domingo, 29 de outubro de 2023

Responda, silêncio!

Pergunto ao Ocidente: vão criar uma nova atmosfera de cruzadas contra o Crescente [emblema da religião muçulmana]? Vocês lamentaram as crianças mortas na Ucrânia, por que esse silêncio diante das crianças mortas em Gaza?
Recep Tayyip Erdogan, presidente da Turquia

De olhos bem abertos

As comunidades humanas sempre viveram atentas ao que estava fora do local em que habitavam. Bestas selvagens, invasores, salteadores, contrabandistas, ladrões, vizinhos cobiçosos, tudo representava perigo. Fogueiras, vigilantes, muros, cercas, fossos, torres, trincheiras, rochas e estacas pontiagudas, muita coisa foi usada para proteger o território de referência.

Os olhos que se abriam para fora também precisavam olhar para dentro, para os inimigos internos, servidores corruptos, conspiradores, malfeitores. A ideia de segurança nasceu colada ao poder político.

As ameaças internas e externas aumentaram quando as sociedades ficaram maiores e mais encorpadas: pressões internacionais, transações fraudulentas, corrupção, tráfico, crime organizado. As tecnologias passaram a prover recursos de defesa, ataque, vigilância e segurança aos Estados, que aos poucos se tornaram complexos industrial-militares, prontos para a guerra e para a submissão de outros povos e Estados.

Negociadores, embaixadores, diplomatas, estadistas acompanharam esse processo. Sem eles, a história da humanidade seria contada de outra maneira, haveria muito mais sangue a tingir a paisagem. Tal corpo de amigos da paz, da palavra, do diálogo, forma o que os humanos produziram de melhor. Com ele, forjou-se uma cultura disposta a evitar o prolongamento insano de guerras e conflitos.

Quando estes profissionais do diálogo faltam, Estados e governos passam a liberar toxinas que envenenam vidas e sistemas: entregam-se à agressão, ao próprio fortalecimento, estimulam resistências inflamadas, que descambam no terror e geram reações recíprocas igualmente terroristas.


Conflitos dramáticos podem surgir por causas fortuitas. Outras vezes, os motivos são étnicos, religiosos, ligados a terras tidas como sagradas e a postulações identitárias. Não raro, conflitos nascem e crescem embalados por motivações justas e injustas, erros de cálculo, desentendimentos que atravessam os tempos e se cristalizam.

Ao olhar para esta estúpida guerra entre Israel e Hamas, não consigo deixar de pensar que ela se desencadeou porque os amigos da paz e os estadistas deixaram de prevalecer. No lugar deles, instalou-se um deserto de ideias e iniciativas construtivas. A raiva, o ódio acumulado, a miséria palestina, o medo israelense atiçaram os lados em conflito. A região ficou vazia de talentos para produzir sensatez e moderação. A política submergiu e a autoridade política esfarelou. O conflito, com isso, foi-se tornando fato consumado, entranhando-se nos corações e nas mentes de povos irmãos.

Populações impedidas de viver livremente em suas terras ancestrais em algum momento se revoltarão. Passarão a hostilizar seus opressores. Trocarão a ação política pela violência, animadas por extremistas, pela emoção e pela paixão. O que se chama de terrorismo, como o do Hamas, nasce e cresce neste solo de desolação, desesperança e exasperação. Quando, por outro lado, as revoltas privilegiam a política, convertem-se em atores com legitimidade e capacidade de negociação. Foi o que tentou fazer Yasser Arafat nos anos 1970, quando afastou o Fatah e a OLP do terrorismo e os converteu em organizações políticas, dedicadas a “criar uma Palestina unida e democrática, na qual cristãos, judeus e muçulmanos possam viver juntos em condições de igualdade”.

Governantes podem ir à guerra para obter apoio interno. Podem fazer isso para recuperar o apoio perdido e, sem se dar conta, produzir mais divisão interna e, no limite, não conseguir mais se legitimar. Podem se cercar de fanáticos fundamentalistas, tão malignos quanto os piores terroristas. Aderem, assim, ao si vis pacem, para bellum. Netanyahu é o melhor exemplo atual.

Conflitos regionais despertam os vizinhos e as grandes potências. Manobras por hegemonia e interesses geopolíticos prevalecem sobre as perspectivas humanitárias. Guerras são processos dificilmente controláveis, expostas que estão a partes mal coordenadas, a disputas entre potências, a extremistas e fanáticos, a raivas e ódios mal processados. São a continuação da política por outros meios, mas sempre tendem, ao serem escaladas, a perder sua politicidade e a ficar sem política. Atingem seu ápice quando se convertem em confronto desencarnado entre extremistas inimigos da paz.

Hoje, com um sistema internacional fragmentado, ao sabor de novos arranjos entre as potências e com pouca coordenação, equilíbrios e entendimentos ficaram onerosos. Judeus e palestinos precisam do mundo. Mas de um mundo politicamente articulado, sem condutas unilaterais, como as de Netanyahu e dos EUA.

Há muitas trevas onde deveria prevalecer a luz. Misturamse fatos, desinformação, narrativas e disputas pela verdade. A sensação é de que todos sabem de tudo, quando, no fundo, muitos poucos sabem alguma coisa. Ninguém compreende como um conflito pode se arrastar por décadas sem que se vislumbrem vias de superação.

Se, nestes dias funestos, a humanidade ficasse diante do espelho, sentiria vergonha de si própria.

Oração de um povo sofrido

Deus me livre dos corruptos. Dos vendidos. Dos que vendem. Dos que trocam seu povo honesto por qualquer propina e milhão.

Deus me livre dos sonsos e cínicos. Dos que riem e me arrombam a alma. Dos que ganham meu voto e me desprotegem. Dos que só pensam em seu tostão.

Deus me livre dos que desviam. Tanto que levam à falências. Dos que deixam seu povo à míngua. Humilhado e sem salários.

Deus me livre dos que fecham universidades e hospitais. Dos que sucateiam escolas. Dos que trocam seu povo por qualquer anel.


Deus me livre das escolhas podres. De me contentar em escolher o menos pior.

Deus me livre dos ruins. Dos corruptos. Dos sem lei. Dos sem culpa. Sem remorsos. Dos que maltratam por sentir prazer.

Deus me livre da cara limpa que esconde a alma suja. Deus me livre da justiça injusta. Dos que olham e fingem não ver. Deus proteja os pobres. Esse povo que ninguém cuida.

Deus me livre dos homicidas. Eleitos por um povo ingênuo. Deus me livre de todos eles. E perdoe o voto meu.

Deus olhe por esse povo sofrido. E dê de volta a esperança que essa gente má comeu.
Mônica Raouf El Bayeh

Entre a sede de vingança e os horrores da guerra

Circula nas redes sociais a foto de dois meninos de mãos dadas, um com a camisa azul de Israel e seu quipá, e outro com a bandeira palestina e seu lenço quadriculado. É uma mensagem utópica: a convivência fraterna entre palestinos e israelenses. O presente na Palestina é absurdamente distópico. Na guerra da Faixa de Gaza, ambos os lados têm lugar de fala, com um rosário de argumentos para ir à guerra. Entretanto, nada justifica o ataque terrorista do Hamas ao território de Israel, nem legitima o massacre de civis palestinos, principalmente crianças, mulheres e idosos pelo Exército israelense. É uma espécie de Lei de Talião ao quadrado: olho por olhos, dente por dentes.

Havia um “tit for tat” na relação de Israel com seus inimigos na região. A expressão vem do holandês dit vor dat, “este por esse”, que corresponde à expressão latina quid pro quo — “uma coisa pela outra”. Consistia numa política que alternava retaliação ao Hamas, sempre que havia uma agressão, e cooperação tácita, após o cessar-fogo. Essa estratégia enfraquecia a Autoridade Palestina, inviabilizava a criação de um Estado palestino independente e possibilitava a colonização nos territórios ocupados por Israel na Cisjordânia. Entretanto, saiu do controle. O Hamas se fortaleceu e promoveu um violento ataque terrorista, que pegou de surpresa o governo de Benjamin Netanyahu.

Não há dúvida de que Israel será vitorioso contra o Hamas, graças ao seu poderio bélico, que inclui armamento nuclear, e o apoio militar e diplomático dos Estados Unidos, que inibe ação dos demais inimigos de Israel, principalmente o Irã. O pronunciamento de Netanyahu, ontem, mostra a disposição de levar a guerra às últimas consequências, ou seja, reduzir a Faixa de Gaza a escombros. A ofensiva em Gaza é tratada pelo governo de Israel como uma segunda guerra da independência.


É uma remissão à Guerra do Yom Kippur, em 1973, quando a Síria e o Egito invadiram Israel, cujo bastidor é retratado no filme Golda — A mulher de uma Nação, com a atriz Helen Mirren. O diretor Guy Nattiv conduz a narrativa para mostrar um modo de fazer política no qual o objetivo de salvar o país e resgatar seus soldados presos, porém, nunca esteve descolado da ambição de conquistar o reconhecimento diplomático e um acordo de fronteira com o principal agressor, o Egito.

Golda Meyerson, Mabovitch quando solteira, nasceu em Kiev, na Ucrânia, em 3 de maio de 1898. Ainda criança, emigrou com os pais para os Estados Unidos (1906) e, em 1921, estabeleceu-se na Palestina. Ali, começou a trabalhar para a criação do Estado de Israel, aliando-se ao movimento sindical Histadrut e ao Partido Trabalhista (Mapai). Foi embaixadora na União Soviética, ministra do Trabalho, chanceler e secretária-geral do Mapai. Tornou-se primeira-ministra em 1969, após a morte de Levi Eschkols. De centro esquerda, o Mapai é sionista e social democrata.

Benjamin “Bibi” Netanyahu ocupa o cargo de primeiro-ministro de Israel pela terceira vez. Chefe do partido Likud, já havia liderado o país de 1996 a 1999 e de 2009 a 2021. Natural de Tel Aviv, é o primeiro-chefe de Estado que nasceu em Israel, em 21 de outubro de 1949. O Likud congrega a centro-direita e a direita conservadora. Foi criado em 1973, como uma coalizão liderada pelo partido Herut, que representa os sionistas revisionistas. Acusado de corrupção, Netanyahu enfrenta forte oposição popular, por causa de sua proposta de reforma do Judiciário, cujo objetivo é transformar a democracia de Israel num regime iliberal.

A retaliação de Israel ao Hamas ganha contornos de limpeza étnica, com a expulsão dos palestinos da Faixa de Gaza, que só não ocorreu ainda porque as fronteiras com o Egito estão fechadas. Em tese, só haverá paz quando a sede de vingança for ultrapassada pela consciência dos horrores da guerra. E as crianças que aparecem na foto, qual o destino delas? Sem um acordo de paz que possibilite a erradicação do terrorismo e a criação do Estado palestino, serão inimigas pelo resto das suas vidas?

Em setembro de 2015, a imagem de outra criança viralizou nas redes sociais: o corpo de Alan Kurdi, de 3 anos, amanheceu numa praia da costa da Turquia. A foto de Nilüfer Demi chocou a opinião pública mundial e desnudou a tragédia humanitária que ocorre no Mediterrâneo, com milhões de refugiados. Abdullah Kurdi, com a mulher e dois filhos, naufragou num bote de borracha no qual embarcara em Bodrum, na Turquia, para chegar a Cós, ilha grega no Mar Egeu. O objetivo da família era migrar para o Canadá e começar uma nova vida, com ajuda de Teema, tia do menino, que lá trabalhava como cabeleireira em Vancouver. Somente Abdullah sobreviveu. Poderiam ter feito esse trajeto de avião, mas não tinham passaportes. Como os curdos da Turquia, os palestinos da Faixa de Gaza serão tratados como párias.

As fronteiras abertas

A faixa de Gaza brasileira pode ser colocada em diversos pontos do imenso território nacional. Nos últimos tempos, ela se estabeleceu no Rio de Janeiro, especificamente na Zona Oeste da cidade, que une condomínios de alto luxo a residências pobres e favelas. Em meio a tudo isso operam aparentemente sem qualquer controle do estado as milícias que brigam entre sí para vender proteção, produtos, serviços e drogas para a população. As polícias no Rio de Janeiro são parte do problema e não da solução.

O governador Cláudio Castro embarcou rapidamente para Brasília em busca de algum auxílio. Cerca de 300 soldados da Força Nacional já estão nas terras cariocas com objetivo de fiscalizar as rodovias federais, cuidadosamente orientados para não trabalhar em conjunto com as polícias do estado. Não é bom misturar os esforços naquele pedaço. Mas os militares fizeram, ao tempo do governo Temer, uma intervenção federal que custou mais de um bilhão e meio de reais e a situação continua péssima. Não há secretaria de segurança pública no Rio.

Este é o retrato da situação da segurança no Rio de Janeiro. Mas há outro ângulo para observar o fenômeno. O Brasil não produz cocaína. Os principais produtores são, pela ordem: Colômbia, Peru e Bolívia. O maior mercado consumidor é o norte-americano. A droga escoa das costas colombianas, e da Venezuela, por mar ou ar para alcançar às cidades do hemisfério norte. Outro grande mercado consumidor é a Europa. Mas entre o produtor e o consumidor está o Brasil. As rotas são conhecidas. Vem pelo Rio Solimões, voa para Suriname, entra pelo Paraguai, pela rodovia interoceânica que chega ao Acre, entre outros caminhos. Este é um problema sério. O governo Lula cogita de aumentar a presença do Estado na faixa de fronteira de 150 para 250 quilômetros.



Mas com apenas os 150 quilômetros atuais, a faixa de fronteira já abrange 588 municípios de 11 Estados – Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Paraná, Rio Grande do Sul, Rondônia, Roraima e Santa Catarina. Essa área corresponde a 27% do território brasileiro. E milhões de pessoas vivem nela. Outra ideia é realocar o programa Calha Norte, que deixaria de ser do Ministério da Defesa para ficar sob a proteção do Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional. O Calha Norte foi criado em 1985 e conectado à pasta da Defesa em 1999, orientado para promover a ocupação nas áreas de fronteira.

No plano da realidade, as fronteiras brasileiras são muito mal policiadas e defendidas. A Aeronáutica não dispõe do material necessário para realizar a vigilância mínima na enorme fronteira seca do país que vai desde a Guina Francesa até a fronteira com o Uruguai. O Exército faz alguns movimentos para demonstrar sua capacidade, está instalado em todo território nacional, mas não possui uma força de deslocamento rápido. O Exército foi criado em torno do projeto de combate contra os países do sul. Lentamente, ele percebeu que os possíveis inimigos estão no Norte, na selva amazônica. É por ali, por terra, ar e via fluvial, que entram as drogas.

A Marinha é um caso escandaloso. O poder naval tem sofrido o maior nível de degradação nos últimos anos. A falta de prioridade de sucessivos governos e a redução de investimentos para obtenção, operação, manutenção e modernização de meios contribuiu para uma diminuição gradativa e constante da Marinha do Brasil. A força enfrenta a obsolescência de navios, que levará a uma redução da atual frota em cerca de 40 % até o ano de 2028. É inquestionável a importância da construção de submarinos convencionais e um nuclear em Itaguaí, no Rio de Janeiro. Mas o Álvaro Alberto só deverá ser incorporado em 2037, se as negociações para transferência de tecnologia sensível com governo francês chegarem a bom termo.

Neste ano de 2023, três submarinos foram desincorporados, ou aposentados. O Timbira, o Tapajós e Tamoio. O Brasil não possui Guarda Costeira e a Marinha não consegue vigiar toda a vasta costa brasileira, nem fazer a vigilância razoável nos rios da Amazônia. A costa norte do país é completamente desprotegida. Trata-se de um paraíso para contrabandistas de todos os quilates. A Marinha mantém a base aérea em São Pedro de Aldeia, no estado do Rio de Janeiro, onde utiliza os velhos A4 Skyhawk que deveriam pousar em porta-aviões, mas a força naval não mais possui um navio aeródromo. A Marinha do Brasil opera 70 mil funcionários, somando civis e militares. A Polícia Militar de São Paulo possui mais de 100 mil funcionários, 28 aeronaves, dois navios de combate, 452 embarcações, 16 mil veículos, 450 cavalos, 430 cães e 120 batalhões. A Marinha é menor que a polícia paulista.