'Nacionalismo cristão se tornou uma ideologia política'

Durante o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL), a diplomacia brasileira se empenhou para inserir o Brasil em uma aliança global de extrema direita, com um viés cristão ultraconservador.

Os movimentos feitos nesse sentido chamaram pouca atenção no Brasil, mas foram acompanhados com muita preocupação pelo teólogo Ronilso Pacheco, professor assistente do Departamento de Filosofia na Universidade de Oklahoma, nos Estados Unidos.

"Enquanto a gente brincava com o Eduardo Bolsonaro falando inglês e fritando hambúrguer nos EUA, almejando ser embaixador em Washington, ele já tinha construído relações com o submundo da extrema direita internacional", comenta Pacheco, que é pastor licenciado de uma comunidade batista em São Gonçalo (RJ).

O pesquisador chegou aos EUA interessado em estudar a Teologia Negra. Ao se debruçar sobre o funcionamento da supremacia branca no país, chegou ao tema do nacionalismo cristão, que se fortaleceu em diferentes países nos últimos anos. Trata-se de um movimento internacional que atua politicamente para defender que as sociedades sejam orientadas pelos valores cristãos.

"Essa ideia de que o Cristianismo deve orientar a vida social está completamente presente no Brasil, assimilada com um projeto de poder, um projeto político no qual Bolsonaro se tornou um rosto importante", afirma Pacheco.


A eleição de Donald Trump nos EUA, em 2016, foi decisiva para o fortalecimento de uma rede internacional do conservadorismo cristão. Com o governo de Viktor Orbán na Hungria, o movimento ganhou tentáculos na Europa. E, nos últimos anos, passou a ter o Brasil como protagonista.

Em entrevista à DW Brasil, Pacheco acredita que, caso o projeto de Bolsonaro seja derrotado nas urnas, as cenas vistas em Washington após a derrota de Trump não deverão se repetir, em um primeiro momento. No entanto, o pesquisador alerta para a escalada de pressões antidemocráticas nos próximos anos.

"Se o Bolsonaro perde, nossos olhos se voltam para o Parlamento. A base bolsonarista continua muito forte. Ele teve mais de 50 milhões de votos, e vamos ter que lidar com esse fato durante muito tempo. Para 50 milhões de brasileiros, esse projeto de país está bom e deve continuar como está", constata.

Como o fenômeno evangélico brasileiro se insere na teia global do nacionalismo cristão?

Ronilso Pacheco: No histórico da igreja evangélica no Brasil, essa conexão internacional, mais especificamente com os EUA, sempre existiu. Ela está um pouco no DNA da formação evangélica brasileira e mais especificamente no DNA da formação conservadora, desde que a igreja chegou no Brasil. Há uma ligação muito forte com o conservadorismo evangélico americano, a direita religiosa, que surge no final dos anos 1970, nos EUA, e tem uma influência muito forte no Brasil.

A extrema direita evangélica no Brasil não mantém conexões só com os EUA. Ela está ligada a esse conservadorismo também em alguns países da América Latina e, em especial, da Europa. Esse bloco do nacionalismo cristão tem uma nova fase a partir da eleição de Donald Trump, em 2016. As conexões das articulações dessa extrema direita configuraram muito mais do que uma perspectiva teológica de interpretação bíblica. Tornou-se, de fato, uma ideologia política.

Como esse movimento político e religioso internacional se manifesta no Brasil?

Em uma definição geral, o nacionalismo cristão é definido, sobretudo aqui nos EUA, como um conjunto de símbolos, mitos, tradições, culturas, um conjunto de sistemas de valores que, no final, exerce um advocacy de que a sociedade deve ser orientada pelos valores cristãos, ou que deve haver uma fusão entre a vida social e os valores cristãos. Essa ideia de que o Cristianismo deve orientar a vida social está completamente presente no Brasil, assimilada com um projeto de poder, um projeto político no qual Bolsonaro se tornou um rosto importante.

Como ele assumiu esse papel, sendo católico de origem?

Ele é o primeiro candidato, o primeiro homem público que assume abertamente um compromisso com uma maioria do país, cristã. A despeito do Estado laico, ele é um cristão conservador, que vai governar sob essa perspectiva, e que defende uma supremacia cristã em todos os aspectos. O ex-chanceler Ernesto Araújo dizia em alto e bom tom, no Brasil e fora, que uma das suas missões era recuperar os valores do Cristianismo ocidental, tanto no Brasil quanto nas suas relações internacionais.

É essa perspectiva religiosa, cristã, conservadora, de domínio, que traça diversas gramáticas e narrativas para fazer o enfrentamento político no Brasil, como a ideia de uma ameaça de uma guerra cultural, que envolveria a usurpação e a eliminação dos valores cristãos da sociedade. Nisso está o nacionalismo cristão: é uma compreensão de país e de sociedade que só se entende razoável se ela se submete ao reconhecimento da orientação social dos valores cristãos conservadores.

Como se deu a construção internacional dessa rede de países alinhados ao nacionalismo cristão?

Uma vez que Trump chega na Casa Branca, torna-se o grande fiador desse movimento, nos EUA e internacionalmente. Como presidente dos EUA, ele traz esse movimento da direita religiosa junto com ele, inclusive recuperando movimentos de supremacia branca que estavam significativamente mais silenciados ao longo de alguns governos republicanos e durante o governo Obama.

Em outro polo, o Viktor Orbán conseguiu dar um rosto simpático para a extrema direita na Hungria. Sobretudo com a Katalin Novak, que dá uma nova narrativa para a extrema direita. Ela tira o foco dos embates diretos com pautas principais, como a questão da comunidade LGBTQIA+, ou da imigração, e foca na pauta da família. Tudo gira em torno da preservação da família, tida como fundamental para preservar o país e manter sua identidade. Essa nova forma abordagem da extrema direita, que a Novak conduz muito bem com a gestão do Orbán, vai gradativamente se tornando um farol para muitos governos e projetos de extrema direita.

É um trabalho muito bem-sucedido. Eles montaram, a partir da Hungria, a Rede Política por Valores, que era presidida por Novak. Ela saiu do cargo para se tornar presidente da Hungria. O atual presidente dessa rede é o ex-candidato derrotado na eleição presidencial do Chile, José Antonio Kast. É uma rede muito forte, articulada em um discurso de defesa da democracia, dos valores da família e dos direitos humanos – sem aparência autoritária. É uma nova gramática dessa extrema direita.

Como o Brasil e sua diplomacia se inseriram nessa rede?

O Brasil é reconhecido como um país que se tornou protagonista. Nós fizemos tantas caricaturas de Bolsonaro e sua família, assim como da ex-ministra Damares, que a gente não levou a sério como eles conseguiram construir essa rede. Enquanto brincávamos com o Eduardo Bolsonaro falando inglês e fritando hambúrguer nos EUA, almejando ser embaixador em Washington, ele já tinha construído relações com o submundo da extrema direita internacional – politicamente, de forma oficial, e em um mundo subterrâneo, virtual, que a gente não fazia ideia.

Ele estava vindo quase todos os meses aos EUA para fazer conexões com ideólogos políticos da ultradireita virtual, que hoje tem um papel importante de suporte a Bolsonaro dentro e fora do Brasil. Isso passou sempre despercebido. Em 2019, a Damares participou da Cúpula de Demografia em Budapeste, e isso não foi citado em lugar nenhum. O Brasil entrou na Aliança Internacional pela Liberdade Religiosa, o que não gerou nenhum debate significativo sobre as implicações disso.

Essa articulação foi sendo construída gradativamente, desde que Bolsonaro chegou. Em seu governo, a política externa foi caótica, sem nenhum avanço significativo. Mas, todos os esforços para inserir o Brasil dentro de uma aliança global de extrema direita, sob uma perspectiva cristã ultraconservadora, foram tranquilamente feitos.

Como essa articulação pode ser impactada pela eleição deste domingo?

Se o Bolsonaro perde, nossos olhos se voltam para o Parlamento. A base bolsonarista continua muito forte. Ele teve mais de 50 milhões de votos, e vamos ter que lidar com esse fato durante muito tempo. Para 50 milhões de brasileiros, esse projeto de país está bom e deve continuar como está. Eu não acredito em uma reação do nível do Capitólio, até porque as instituições estão levando isso cada vez mais a sério. Acredito em um ou outro movimento de negação, de questionamento em relação a resultados, mas não acredito que aconteça algo dessa dimensão. O que não significa que nós vamos ter menos trabalho com relação a ataques sistemáticos à democracia e às instituições democráticas. Eles podem ser até piores no caso brasileiro.

Em uma eventual vitória, eu acho que só Deus sabe, honestamente. Há uma tendência global: um governo autocrático nesse nível, quando reeleito, está muito mais legitimado a ser muito mais autocrático do que no primeiro mandato. Ele teria um Parlamento muito mais forte, vai buscar colocar em prática tudo que dissimulou quando foi tensionado – seja suas relações com as instituições, como o STF, mas também a imposição de políticas e programas orientados por esse Cristianismo ultraconservador.

É possível reverter a influência que esses grupos conquistaram na política brasileira?

De 2018 para cá, foi construído um nível de narrativa, de mentalidade, difícil de desconstruir agora. Nós estamos vivenciando o efeito de algo que foi sutilmente construído desde o governo Lula, que vem se arrastando, que tem uma contribuição muito forte da classe média e da mídia. Eles mesmos estão tentando reverter em um ano o nível de espaço que eles deram a esses grupos em mais de uma década. É muito difícil.

Eu falei que não adianta conversar com os evangélicos no início do segundo turno para criticar uma estratégia falha dos movimentos de esquerda e progressistas de dialogar com os evangélicos sempre com a corda no pescoço: na última hora das eleições, em uma necessidade de virada de jogo. Não adianta imaginar que esse convencimento de última hora vai acontecer e nós vamos salvar a democracia brasileira.

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Nos rastros da utopia

Se as coisas são inatingíveis...ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos se não fora
A mágica presença das estrelas!
Mário Quintana


Eram os últimos dias de 1969 e, nas conversas em Lima, discutíamos a herança que recebêramos dos “anos rebeldes”. A década de 60 se iniciara com um exército murando a liberdade de Berlím, mas terminara com três astronautas abrindo os caminhos do universo. Naqueles anos, o mundo comovera-se com a mensagem de paz e de amor, na imagem sacrificada de Martin Luther King, e conhecera o real significado da resistência, na figura irretocável de Ho Chi Minh. A revolta de Nanterre mobilizara os estudantes do mundo inteiro e, ao longo do continente, aportávamos em 1970 na crista de uma poderosa onda libertária, cujas espumas espraiavam o exemplo de Che Guevara. Vivíamos num tempo sem liberalismo e sem globalização e Cuba surgia como uma alternativa socialista e referência da luta revolucionária. O mundo era uma alquimia de ideias e a América Latina seu melhor laboratório. A nova história, no contexto continental, era a de uma só nação, de um só povo, latino e “indo-americano” -- na expressão de Mariátegui. A esperança era uma bandeira hasteada no coração de todos os que ousavam sonhar com uma sociedade justa e fraterna, fossem eles um guerrilheiro, um intelectual engajado ou integrasse uma vanguarda estudantil. Nossa ancestralidade cultural – manchada pela violência colonial e por tantos mártires na memória sangrenta de cinco séculos – era redescoberta como uma fonte trazendo novas águas para interpretar a história. Nossos sonhos navegavam no misterioso veleiro do tempo, enfunado pelos ventos da fé revolucionária, carregado de hinos e canções libertárias, levando a mãe-terra e as sementes para os deserdados, carregado com as emoções e o encanto da solidariedade e rumando à sociedade que sonhávamos.

Nós, os poetas, expressávamo-nos pelos líricos rastros dessa ansiada utopia, cantando as primícias de um novo mundo e pressentindo as luzes daquele imenso amanhecer. Transitávamos na rota das estrelas, em busca de um porto no horizonte, em busca de um homem novo, de uma terra prometida a ser entrevista nos primeiros clarões da madrugada. Havia uma perseverante certeza no amanhã e muitos caíram lutando com essa crença tatuada na alma, embora os sobreviventes nunca tenham chegado a contemplar essa alvorada.



Nos anos 60, ser jovem significava estar comprometido com uma fé, com uma causa social e, naqueles passos da história, era um desconforto, perante o grupo, não ter um engajamento político e, pior ainda, ser de “direita”. Na juventude daqueles anos, ser um “reacionário” era um estigma. Essa era a palavra com que nós, da “esquerda”, desfazíamos ideologicamente os adversários da “direita” e até os dogmáticos do Partidão,[1] por quem éramos chamados de revisionistas. Por outro lado, falava-se de um “Poder Jovem”. Mas que “poder jovem” era aquele, maquiado com a credibilidade das filosofias orientais se esse poder não estivesse comprometido com o significado social da liberdade e da justiça? A ideologia marxista não nos permitia confundir os ideais inconsequentes da contracultura com o ideário daqueles que estavam dispostos a dar a vida pela construção de uma nova sociedade. Era como se houvesse, na América Latina, duas Mecas para a juventude: uma em Berkeley e outra em Cuba.

Se a palavra “esquerda”, perante as benesses do poder, foi perdendo sua transparência ideológica, é imprescindível não se perder o significado histórico dessa dicotomia, já que na sua origem, durante a Revolução Francesa, o clero e a nobreza ficavam à direita do rei e os representantes do povo à sua esquerda. Passados duzentos e vinte anos, todos sabemos qual o lado que continua defendendo as causas sociais. Os princípios são intocáveis mas não as ideias. É razoável, portanto, que possamos ressignificá-las redefinindo as cores de nossa antiga bandeira, assim como reconhecer os equívocos e os defeitos congênitos da própria “esquerda”.

Os anos 60, ricos pela geração de novas teses sociais, por filosofias que apontavam para o progresso das relações humanas, não mostrariam, no gosto amargo dos frutos, o doce sabor semeado pela esperança. Os grandes sonhos políticos foram desmobilizados por interesses ideológicos equivocados, pelo oportunismo eleitoral e pela sedução do poder. Os sonhos alimentados pela contracultura, inicialmente legitimados pelas postulações contra os males do capitalismo, perderam-se nas perigosas síndromes da ilusão propiciada pelas drogas, pelos desencantos da sexualidade e pela posterior dependência de tecnologias alienantes. Sonhos e esperanças acabaram desaguando neste inquietante “mar de sargaços” em que se transformou o mundo, onde navegam os corsários da ambição e da crueldade.

Mas também havia jovens que não vivenciaram essa sublime emoção de indignar-se com as injustiças. Naqueles anos, numa outra linha de reações, uma elitizada coluna de jovens marchava contra tudo pelo que lutávamos. Conheci essas sinistras figuras nas ruas de Curitiba. Porta-vozes da alta hierarquia da Igreja, desfilavam altaneiras, com seus paramentos medievais, nos primeiros anos da ditadura no Brasil, defendendo o regime militar e os interesses conservadores da oligarquia que representavam com os estandartes da “Tradição, Família e Propriedade”. Vi também seus parceiros, no Chile, liderados por Maximiano Griffin Ríos, em 1969, durante o governo de Eduardo Frei, portando, nos panos ao vento com o emblema da “Fiducia”, o ódio social, o ressentimento contra um cristianismo que abraçava as causas populares e, sobretudo, plantando as sementes da conspiração que derrubaria, com outros aliados sanguinários, o governo legítimo de Salvador Allende.

A partir da década de 70, a ascensão do capitalismo financeiro, sob o disfarce de globalização, começou a estender as suas redes e a ganhar, com armas invencíveis, essa nova e imensa guerra mundial, avançando com sua voracidade, desterrando os valores humanos, gerando multidões de excluídos, triturando nossas utopias, transformando o planeta num supermercado e descaracterizando a própria cultura com atraentes modelos de um consumismo supérfluo e descartável.

Ainda que haja, no Brasil, muitos jovens “conectados”, preocupados com a ética, com as fronteiras alarmantes da corrupção, com a redenção ambiental e com belos projetos comunitários, toda aquela geração foi vítima da nova ordem social imposta ao longo dos vinte e um anos de ditadura militar, sendo induzida a “educar-se” pela cartilha da Educação Moral e Cívica, focada na obediência, passividade, no anti-comunismo e num patrioterismo doentio. Vítimas de todo um processo subliminar de moldagem comportamental, os jovens que abdicaram da consciência crítica foram transformados em meros consumidores. Formam parte da juventude apressada dos nossos dias, descomprometida com os problemas sociais, imediatista, avessos à leitura, ou derrotada pelo vício. Essa é a face trágica de um segmento da juventude contemporânea: jovens como meras marionetes de um mercado global de ilusões, aculturados pelas novas midias, homogeneizados desde os primeiros anos para consumir, abdicando quase sempre da análise dos fatos e do estágio promissor da cidadania.

Os precursores involuntários da pós-modernidade – leia-se Nietzsche e Heidegger – e os seus mais ilustres ideólogos, na filosofia e na arte, aliaram-se ao trabalho posterior de demolição comandado pela globalização. Reagindo aos paradigmas orgulhosos e dogmáticos da ciência mecanicista do século XIX, os intelectuais niilistas apostaram na reação generalizada da descrença nos valores humanos, desconstruindo o significado da verdade, da beleza e da transcendência do humanismo na tradição ocidental; anunciando uma liberdade sem a noção do dever; desrespeitando os arquétipos da religiosidade; desqualificando a história; invertendo a estética da arte ao despojá-la da estesia e do encanto (e se há algum mérito nos exageros da arte moderna é o de retratar o perfil catastrófico do mundo contemporâneo); retirando a melodia da música, proclamando a irreverência e ironizando os ideais e o significado da utopia. Sobre esse termo, tão desfigurado em nossos dias, certa vez estudantes colombianos fizeram ao celebrado cineasta argentino Fernando Birri, a seguinte pergunta: Para que serve a utopia? Ele respondeu que a utopia é como a linha do horizonte, está sempre a nossa frente e por isso nunca podemos alcançá-la. Se andamos dez, vinte, cem passos, ela sempre estará adiante de nós. Se a buscamos, ela se afasta. Para que serve a utopia? perguntou ele, respondendo: Para fazer-nos caminhar…

Embora quase tudo tenha sido desconstruído, nossos ideais desterrados e a globalização já não nos deixe sonhar e nos insinue a esquecer, é imprescindível acreditar que há uma Fênix entre as cinzas que restaram do mundo pelo qual lutamos. Não abdicamos da esperança, mas reconhecemos que nosso veleiro soçobrou e que seus restos foram bater nas praias melancólicas desses anos. Sobrevivemos quais náufragos num mar de ultrajes e decepções, junto com os destroços das grandes ideologias e com as cruéis aberrações que envergonharam os nossos sonhos ao vermos o marxismo dogmatizado pelo stalinismo e ao compreendermos porque murchava a “Primavera de Praga”. Sobrevivemos nas lágrimas derramadas sobre as páginas d’O Arquipélago Gulag, no desencanto de saber a beleza da utopia hegeliana invertida pelo totalitarismo nazista e o conhecimento científico manchado pela explosão atômica.

A contracultura, a pós-modernidade, a globalização e a destruição ambiental, são os novos cavaleiros do mundo apocalíptico que recebemos. Dessas quatro patéticas “figuras”, as três primeiras causaram efeitos desastrosos sobre a cultura – e lá na região andina, minha nova escola naqueles anos, a globalização insinuaria o esquecimento da história e da cultura deparando-se com a luta dos peruanos ante a herança quéchua e a resistência inquebrantável dos bolivianos pela manutenção da cultura aymara – e as duas últimas sobre os rumos futuros da humanidade.

Não herdamos somente a decepção, mas uma crônica indignação a despeito de qualquer otimismo. Hoje somos, tão somente, seres comprados nesse grande shopping de negócios e aparências em que se transformou o mundo, herdeiros impotentes de um sonho, vivendo num mundo alienante, distópico e devorado pelas fauces da globalização.

Anos 60 - Que ventura ter sido jovem naquele tempo! Lá a realidade estava a poucos passos dos ideais.

Século XXI - Que estranha transição! Para onde vamos? Sem norte, sem porto, sem um amanhecer! Quanta perplexidade, quantos pressentimentos! Haverá outro mundo, melhor e possível? Sem crueldade, estupidez e promessas mentirosas? São perguntas plurais que pedem respostas plurais. Essa é uma transição sombria balizada pela desventura e o desencanto. É um tempo de antíteses. Esperamos que o próprio Tempo, com sua misteriosa dialética, nos traga uma regenerada síntese. Nesse impasse restam-nos, contudo, os territórios invioláveis da imaginação e da esperança e para mim um pouco mais: a transcendência, e a grata introspecção nessas memórias.
Manoel de Andrade, "Nos rastros da Utopia, uma memória crítica da América Latina nos anos 70"

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Brasil é o terror

 


O bolsonarismo desistiu do eleitor

A escalada golpista da reta final da campanha mostra que o presidente parece já ter desistido do eleitor e não quer aguardar para conferir se o inverso é verdadeiro.

Os tiros de Roberto Jefferson atravessaram a Mantiqueira e, como previsto, acertaram o eleitor paulista. Se este eleitor, em defesa da polícia, estava disposto até mesmo a votar em quem quer tirar as câmeras dos uniformes, não aceitaria aliados dessa gente que atira em policial. Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Haddad crescem em São Paulo, a reboque de Jefferson.

Ainda está por ser explicado por que seis agentes, sem colete à prova de bala ou equipamento adequado, se dirigiram à casa de um apenado em regime domiciliar que acumulava armas e munições.

Mas o fato é que, depois de tanto explorar os votos de presidiários em seu adversário, eis que o presidente Jair Bolsonaro chegou à reta final da eleição atingido por um deles.

O fracasso da armação levou a esta cartada final do “radiolão”. A engenharia das inserções pode até demonstrar que falta fiscalização na divulgação, principalmente nas rádios. É uma lacuna que prejudica a todos e não apenas ao reclamante a quem, mais do que propaganda, falta credibilidade.


O tiros em Levy Gasparian (RJ) já foram suficientes para mostrar que a reprise tupiniquim do Capitólio é uma ópera bufa do bolsonarismo, mas a campanha governista resolveu dobrar a aposta com esta manifestação convocada para o sábado em Brasília. Como não conseguiram melar a eleição com as urnas eletrônicas, apelam agora para as inserções.

Os fatos derradeiros da campanha estão a mostrar a dramaticidade da renovação do governo em curso. O que parece faltar em votos para o bolsonarismo sobra em poderes constituídos que se levantam contra seus arroubos.

A frente ampla chegou ao Vaticano. Além do ódio, da intolerância e da violência, o papa ainda acrescentou Nossa Senhora de Aparecida para pedir passagem. Mais explícito, impossível.

É o poder que se move na reta final. E nunca está sozinho. O bolsonarismo gira a manivela do voto antissistema com seus chiliques, mas este 2 turno está a mostrar que tudo tem um limite. A reação dos poderes oferece um eixo contra o rumo desgovernado que tomou a campanha de Jair Bolsonaro.

A reação da Igreja Católica, que tomou corpo depois do tumulto em Aparecida, dá à maioria religiosa um norte para se contrapor ao apelo obscurantista do presidente que grassa, majoritariamente, entre evangélicos.

O Judiciário mostrou unidade seja no respaldo do Supremo Tribunal Federal aos superpoderes do Tribunal Superior Eleitoral seja na garantia ao passe livre nas capitais.

Não foi a exoneração do servidor do TSE que mostrou os excessos de Alexandre de Moraes. Todos já o conhecem, mas é como se o Judiciário depois de contribuir para corroer a democracia pelo lavajatismo, não visse outra forma de remediá-lo senão investindo outro juiz de plenos poderes. Ante o monstro que se transformou o bolsonarismo, parece não haver saída.

Foi Bolsonaro quem deu liga a esta unidade ao esticar a corda nas ameaças contra o STF. Já o tinha feito antes, mas sua reiteração na campanha foi sinal de que perdeu o tino. Se o arroubo foi tolerado até aqui é porque seu mandato tem fim. A perspectiva de sua renovação deu ruim.

Um togado do Supremo chegou a dizer esta semana a um ministro do governo, engajado na reeleição presidencial, que estava na hora de ele buscar um advogado criminal.

Até o ex-presidente José Sarney, que só se pronuncia em anos bissextos, resolveu falar. Reverenciou o Supremo como ponto de equilíbrio, seja em relação à “autocracia” do atual governo, seja em relação aos “interesses excusos” do Legislativo na gestão do orçamento secreto. A declaração de voto no ex-presidente Lula seguiu como decorrência.

O cerco é tamanho que os donos dos feudos do orçamento secreto partiram para a guerrilha antes mesmo da batalha final.

A tomada de posição de Sarney acabou por emudecer outro ex-presidente, Michel Temer, que voltara a atuar na intermediação entre Bolsonaro e o Supremo. Um sinal disso foi a decisão do prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, aliado de Temer, de se antecipar à justiça e decretar o passe livre contra o qual havia se insurgido no primeiro turno.

Tratou-se de mais uma cartada do Judiciário a movimentar o tabuleiro. Ao respaldar a catraca livre, levou todas as capitais a adotar a medida que, no primeiro turno, enfrentou forte resistência do bolsonarismo.

Junte-se aí o Tribunal de Contas da União que, depois do rigor com o qual tratou a gestão da Caixa Econômica Federal no impeachment de Dilma, corria o risco de deixar passar batido o uso eleitoreiro do banco público. Ao mandar suspender o consignado do Auxílio Brasil, ganhou tempo.

Os poderes não se movem apenas por obra e graça de suas cúpulas mas pela força da burocracia. O que não foi o vazamento de estudos do Ministério da Economia sobre a desindexação do Orçamento, notadamente do salário mínimo, senão a reação de técnicos à perspectiva de mais quatro anos do chefe de Paulo Guedes?

A reação da burocracia econômica é posterior àquela capitaneada por nichos importantes do empresariado e da finança nacional.

De todos os sistemas de poder do país, aquele que comanda o PIB industrial e financeiro foi um dos primeiros a reagir. Uma demonstração de que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva se apercebeu do peso desta precedência foi o espaço aberto para Simone Tebet e Marina Silva na sua campanha, arrematado pela reiteração de que seu governo não será do PT.

Até a ciência mundial, representada por sua principal publicação, a “Nature”, publicou editorial em que diz que “só há uma escolha na eleição do Brasil - para o país e para o mundo”.

Ainda restam o debate e três dias até a eleição, o que é uma eternidade quando Bolsonaro está em campo. Há 8,5 milhões de votos a serem consolidados nesta reta final. Ao contrário de 2018, quando ficaram a esperar no que ia dar, os poderes tomaram partido antes que sumam do mapa. Oferecem uma carona ao eleitor. Resta aguardar se sua excelência vai aceitar.

O plano de Bolsonaro para a noite do domingo das eleições

Um mutirão de apelos, feito por assessores, demoveu Bolsonaro de tentar lançar granadas, ontem, ao cair da tarde, no ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral.

Não se pode dizer que Bolsonaro estava furioso como jamais se viu – já se viu, sim, e talvez em pior estado. Ao exercício da fúria inútil sucede quase sempre o recuo com medo das consequências.

Ele morde e assopra. Late e cala. Bate na mesa e depois corre para debaixo da saia de Michelle. Justamente por apoiá-lo, os militares conhecem muito bem com quem estão lidando.

“Cavalão”, seu apelido no tempo dos quartéis, não decorre de nenhuma demonstração de força admirável que ele tenha dado. Ele só se destacou por correr rápido como um cavalo árabe.

Em Minas Gerais, Bolsonaro constatou que, ali, não vencerá as eleições, e que poderá aumentar a diferença em favor de Lula. Então, quando voava ao Rio, mandou desviar o avião para Brasília.

Chegou bufando ao Palácio da Alvorada. Quis convocar uma reunião ministerial – mas cadê os ministros? A maioria estava nos estados. Clima de fim de feira é assim. Encontrou-se com três.

E o anúncio de golpe que muitos temiam virou uma gotinha. Por sinal, golpe não se anuncia, aplica-se. Bolsonaro disse que lutará até o fim “dentro das quatro linhas da Constituição”.


É o que se espera que faça. Não gostou da decisão de Moraes de rejeitar a denúncia de que fora garfado por emissoras de rádio que não teriam veiculado seus comerciais?

Tudo bem. Vá reclamar ao Supremo Tribunal Federal. A denúncia não passou de mais uma fake news para fazer o país mudar de assunto. O assunto era Roberto Jefferson. Deixou de ser.

O assunto, hoje e amanhã, deverá ser o último debate entre Lula e Bolsonaro na noite desta sexta-feira. Se empatar ou perder o debate por poucos pontos, Lula terá ganhado.

Sabe-se lá mais o que, à base do desespero e diante da derrota que se avizinha, Bolsonaro poderá aprontar até sábado, quando as últimas pesquisas de intenção de voto serão reveladas.

Mas, no domingo, é certo o que ele planeja. Simples: os votos do Nordeste são os últimos a serem apurados. Bolsonaro deve anunciar sua vitória quando estiver à frente da apuração.

Se a apuração terminar com sua derrota, dirá que a eleição foi roubada e que reagirá “dentro das quatro linhas da Constituição”. Ou simplesmente dirá que ela foi roubada.

O resto ficará por conta dos seus seguidores mais radicais. Bolsonaro espera que eles saiam por aí botando para quebrar, e exigindo a realização de uma espécie de terceiro turno.

Não sorriam. Acreditem. Há loucos o bastante no mundo. E, sob o comando de um tresloucado, são capazes de acreditar nas maiores barbaridades, e de se empenharem em realizá-las.

Nada de pavor. Muita calma. O domingo nunca demorou tanto para chegar, mas chegará. Votai, vigiai e cautela – que, como caldo de galinha, não faz mal a ninguém.

Os sábios

Uma galinha, finalmente, descobriu a maneira de resolver os principais problemas da cidade dos homens. Apresentou a sua teoria aos maiores sábios e não havia dúvidas: ela tinha descoberto o segredo para todas as pessoas poderem viver tranquilamente e bem.

Depois de a ouvirem com atenção, os sete sábios da cidade pediram uma hora para reflectir sobre as consequências da descoberta da galinha, enquanto esta esperava numa sala à parte, ansiosa por ouvir a opinião destes homens ilustres.

Na reunião, os sete sábios por unanimidade, e antes que fosse tarde demais, decidiram comer a galinha.
Gonçalo M. Tavares, "O senhor Brecht"

Bolsonaro nos rouba a vida

Leitor reclama que não me engajo politicamente e que só me preocupo com a mudança de casa e com o impacto que teria "no pet". Quem me dera. Não há outra coisa que eu faça nos últimos anos que não seja morrer um pouquinho todo dia de raiva e mostrar a tragédia do governo Bolsonaro.

Há dezenas de colunas, de vídeos, de tuítes meus sobre o assunto, mas agradeço ao leitor por me lembrar de mais um motivo para derrotar Bolsonaro: ele nos roubou o direito de viver. Não há um dia de paz, não tem domingo de descanso, até na madrugada esse desgraçado resolve fazer live para mentir.

Com todo respeito ao leitor, eu queria, sim, poder sofrer porque meu marido viajou a trabalho, fiz uma mudança sozinha e ainda estou lidando com dois gatos apavorados pelo sumiço do pai e do mundinho que eles já conheciam. Em vez disso, passo horas do dia tentando convencer minion e simpatizantes de que democracia é uma coisa importante.

Quem me dera escrever crônicas sobre o trauma que é perder o gato dentro de casa e chorar no chão do banheiro, num visível desequilíbrio emocional, quando muitas horas depois ele sai de dentro de uma gaveta desarrumada. Mas não posso. Temos que gastar energia para mostrar que não teremos novamente aquilo que nunca tivemos: comunismo.

Gostaria de usar meu espaço para denunciar os prestadores de serviço que acham que podem me cobrar o dobro porque, né, mulher sozinha só pode ser trouxa. Quem me dera que meu maior problema fossem os três dias de banho com água fria porque o cano estava com a rebimboca da parafuseta errada. Mas não.

Enquanto ignoro as caixas da mudança, tento mostrar aos indecisos que não é natural um aliado do presidente receber a PF com granada.

Se as pessoas não se importam com o envolvimento de Bolsonaro com corrupção, milícia, incitação ao crime, golpismo, pelo amor de deus, que seja para termos um pouco de paz.

Tem gente que não se enxerga


A campanha mais baixa da história que eu já tenha visto
Jair Bolsonaro, quando assistia em um restaurante popular de Brasília o programa de propaganda de Lula

Roberto Jefferson – filho do bolsonarismo

Muitos brasileiros estão cansados. Não aguentam mais a propaganda eleitoral, as discussões entre conhecidos e familiares, os slogans repetitivos, a avalanche de postagens e vídeos na internet. E estão também assustados com a violência verbal e física que frequentemente parte de um lado: dos bolsonaristas.

O nível da disputa eleitoral em geral tem sido baixo. A principal responsável por isso é a campanha de Jair Bolsonaro, que pretendia simplesmente repetir sua estratégia de 2018. Com mentiras, invenções, alarmismo, dados falsos e insultos. A campanha do presidente pode ser resumida da seguinte maneira: "Lula é um ladrão, o Brasil não pode se transformar numa Venezuela, o PT quer corromper sexualmente seus filhos e fechar as igrejas evangélicas; Jair Bolsonaro é o salvador da pátria."

Logo ficou claro que essa estratégia não teria o mesmo sucesso que teve em 2018. Por duas razões: Bolsonaro não é mais o outsider. Trata-se menos do que o PT fez no passado e muito mais de um balanço do governo dele. De repente, Bolsonaro se viu na defensiva, e nisso ele não se sente tão confortável como no ataque. O antipetismo, decisivo nas eleições de 2018, não mobiliza mais as mesmas massas.

Em segundo lugar, desta vez seu adversário é Lula, experiente político com uma forte sede de poder e que não se deixa intimidar facilmente. Ele aposta na memória de seu próprio governo, entre 2003 e 2011, e nos ataques contra Bolsonaro, em vez de dar a outra face.


Mas além de Lula, apareceu mais um adversário para Bolsonaro: o Judiciário. Sem mecanismos estabelecidos para banir mentiras e ofensas na era digital, os tribunais entraram em cena no Brasil após as eleições de 2018. O bolsonarismo considera essas intervenções judiciais como um ataque contra a liberdade de expressão. Em seu primitivismo intelectual, não quer entender que a liberdade traz sempre consigo uma responsabilidade.

Roberto Jefferson é um fanático bolsonarista. Acredita que está acima da lei e pode fazer o que quiser sem consequências. Representa o pensamento bolsonarista: prepotente, infantil, arrogante. Naturalmente, Jefferson se considera um "cidadão do bem" e um bom cristão .

Imaginemos que a PF tivesse aparecido numa favela para fazer cumprir um mandado e que fosse recebida com balas e granadas. Será que o ministro da Justiça, um padre fake e um agente de operações táticas teriam aparecido para "desacelerar a situação"?

O absurdo da cena talvez nem seja mais perceptível para a maioria dos brasileiros. Eles se acostumaram com o absurdo como parte do espetáculo político diário. Mas é de se temer que Jefferson seja apenas o prenúncio de uma onda que será difícil deter: o bolsonarista armado que atira com fuzil porque se acha um revolucionário em nome da liberdade, da família, de Deus e da pátria. Que está convencido de ter o direito de decidir o que é justiça e o que não é.

O Brasil está a poucos dias de uma das mais importantes eleições de sua história. Eleições que decidirão como o país se autodefine e como será visto no mundo. Trata-se também de deter os Bob Jeffersons.

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Pensamento do Dia

 


Tem certeza que quer mais quatro anos de Bolsonaro?

Quando Roberto Jefferson atirou contra os policiais federais que foram prendê-lo, tivemos um exemplo vivo de como é o discurso bolsonarista trazido à prática. Usou de seu sagrado direito de possuir armas à vontade para resistir contra uma autoridade que ele considera injusta e ditatorial.

Um jornalista que cobria a prisão de Roberto Jefferson foi agredido e teve que ir para o hospital. Não é a primeira vez e não será a última: quando a imprensa é demonizada, a violência popular é sua consequência natural. O próprio Bolsonaro não se furtou de insultar jornalistas e até espalhar calúnias graves, como a de que uma jornalista teria se prostituído para conseguir material contra ele.

Faltam cinco longos dias para a eleição. Quais surpresas sujas podem estar guardadas para esta reta final? Que operações de WhatsApp, que fake news espetaculares, que chamados à ação?


Caso Bolsonaro perca, será um perdedor melhor ou pior do que Trump? Tentará algum tipo de sublevação popular contra o resultado das urnas, caso ele lhe desfavoreça? Acredito na solidez de nossa democracia e no fracasso de qualquer intentona desesperada. Mas o mero fato de que as perguntas acima são cabíveis já salienta o quanto as instituições mais elementares da democracia estão sob ataque do governo que deveria protegê-las.

O governo Bolsonaro é pródigo em conjurar inimigos: no início do mandato era o Congresso. Hoje, o Congresso encontra-se efetivamente comprado pelo orçamento secreto —a legalização do tipo de transação que antes estamparia as manchetes dos jornais. Formalmente legal apesar da baixa transparência, irriga a corrupção que se espalha por todo o território nacional. Mais do que nunca, o Orçamento virou uma moeda de troca com o baixo fisiologismo e garantiu a reeleição do centrão.

Com os órgãos de investigação e controle, impera a lógica da submissão e do aparelhamento. Um PGR subserviente, policiais federais e fiscais ambientais competentes afastados de suas posições, militares agraciados com milhares de cabides comissionados.

O último obstáculo tem sido o Supremo, que ele agora terá números no Senados para alterar a seu bel-prazer: além das duas nomeações previstas para o próximo mandato, poderá emplacar o impeachment de Alexandre de Moraes e, se julgar necessário, o aumento do número de cadeiras, sempre com aliados.

Enquanto a mera sobrevivência da democracia se transforma no assunto principal da vida pública nacional, é fácil perder de vista as diversas áreas de atuação do governo, que deveriam ser aquilo que justifica sua existência: os serviços que ele presta à sociedade. Educação, meio-ambiente, saúde, relações exteriores, tudo terra arrasada.

Na economia, as promessas utópicas de Paulo Guedes deram lugar aos gastos bilionários para comprar votos. Henrique Meirelles já estima um rombo da ordem de R$ 400 bilhões para 2023, como resultado das "bondades" do período eleitoral. Qualquer ilusão de "teto de gastos" já foi aniquilada pelo Ministério Guedes.

Se Bolsonaro vencer, terá recebido a autorização popular para ir ainda mais fundo em sua agenda de destruição institucional, e terá um Congresso ainda mais amigável que o atual. Sendo assim, antes de votar no domingo, pergunte-se: o Brasil merece passar por mais quatro anos disso?

A fratura exposta: o Brasil depois das eleições

Neste momento que antecede as eleições presidenciais, podemos adiantar um cenário muito preocupante. Não apenas pelo pleito em si mesmo, que se anuncia dramático, mas principalmente pelo que provavelmente se avizinha.

O Brasil evoluiu de uma formação social profundamente dividida para uma fratura, isto é, não se trata mais de uma profunda divisão entre uma massa de despossuídos e uma minoria que concentra mais de 74% da riqueza nacional. Trata-se de um acirramento da luta de classes que coloca frente a frente a alternativa fascista e a sobrevivência de uma democracia limitada, em meio a uma enorme crise institucional.

Já tratamos insistentemente das causas que nos levaram a este quadro: a prevaricação das instituições da República, o longo período de conciliação de classes e o quanto se subestimou a força eleitoral do bolsonarismo, preferindo enfrentá-lo eleitoralmente ao invés da mobilização social. Neste momento que cerramos fileiras no apoio a Lula contra Bolsonaro, ao que tudo indica, o vitorioso (esperamos que Lula) ganhará por uma pequena margem de votos e precisamos refletir sobre o cenário que se abrirá então.


Caso o fascismo vença, pelo enorme e despudorado uso da máquina pública e pela enxurrada de fake news que desfila diante da impotência do TSE, teremos a continuidade da destruição econômica e social do país, o aprofundamento de uma reversão civilizatória e uma agudização da intolerância e da violência. O mais perigoso, no entanto, é que abre-se a possibilidade que aquilo que faltava no processo de fascistização finalmente se apresente. Analisávamos que apesar de um movimento de caráter fascista e uma liderança de extrema direita disposta a caminhar nesta direção, o fascismo exigia a transformação do Estado burguês em um Estado fascista, isto é, um controle direto da extrema-direita fascista de instituições como as forças armadas, polícias, justiça e Parlamento. Um segundo mandato de Bolsonaro abre essa possibilidade, ainda que não haja consenso entre o bloco dominante nesta direção.

A impotência de prevaricação das instituições que poderiam e deveriam ter interrompido o mandato do miliciano se agudizará e o enraizamento de uma cultura fascista se aprofundará no tecido social com consequências desastrosas.

Eleitoralmente este cenário pode se dar a partir de um aumento da vantagem do fascista no sudeste, principalmente, mas também no sul e centro-oeste. A possibilidade de vitória de Lula se dá, não somente pela heroica resistência do nordeste, mas pela capacidade do petista em não deixar se distanciar nas regiões onde seu oponente deve vencer e que têm a maior quantidade de eleitores. Isto nos leva a crer que a batalha decisiva se joga em São Paulo, Rio e Minas.

Mesmo no caso de vitória da centro-esquerda, o país estará fraturado ao meio. Três vetores são extremamente preocupantes: o questionamento do resultado eleitoral, o tempo entre o fim do pleito e a posse do novo presidente e a reação de uma malta de apoiadores inconformados que foram fartamente alimentados com mentiras. Todos esses três aspectos se articulam em um personagem: as forças armadas. As forças armadas estão de posse de um relatório sobre as urnas que, segundo as declarações, será apresentado somente após as eleições. Em caso de vitória fascista, as urnas não serão questionadas e, em caso de derrota, provavelmente sim. A imprevisível, mas provável, reação irracional de segmentos de massas apoiadas ou não por esquemas paramilitares e civis armados pode gerar o caos, exigindo uma intervenção decidida de órgãos de segurança que não se sabe se agirão para conter ou acirrar (até pela omissão) as desordens.

Por fim, o fator tempo. Os dois meses que faltam para acabar este tumultuado ano não serão tranquilos. Não se pode esperar, caso o fascismo vença, que instituições que nada fizeram diante de uma enormidade de infrações e crimes de responsabilidade, farão algo diante de um presidente eleito com mais de cinquenta por cento dos votos, o apoio de setores do capital, das forças armadas e uma massa histérica de apoiadores. Em caso de vitória da centro-esquerda, pelos motivos apontados, a instabilidade alcançará a temperatura de ebulição.

Diante disso, duas ações são essenciais: primeiro, jogar todos os esforços na reta final para derrotar o candidato da extrema-direita; segundo, ocupar as ruas de forma decidida e massiva, desde agora, depois do resultado das eleições, a fim de garantir a posse. Como o fascista derrotado tentará usar o resto de seu mandato para desfechar ataques aos trabalhadores e à ordem constitucional, é necessário que as manifestações evoluam para formas de enfrentamento mais profundas que mobilizem os trabalhadores de setores essenciais, com paralisações e, se possível, uma greve geral em defesa da democracia e de uma pauta que responda aos interesses dos trabalhadores e o conjunto da população.

Como o lado de lá da fratura está disposto a se impor e tem recursos de poder para tanto, o lado de cá, os trabalhadores, não podem confiar nas instituições que ficaram paralisadas diante do acirramento. Para tanto, só podem contar com sua própria força e a maior delas, uma vez que não temos outros instrumentos de força, é a greve. É preciso aumentar o custo de qualquer aventura fascista, que não se deterá diante de argumentos de legalidade e da institucionalidade democrática, e a única maneira de fazer isso é ocupar as ruas.

Quando as instituições são impotentes, o espaço é ocupado pela luta direta das classes. A fratura se torna exposta, mantras e lamentos não podem curar o tecido e ossos rompidos. Nenhum recuo se torna possível sem uma derrota catastrófica. Sem espaço para fugas, só nos resta avançar. Hic Rhodus, hic saltus (
“Rhodes é aqui, é aqui que você salta!” ).

Pra frente, Brasil


O Brasil progride da condição de pais do jeitinho para a condição de país que não tem jeito
Josias de Souza

Deus tem fama de ser brasileiro. Se não quer perdê-la, zele por nós

Bolsonaro é esperto, inteligente, não. Culto, tampouco. Mas há vida inteligente em suas cercanias, só que ela nem sempre é ouvida. Se fosse, a farsa escrita a quatro mãos por ele e Roberto Jefferson não teria sido encenada com direito a tiros de fuzil e granadas. Mas, com apoio velado da ala radical do governo, foi.

Não era só para que a farsa mantivesse aceso o discurso do ódio contra a justiça, que Bolsonaro e os militares enxergam como o principal obstáculo à permanência deles no poder por mais quatro anos. Era para que os bolsonaristas dispostos a pegar em armas, animados pela farsa, se manifestassem, senão agora, até domingo.


Agora, ao que tudo indica, apenas rosnarão. Domingo, caso Bolsonaro perca, aí pode ser. Na sabatina da Record – que em 2018 não fez nenhuma porque Bolsonaro negou-se a comparecer alegando que a facada o deixara inativo -, Bolsonaro atacou o Tribunal Superior Eleitoral por censurar a rádio Jovem Pan.

Não houve censura. O tribunal concedeu a Lula três direitos de respostas porque comentaristas da emissora só o tratavam como corrupto, ex-presidiário e chefe de organização criminosa. Direito de resposta a quem se sinta ofendido está previsto na Constituição. O Jurídico da emissora foi que vetou a repetição das ofensas.

Sucessivos direitos de resposta arranham a imagem de um veículo de comunicação e prejudicam seus negócios. Os anunciantes tornam-se mais cautelosos ou param de anunciar; significa perda de credibilidade, de dinheiro, e, no limite, de audiência. Só faltava essa de Bolsonaro posar como defensor da liberdade de imprensa…

Só se for defensor da liberdade de bocas de aluguel, um ramo que prospera quando há um presidente com vocação de ditador. Todos os presidentes que conheci se queixavam da imprensa. Lula, uma vez, disse que gostava de publicidade, de notícia, não. Mas só Bolsonaro foi e é uma ameaça real à liberdade de imprensa.

Bolsonaro aproveitou a sabatina para declarar que as Forças Armadas seguem buscando “possíveis fraudes” em urnas que jamais foram fraudadas. O primeiro turno passou e os militares tiveram tempo suficiente para concluir se os resultados foram fraudados. Por que calam? Porque o silêncio interessa a Bolsonaro.

Se Lula vencer o segundo turno como venceu o primeiro, aí, sim, o silêncio deverá ser quebrado, é o que Bolsonaro espera. E espera que seja quebrado para denunciar suspeitas de fraude. É o último trunfo que ele imagina dispor para não largar a presidência. Tudo dependerá da rebelião armada com a qual ele sonha há anos.

Chegaremos a esse ponto? Haverá rebelião bem-sucedida? Creio que não. Mas quem seria capaz de acreditar que a uma semana das eleições aconteceria o que ontem aconteceu? Foi um teste?

O Papa é argentino, mas Deus tinha e ainda tem fama de ser brasileiro. Se não quiser perder a fama, que continue zelando por este país dilacerado. Livre-nos dos demônios. Amém!

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Brasil abraçado ao seu rancor

 


Bolsonarismo revive fascismo em ataques a estudantes e religiosos

Bibo Nunes é um bolsonarista raiz. Despreza a ciência, dissemina notícias falsas, aposta no discurso de ódio para se promover. O deputado do PL gaúcho topa tudo por uma polêmica. Já foi capaz de interromper uma homenagem a Marielle Franco, vereadora assassinada a tiros, para bater boca com parlamentares de esquerda.

A exemplo do capitão, Bibo vê na atividade política um atalho para se dar bem. Já torrou verba de gabinete para comer churrasco e espalhar outdoors com a própria foto. “Deputado não é para fazer economia. Se é para fazer economia, eu fico dormindo em casa”, justificou, numa entrevista à Zero Hora.

Em outro episódio, ele usou dinheiro público para alugar carros de luxo. “Sempre andei de Mercedes e BMW. Não vou abaixar meu estilo de vida só porque sou deputado”, esnobou.

Há poucos dias, Bibo superou seus próprios padrões de indignidade. Declarou que estudantes da Universidade Federal de Santa Maria mereciam ser queimados vivos. O bolsonarista se irritou com um protesto contra os cortes na educação superior. “É isso o que esses estudantes alienados, filhos de papai, merecem”, vociferou.

Movimento da UFMG reprimido na ditadura

A cidade universitária foi palco de uma tragédia de repercussão mundial: o incêndio da boate Kiss, que matou 242 jovens em 2013. Dublê de radialista e palestrante, o deputado não pode ser acusado de ingenuidade com as palavras. Ele é autor do curso on-line “Sucesso na comunicação”, em que promete ensinar os segredos da oratória por R$ 99,90.

Bibo pertence à tribo de políticos de extrema direita que ascenderam com Bolsonaro. Dizendo-se cristãos e patriotas, eles estimulam a intolerância e a barbárie para ganhar votos. Uma reeleição do presidente lhes daria ainda mais poder para pregar o ódio e perseguir adversários.

A fúria bolsonarista não poupa ninguém. Estudantes, cientistas, juízes, jornalistas e até religiosos podem entrar na mira a qualquer momento. No domingo passado, a horda escolheu como alvo o arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer. Integrante da ala mais conservadora da Igreja Católica, ele foi xingado e ameaçado após fazer um apelo contra a beligerância eleitoral.

Chamado de “comunista”, dom Odilo julgou necessário fazer um esclarecimento: os cardeais vestem vermelho em referência ao sangue de Cristo, não à bandeira do Partido dos Trabalhadores. “Tempos estranhos esses nossos. Conheço bastante a História. Às vezes, parece-me reviver os tempos da ascensão dos regimes totalitários, especialmente o fascismo”, desabafou.

Não foi o primeiro a fazer o alerta.