domingo, 28 de junho de 2020

Pensamento do Dia


Sobras de guerra

Não é de hoje que números redondos são ferramentas infalíveis para atrair leitores, concentrar homenagens, turbinar emoções. Não fosse a pandemia que imobiliza este 2020 fantasmagórico, o 250º aniversário do nascimento de Beethoven e os festejos pelos 75 anos do final da Segunda Guerra na Europa seriam mais tonitruantes. Basta comparar com o passado recente: em 2019 o mundo se entregou a comemorações voluptuosas pelos 50 anos de Woodstock, os 30 anos da Queda do Muro de Berlim, e tantos outros marcos históricos.

Em tempos de coronavírus, números redondos também são ferramenta de primeira linha, só que às avessas — eles nos arrancam do torpor de um amanhã incerto. Sabidamente o medo que mais imobiliza o ser humano é o medo de ver o que está à sua frente. Isso inclui o presidente da República. Para Jair Bolsonaro, cada novo número-choque da pandemia no Brasil tem impacto dobrado, pois atesta sua falha histórica como governante da nação em tempos turvos.

Na linha desse tempo pandêmico o mundo mal teve tempo de atravessar o choque do primeiro milhão de infectados. No momento rumamos para 10 milhões mundo afora, e logo mais a régua terá de ser levantada. Na manhã da última sexta-feira dados apontavam para 55.304 mortos no Brasil. Portanto nova barreira redonda derrubada, com a anterior (50 mil) já esquecida.


Como nossas mentes dificilmente registram o número por inteiro, é mais provável que em conversas de quarentenados tenhamos arredondado para 55 mil. Em textos jornalísticos ou legendas noticiosas, o número completo acaba encurtado para “mais de 55 mil”. Ou, “55,3 mil”. Acabam ficando de fora do nosso imaginário as chamadas “sobras da guerra” — no caso, os 4 últimos dessas 55.304 vidas perdidas para a Covid. É natural: quem pensa nos centavos diante de um cheque de 10 mil reais, certo?

Mortandade tão vasta e tão abstrata dificulta o luto individual, exceto quando ele nos atinge de perto. A morte em massa se torna a soma de vidas anônimas tragada por essa avalanche. Só que, ao contrário do que ocorre em furacões, terremotos ou guerras, a mortandade por pandemia é condenada ao silêncio. E esta, em particular, parece não ter fim.

Na Guerra do Vietnã, onde morreram 58.209 G.I.s, foi fácil levantar a identidade dos dois últimos soldados americanos a não voltarem para casa. Um se chamava Charles McMahon, estava prestes a completar 22 anos e desembarcara em Saigon 11 dias antes de morrer. O outro, Darwin Lee, de 19 anos, também era novato na guerra que durou 7 anos. Ambos tinham por missão proteger a Embaixada dos Estados Unidos. Morreram juntos na manhã do 29 de abril de 1976, atingidos por um foguete. No dia seguinte, a guerra acabou, Saigon foi tomada pelos comunistas, e o que restava de presença americana bateu em retirada afoita. Inglória das inglórias, os corpos de McMahon e Lee foram deixados para trás. Só conseguiram ser recuperados um ano mais tarde por mediação da diplomacia.


Historiadores da Segunda Guerra Mundial também puderam cravar a identidade do último soldado das tropas aliadas a morrer no front europeu: Charles Havlat, 34 anos. No dia 7 de maio de 1945 seu pelotão avançava na região da Tchecoslováquia quando sofreu emboscada de uma divisão de tanques alemães. Fatalidade: nove minutos antes fora negociado o cessar-fogo que levaria à rendição incondicional da Alemanha, comemorada em 8 de maio.

Difícil imaginar que pesquisadores do futuro conseguirão identificar a última vítima da pandemia de Covid-19 no Brasil. Isso porque, por trás de números tão monumentais, se escondem várias causas mortis. Inclusive a falta de medicamentes críticos em várias UTIs do país. O estoque de 22 insumos indispensáveis para pacientes que precisam ser intubados (sedativos, anestésicos, bloqueadores neuromusculares) está à míngua em 21 hospitais de referência, aponta um levantamento nacional divulgado esta semana. Sem esses medicamentos, o paciente não morre de Covid, morre por não poder ser intubado.

Também pode morrer por ter desistido de entender o emaranhado de protocolos de segurança e reclassificações de atividades.

Desistido de aguardar o auxílio emergencial do governo, desistido de se proteger. O método universalmente reconhecido como o mais simples e barato — o uso de máscara — é sabotado pelo presidente da República. Como levar a sério um protocolo municipal que libera viagens de pé em ônibus mas limita a ocupação no interior do veículo em 2 pessoas por metro quadrado? Isso, na cidade do Rio de Janeiro! O efeito sanfona das medidas de flexibilização desnorteia mais do que disciplina, a lição primeira de lavar as mãos com sabão não serve para os mais de 100 milhões de brasileiros hoje ainda expostos ao esgoto a céu aberto.

Em resumo, no Brasil de 2020 ainda vai se morrer muito durante a Covid-19. Sobras desnecessárias da soma de irresponsabilidades nacionais.

Reflexões na crise

A Covid-19 deixará um rastro de destruição sobre a humanidade. Negócios serão aniquilados, empreendimentos remodelados, o saber deixará de ganhar valiosos avanços, milhões de crianças perderão tempo de aprendizagem, a pobreza cobrirá o planeta, aumentando as desigualdades sociais, a angústia e a depressão cobrirão milhões ou bilhões de pessoas. O planeta atrasará seu ritmo de avanços.

Os mais otimistas sinalizam descobertas revolucionárias na medicina, novas vacinas, integração solidária entre as nações no combate a doenças, maiores investimentos em saúde e no bem-estar.


É razoável apostar em passos adiante. Mas há de se reconhecer o atraso na vida de uma geração, obrigada a permanecer em casa assistindo aulas virtuais. Aliás, esse ensinamento a distância deixa a desejar. Passar quatro horas ouvindo um ou dois professores, em sequência, ministrando aulas para uma plateia virtual é muito cansativo. Poucos prestam atenção, a interação é escassa e o diálogo essencial se perde na monotonia.

Imaginem o atraso de um semestre ou um ano na vida de um estudante. Mais adiante, terá de haver um esforço extraordinário para recuperar os passos perdidos. Se essa metodologia for adotada pós-pandemia, terá de ser recauchutada.

Milhões de micros, pequenos e médios negócios fecharão as portas e o empresariado terá de enfrentar o desafio do recomeço, talvez em outra área. Remontar o que o vírus corroeu. Os gigantescos conglomerados, embora sofram também, acabam sobrevivendo no jogo do perde e ganha.

No plano espiritual, mentes e corações maltratados pelos impactos emocionais e racionais desabam no despenhadeiro da depressão e da angústia, repassam suas vidas, o tempo perdido em apostas sobre o futuro. Tem sentido pensar em um novo modus vivendi para o amanhã? Claro, milhões de pessoas não serão atingidas pela depressão. Continuarão insensíveis às intempéries da vida.

Mas volto os olhos àqueles que pensam sobre sua existência, sofrendo com tantas injustiças, indignados com a corrupção na política e a manipulação das massas, com os desvarios de governos. Penso nos milhões que estão fora da mesa do consumo, famintos em acampamentos isolados ou devastados por guerras, nas milhões de crianças recém-nascidas que não chegam a viver para compreender o que são e onde estão.

Pensamentos e reflexões na crise. E aqui, o que poderá acontecer? Em tempos normais, a hipótese se configuraria como verdadeira: Jair Bolsonaro não completaria o mandato. As situações absurdas e a ineficiência de seu governo abasteceriam os estoques de contrariedade e a pressão da sociedade seria implacável. Mas, com a pandemia, qualquer ato político impactante semeará o caos no país. Resta a pressão por mudanças no comportamento do presidente, na motivação dos políticos para promover as reformas, na força aos governos estaduais e municipais para que conduzam bem sua guerra contra a Covid-19.

Quanto às eleições de novembro, que os candidatos reflitam sobre seu discurso e procurem realizar um ato de contrição. Sejam simples, modestos, honestos e sinceros. Amanhã será outro dia.

Sinofobia já é um fenômeno global

Em meio a tantos questionamentos contemporâneos se o mundo pós-pandemia será mais solidário ou individualista, uma parte dessa história já se antecipou e mostrou sua cara, que é nada atraente. Atualmente, a sinofobia (preconceito contra a China) é um fenômeno global que se manifesta da forma atroz e despudorada, e que pode acarretar consequências dramáticas para o futuro mundial.

Desde a explosão da pandemia, o racismo contra os chineses têm acontecido em muitos países, sendo estimulado pelos Estados Unidos, que inventaram o estigma de “vírus chinês”, requentando a velha ideia de associar a China a algo contagioso. Há muitos anos, desde que a China surgiu como potência mundial, boa parte do soft power norte-americano tem se dedicado a estereotipar os chineses como algo que infecta e poliu o mundo com mercadorias ou com epidemias. Para Donald Trump, que trava uma guerra comercial com a China, a pandemia foi a desculpa perfeita para aumentar a tensão contra os chineses. A disputa, evidentemente, é por hegemonia no sistema mundial.


O que faz menos sentido, contudo, é que países latino-americanos, por exemplo, transformem a China em espantalho e comprem a mesma narrativa estado-unidenese contra seu maior parceiro comercial. Mas definitivamente a racionalidade econômica não é o que embasa a sinofobia. O governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro escolheu a China como o seu mais novo inimigo externo para responsabilizar pelos seus fracassos na condução da pandemia da covid-19.

De um lado, essa posição reforça uma posição de vassalagem aos Estados Unidos —fazendo ruir o sonho um mundo emergente multipolar que, há dez anos, parecia reinventar a hegemonia do sistema mundial desde o sul global. De outro lado, a culpabilização da China é extremamente conveniente para governos extremistas e incompetentes que mobilizam e fidelizam sua base política com um simplismo vulgar a partir do qual tanto as mortes quanto o desemprego são justificados como “culpa da China”.

Não se trata de situação residual, mas a um fenômeno de proporções inéditas da política brasileira atual. Hoje, monitoramentos de grupos bolsonaristas de WhatsApp mostram que a China é um dos principais temas foco de discussão e discurso de ódio e teorias da conspiração. Isso resulta atos concretos como protestos em frente à embaixada da China, hordas de militantes virtuais atacando nas redes sociais o embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, ou pessoas comuns assediando os chineses nas ruas.

As consequências da hostilidade contra a China são dramáticas em muitos níveis. Em primeiro lugar, representa uma fase em que não apenas a hegemonia euro-americana se reorganiza, mas também recoloca países emergentes em uma posição de subalternidade, eliminado a possibilidade de relações mais simétricas no plano internacional.

Em segundo lugar, isso atiça o racismo contra imigrantes chineses no exterior, que são vítimas de violência diária nas mais diversas partes do mundo, apontando os limites de uma sociedade global e cosmopolita, justamente em tempos de avanço dos supremacistas brancos que contestam o que chamam de “globalismo” e reivindicam uma pureza da “civilização ocidental”. Em terceiro lugar, isso provoca a reação da China que adota uma diplomacia de confronto, de defesa e ataque, o que também serve para mobilizar o seu próprio nacionalismo e legitimar políticas autoritárias no âmbito doméstico.

Até onde, e por quais meios, a China irá reagir é talvez a maior incógnita a ser decifrada nas relações internacionais na contemporaneidade. E não é exagero dizer que a paz mundial depende dessa resposta.
Rosana Pinheiro-Machado

No futuro, não acreditaremos

Se nos disserem daqui a algum tempo que no dia em que o Brasil contava 52 mil mortos por um vírus violento a prioridade do governo era proteger infratores do trânsito, nós tomaremos um susto. Somos testemunhas do inacreditável. Na última terça-feira, o governo mobilizou sua base parlamentar, agora engordada com o centrão, para aprovar a sua menina dos olhos: os motoristas terão mais chance de cometer infrações de trânsito, antes de chegar ao ponto de perder a habilitação. No dia seguinte, o secretário de Vigilância Sanitária, usou 184 palavras para comunicar uma notícia curta e dura: que a curva dos infectados e mortos ainda cresce no Brasil.

Naquela mesma quarta-feira, em que morreram 1.103 brasileiros pela covid-19, o presidente e seu filho e divulgador, conhecido pela alcunha de Carluxo, foram à Polícia Federal. Aquela que está investigando o presidente da suspeita de intervir nela mesma. Ao lado de um receptivo diretor-geral Rolando de Souza, o presidente se exibiu dando tiros com várias armas, o que pode ser conferido no vídeo postado nesse jornal pela competente Bela Megale. Quem olhar no futuro essa cena, e for informado do contexto do país naquele dia, se perguntará: que presidente é este? Teremos dificuldade de explicar.


No tempo de hoje vamos vivendo o insólito. Um ex-ministro da Educação, investigado por racismo e por ameaça às instituições democráticas, foi indicado para diretor executivo do Banco Mundial. A instituição passou os últimos anos atualizando seus valores para fugir exatamente do que o ministro leva na bagagem das suas convicções.

No futuro duvidaremos de nós quando relatarmos aos mais novos que tudo estava fora do lugar no mesmo momento. O ministro do Meio Ambiente é aliado de desmatadores, o presidente da Fundação Palmares ofende Zumbi dos Palmares, a ministra da Mulher acredita que mulheres devem se submeter aos maridos, o ministro das Relações Exteriores destrata países com os quais o Brasil tem relações e alimenta teorias conspiratórias sobre as organizações multilaterais, o Ministério da Saúde enfrenta duas demissões e uma longa interinidade no meio de uma pandemia, um militar chefia a Casa Civil, e o ministro da Justiça acha que o presidente é um profeta.

Será difícil explicar o contorcionismo dos últimos dias em torno do caso Queiroz. Sumido há muito tempo, ele foi encontrado na casa do advogado que defendia Flávio Bolsonaro e o próprio presidente. Frederick Wassef é realmente um fenômeno. Inicialmente ele negou que conhecesse seu próprio hóspede. Depois disse à “Veja” que escondeu Queiroz para proteger o presidente da República. O ex-assessor poderia ser morto e o presidente, responsabilizado. Quem no futuro não entender essa rocambolesca história não deve se culpar. Não será a única estranheza do caso. A Justiça do Rio deu ao filho mais velho do presidente o direito a foro por prerrogativa de função que ele já não exerce. Inventou a prerrogativa de ex. Um detalhe talvez comprometa mais ainda a verossimilhança dos eventos: o governo foi eleito dizendo que combateria a corrupção.

O brasileiro vive dois grandes tormentos: uma pandemia e a pior crise econômica. Nesse quadro o presidente propôs aos ministros “escancarar”. A verdade sobre a pandemia? Não. A necessidade de proteger a população? Não. As medidas para socorrer pessoas e empresas contra a crise econômica? Não. Ele propôs escancarar a liberação das armas.

Mais armas nas mãos das pessoas, e menos punição para os delitos de trânsito. Eis a solução para todos os nossos problemas, da covid-19 à recessão econômica.

Os desatinos diários, os berros, as palavras chulas, a falta de demonstração de sentimento em relação às vítimas da tragédia tudo se tornou tão rotineiro que o país foi se acostumando. Por isso, só daqui a muito tempo teremos dimensão da ignomínia vivida pelos brasileiros nesse triste momento da nossa história. Nos últimos dias o presidente não foi a qualquer manifestação antidemocrática, não ameaçou chamar as Forças Armadas contra o Supremo, não mandou jornalistas calarem a boca. Dizem que daqui para frente tudo vai ser diferente. Que ele vai se comportar para escapar dos inquéritos do Supremo e vencer a eleição para um segundo mandato presidencial. Contando, ninguém acredita.