sexta-feira, 27 de outubro de 2023

A guerra

A guerra que aflige com os seus esquadrões o Mundo,
É o tipo perfeito do erro da filosofia.
A guerra, como todo humano, quer alterar.
Mas a guerra, mais do que tudo, quer alterar e alterar muito
E alterar depressa.
Mas a guerra inflige a morte.
E a morte é o desprezo do Universo por nós.
Tendo por consequência a morte, a guerra prova que é falsa.
Sendo falsa, prova que é falso todo o querer alterar.
Deixemos o universo exterior e os outros homens onde a Natureza os pôs.
Tudo é orgulho e inconsciência.
Tudo é querer mexer-se, fazer coisas, deixar rasto.
Para o coração e o comandante dos esquadrões
Regressa aos bocados o universo exterior.
A química direta da Natureza
Não deixa lugar vago para o pensamento.
A humanidade é uma revolta de escravos.
A humanidade é um governo usurpado pelo povo.
Existe porque usurpou, mas erra porque usurpar é não ter direito.
Deixai existir o mundo exterior e a humanidade natural!
Paz a todas as coisas pré-humanas, mesmo no homem!
Paz à essência inteiramente exterior do Universo!

Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)





Tudo que eles querem é guerra

All we need is love. A guerra é a continuidade de política por outros meios; eles, os políticos e demais governantes, precisam e querem a guerra para prosseguir com seus jogos de poder e dinheiro, na insana, danosa e ilusória corrida para ser o mais rico e poderoso.


A guerra inviabiliza o diálogo, e sem diálogo não há amor, que é all we need e não custa caro nem carece de queimar mais petróleo, nem de crescer o PIB nem, muito menos, de guerras. Pelo contrário!

Fala-se que crer que all we need is love é utópico, ilusório, mas tal crença não é mais irreal que sonhar tornar-se o mais rico e poderoso mediante armas, ouro e domínio sobre pessoas; o primeiro caminho traz esperança, cooperação, harmonia, paz; o segundo desesperança, intriga, ódio, disputa e guerra. Embora semelhantes quanto a serem utópicos ou distópicos, qual é melhor, qual mais promissor?


Imagine que não há mais países, nem religiões, nenhum motivo para matar ou morrer; tal utopia não é menos irreal que a distopia de imaginar que alguém conseguirá poder perene e absoluto, e é preferível a esta última! Temos que superar as ideias herdadas, de que a luta por poder e dinheiro é a única via!

Claro, tal luta existe, como nos mostram as guerras em curso, entre países e entre grupos, assim como a maioria das opções adotadas por políticos e demais governantes. Decisões que beneficiam, entre outros, produtores de armas, destroem a natureza e prejudicam crianças, idosos, jovens e quase todos! Tudo, em busca do sonho irreal de se tornar o mais rico e poderoso, e de tentar resistir aos ventos de mudança que solapam a fugaz e pretensa antiga dominância!

O mundo mudou e, assim, as ideias carecem de alteração. As atividades tradicionais de busca por riqueza, poder e glória já se revelaram o que são: ações a um só tempo genocidas e suicidas. Para que continuar no mesmo rumo, se tal trilha compromete a vida de nossos filhos e netos?

Toda guerra é uma negociata, travestida de (falsas) boas intenções! Há muito dinheiro sendo ganho; follow the money, é recomendação para que se encontrem os beneficiários, que são também os culpados pelos morticínios. Quem ganha com as guerras em curso? Pessoas em busca de poder e dinheiro, psicopatas que não se preocupam em fazer mal a outros e assumem governos e empresas não para promover um mundo sem guerras, cooperativo e fraterno, mas para continuar a minar as chances de sobrevivência da espécie humana e de outras.

Tudo, em busca do ideal não realizável nem sustentável de assumir controle total; melhor optar por caminho que valorize a convivência, a cooperação, a fraternidade. Esta última via, ridicularizada sob a acusação de ser irrealista, não é mais sonhadora que a opção de políticos e outros, que nos condena ao genocídio e ao suicídio. Ainda há tempo para acordarmos e alterarmos o rumo, mas essa janela está se fechando. Lembremo-nos, por mais que muitos evitem dizê-lo para não parecerem ingênuos: all we need is love!

Queridos estadunidenses

Queridos estadunidenses


Imagino-vos exaustos.

Tenho acompanhado as notícias. Vejo-vos atordoados, como pugilistas após um combate, cansados de defender a punho os vossos pensamentos e posicionamentos ideológicos, recolhidos no canto do ringue, com a cabeça a latejar da luta que dura desde o nascimento da América, pelos cálculos dos indígenas norte-americanos e dos descendentes dos povos escravizados. Vejo-vos à procura do norte, entre o ruído de uma multidão de espectadores entusiasmados e outros tantos agitadores profissionais que só vos conhecem dos filmes e livros. Vencedores? Diria que não existem, porque à medida que as posições se extremam, a questão que nos resta fazer é apenas uma: quem realmente sairá beneficiado desse arranca-rabo entre gringos?

“Win or bust.” Temos vindo a interiorizar o mantra dos vitoriosos. Aprendemos que, seja qual for a circunstância, não esperamos nada menos do que o aplicar do esforço máximo para atingir o objetivo declarado, tendo o fracasso total como única alternativa. Os empates são inadmissíveis: ninguém se lembra deles. Não se escrevem canções, a Netflix não compra os direitos nem se vendem jornais com empates. Na política, não é diferente. O empate dói mais do que a derrota porque, ao fim de um par de dias, este desaparecerá da memória coletiva sem pompa, sem direito a placa comemorativa ou página na Wikipedia alusiva ao dia em que o bom senso reinou entre rivais.

Para quem apostou o seu dinheiro ou o seu carácter, ficar a chuchar no dedo sem poder gritar vitória, imagino que seja no mínimo frustrante. Heróis e vilões, precisa-se deles. São úteis para alimentar dogmas e utopias políticas, mesmo que o herói não tenha vocação para tal e o vilão até ajude velhinhas a atravessar a rua. Ver-vos assim acossados mete dó. Devem estar a sentir saudades dos bons velhos tempos. Pena que a Guerra Fria tenha esfriado, que a Cortina de Ferro já não exista e que a Cuba comunista, sem Fidel, já não seja bem a mesma. Nós, as minorias étnicas que conhecemos bem o sabor amargo da derrota, podemos afirmar: há de passar.


Queridos, vos quero bem. Também me virou o estômago ver a bandeira da Confederação desfilar pelos corredores da casa da democracia. Naquele momento, soou dentro de mim a melodia acompanhada dos versos: “Dormia/ A nossa pátria-mãe tão distraída/ Sem perceber que era subtraída/ Em tenebrosas transações”. O samba-exaltação é de Chico Buarque, tão genial e tão merecedor de um Nobel quanto Dylan, por ter também criado uma nova expressão poética dentro da grande tradição da canção (sul) americana. E falando em canções, por favor, ouçam mais brasileiros, só vos fará bem. Eles, tal como vocês, fazem delas verdadeiras teses poéticas para entendermos a condição humana. Se jazz e blues são a vossa praia, sejam aventureiros e procurem Chiquinha Gonzaga e Pixinguinha e lavem a alma no chorinho.

Lamento que não tenham resolvido, vocês que puseram o primeiro homem na Lua, essa coisa do racismo. Enquanto não o fizerem, outras nações se desculparão com a ladainha de sempre: nos Estados Unidos da América é pior. Como se existissem Olimpíadas do racismo e o ouro brilhasse sempre nos vossos pescoços. Salvo as menções honrosas para países como o Brasil e os do Leste Europeu, chega a ser poético olhar para a lista do Comité Olímpico: 1 — Estados Unidos, 1022 medalhas de ouro; 2 — Rússia, 395; 3 — Grã-Bretanha, 263; 4 — China, 227; 5 —França, 212.

Sabem, um comentário que proferi no passado e que me deixou na mira dos racistas de plantão que pululam nas redes sociais foi quando disse que todo homem negro, conscientemente ou não, à dada altura da vida, já odiou o homem branco: a sua cultura, a sua língua e o poder que exerce sobre nós, os negros. Já invejou — melhor, continua a invejar-lhe — o maior valor da humanidade, a liberdade de simplesmente existir. Desculpai trazer um assunto doloroso, mas não posso deixar de apontar que o ataque ao Capitólio foi um esfregar nas fuças de todos nós, homens, mulheres e queers que gritam “vidas negras importam”, esse tal de privilégio branco que os afetados por ele insistem em denunciar, mas todos os que dele se beneficiam insistem em negar — ou, ainda, os que sabem exatamente como o mundo funciona insistem em assobiar para o lado, como se não fosse com eles.

A violência perpetuada contra os corpos negros — nas mãos de civis, milícias, organizações racistas, grupos de extrema direita e até do próprio Estado — é a mesma violência que matou Abraham Lincoln e os dois Kennedy e subiu a colina do Capitólio e matou o agente Brian D. Sicknick. Essa raiva alimenta-se acima de tudo da indiferença cúmplice de pessoas do bem. Pagadores de impostos, devotos e amantes da lei e da ordem. Essa violência é também lucrativa, só assim podemos explicar que ainda se mantenha, agarrada ao inconsciente caucasiano onde a ideia de que a maldição divina aponta os africanos como descendentes de Caim, o primeiro homicida da história, é algo real. Eu, como fruto dessa árvore genealógica e solidário para com os irmãos e irmãs das diásporas americanas, rogo a Deus: livrai-nos dessa penitência.

Queridos estadunidenses, continuo a ter-vos afeto. Só isso explica as horas passadas colado ao ecrã a ver o repetir de imagens semelhantes às que me chegaram do norte de África há uma década, quando o jovem Mohamed Bouazizi, vendedor ambulante formado em engenharia, viu ser-lhe confiscado o ganha-pão pela polícia. Além de lhe quebrarem o espírito, exigindo o jabaculê da praxe, infligiram-lhe humilhações que culminaram na sua autoimolação. Um protesto trágico contra o desemprego e a pobreza na Tunísia que deu início à Revolução de Jasmim e derrubou o ditador Ben Ali. As imagens da insurreição na sede da democracia norte-americana me fizeram lembrar as da Primavera Árabe e de todas as outras revoluções e transformações políticas que direta ou indiretamente tiveram o dedo dos Estados Unidos. Mas o que é chocante é que vós, estadunidenses patriotas, não pedis o fim de ditaduras, mas para que seja instaurada uma no vosso país.

O que a insurreição em Washington expôs não foram só as vossas divisões políticas. Eu, filho da Guerra Fria nascido e criado em Benguela, pendurado nos galhos duma mangueira no meu quintal que me servia de camarote, vi, na conturbada década de 1980, o capitalismo derrotar o socialismo marxista. Eu vi, ninguém me contou. Começou nas matas, depois no mar de Cabinda, passou para cidades e de seguida para dentrodas casas de angolanos como eu. E, de repente, o dólar nos fez confiar no seu poder divino e as kinguilas viram as sacerdotisas da economia paralela em Angola. Por isso, mas não apenas por isso, como não nos sentirmos afetados? Quer se queira, quer não, até o centro do mundo se mudar para Pequim, o vosso Capitólio é um pouco nosso também.

A maior tragédia norte-americana é o negacionismo da sua própria história. Martin Luther King, chamado a comentar a morte de John F. Kennedy, afirmou: “O padrão imperdoável da nossa sociedade foi o fracasso em prender os assassinos [de líderes dos direitos civis assassinados]”. É um julgamento severo, mas inegavelmente verdadeiro, que a causa da indiferença foi a identidade das vítimas. Quase todos eram negros. E assim a praga se alastrou até reivindicar o mais eminente dos norte-americanos, um presidente muito amado e respeitado. A indiferença talvez seja o vosso maior pecado.

Queridos estadunidenses, não vos faltaram vozes que pregassem, dos dois lados do corredor, o que acontece quando não se denuncia e condena a supremacia branca. Ouçam-nas e que Deus vos abençoe, que Deus salve os Estados Unidos da América.
Kalaf Epalanga, "Minha pátria é a língua pretuguesa"

Você que defende o Hamas, já foi à 'Faixa de Gaza' carioca?

Dez anos atrás, visitei por várias vezes o bairro de Varginha (Manguinhos), na Zona Norte do Rio. Aquela região pobre e violenta estava, na época, se preparando para receber a visita do papa Francisco, durante a Jornada Mundial da Juventude. É um bairro da região chamada de "Faixa de Gaza carioca", nome que se refere aos tiroteios entre traficantes rivais e as forças de segurança.

Sempre me pergunto como as pessoas conseguem viver num ambiente desses, de tanta violência. Claro, não há muita alternativa, não há para onde ir. E aparentemente não tem muita gente poderosa interessada em mudar o cenário.

Vivo na Zona Sul carioca, num bairro seguro e próspero. Tenho plena consciência que tal tranquilidade se deve à presença das forças de segurança. As mesmas forças que mataram, no ano passado, mais de 1.300 pessoas no Rio de Janeiro, numa cidade de talvez 7 milhões de habitantes.

Para você ter uma ideia: as forças policiais de todos os Estados Unidos mataram, no mesmo ano, um total de 1.200 pessoas. Em todo o país de 332 milhões de pessoas! E os ataques terroristas do grupo Hamas contra Israel, no dia 7 de outubro, mataram cerca de 1.400 israelenses. Num país de 9 milhões de habitantes.

Espanta-me ver como pessoas intelectuais, na maioria da tal "esquerda", condenam Israel e seus aliados e justificam as ações do Hamas. Principalmente quando se trata de pessoas de classe média e média-alta que também vivem na protegida Zona Sul carioca. Aliás, condenam a brutalidade policial no Rio, e com razão. Mas vivem suas vidas bacanas graças a essa mesma proteção policial.

A mesma polícia mata o traficante que vendeu a maconha para o tal "intelectual". Que, por outro lado, nasceu com uma vacina social que o protege da violência do Estado: ser branco e rico. E se os traficantes entrassem na casa dele para matar ou sequestrar os filhos dele, ele chamaria a polícia ou festejaria a "luta dos oprimidos"?

Sei que é difícil solucionar conflitos, tanto nas áreas pobres do Rio quanto no Oriente Médio. Também sei que há violações por todos os lados. E na falta de soluções, buscamos refúgio na nossa própria hipocrisia. Mas até para ela tem limite, acho. A atual capa da Carta Capital, chamando o presidente americano, Joe Biden, e o primeiro-ministro israelense de "senhores da guerra", que se "unem por um mundo pior", o ultrapassou. "A mídia nativa insiste na tese do terrorismo do Hamas", escreve Mino Carta. Espanto total!

Mais uma vez, parte da intelligentsia se faz de idiota útil para defender terroristas, ditadores e a máfia, como o Hamas. Fazem a mesma coisa com os Putins, Ortegas, Assads e Castros da vida. A América Latina, marcada por sua herança católica, gosta dos seus ditadores, e costumam confundi-los com libertadores.

Acham que os brutais ditadores de países como Síria, Nicarágua ou Irã são heróis por se oporem aos yankee-imperialistas. Defendem países onde feministas e gays são perseguidos e onde a classe dominante tem vida boa enquanto o resto da população foge para os países ocidentais, buscando democracia e Estado de Direito, pois não querem viver num país mafioso ou numa loucura religiosa.

Eu me pergunto se esses mesmos intelectuais que defendem o Hamas aqui nas Zonas Suis brasileiras já pisaram na "Faixa de Gaza carioca".