sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Imagem do Dia

Hanging Palace, Cangyan Shan, China:
Palácio Hanging, em Cangyan Shan (China)

Venha o tsunami

Todos ainda nos lembramos dos tsunamis que atingiram a Malásia, a Indonésia e a Tailândia, em 2004, e o Japão, em 2011. Alguns nasceram de um terremoto. Outros começaram por um vazamento da maré, que deixava a seco em minutos uma vasta extensão da orla —como se o mar, por motivos só dele, estivesse convocando as águas para seu seio. De repente, descobria-se que ele fizera aquilo para se atirar com força monstruosa sobre o continente e, então, já era tarde para correr.
As imagens, tomadas de longe e sem áudio, mostram um espesso lençol de água que chega à praia e, em vez de, em certo momento, estacar e refluir, parece disposto a não parar nunca —continua avançando com o mesmo volume, levando com ele barcos, árvores, casas, pessoas e carros. Visto de perto (e alguns heróis conseguiram registrá-lo a curta distância), pode-se ouvir o ronco do mar, os sons da destruição e o desespero das vítimas.

Cidades tiveram seu território em grande parte arrasado, ilhas submergiram inteiras, centenas de milhares morreram e o prejuízo foi gigante. Mas, exceto pelas vidas que se perderam, aqueles países já reconstruíram tudo —eles são assim. Futuros tsunamis, se vierem, não os pegarão desprevenidos.

No Brasil, esta semana, o procurador regional da República Carlos Fernando dos Santos Lima, um dos principais nomes da Operação Lava Jato, comparou as delações da Odebrecht, já tomadas e em processamento, a um tsunami. Quando elas vierem a público, a água atingirá o sistema político brasileiro em todos os seus níveis. Arrastará uma população de corruptos -figurões, intermediários, peixinhos- e desnudará por igual as práticas dos partidos, de esquerda, direita ou o que for.

Ótimo. Se houver sobreviventes, que eles enterrem os seus mortos. O Brasil viverá.

Dica para o Carnaval

Leituras proibidas (Almeida Júnior), 1887
Amar a leitura é trocar horas de tédio por horas de inefável e deliciosa companhia
John Fitzgerald Kennedy

Lava Jato precisa de um sentimento de 'STFfobia'

Foi às ruas a 38ª fase da Lava-Jato. Chama-se Blackout —uma ironia da Polícia Federal com o sobrenome dos dois principais alvos da operação: Jorge Luz e Bruno Luz. Pai e filho, ambos operadores financeiros do assalto à Petrobas. Azeitaram propinas estimadas em US$ 40 milhões.

Entre os beneficiários do roubo estão, novamente, senadores do PMDB, acusam os investigadores. Espanto! São ''pessoas que ainda estão no cargo, gozando de foro privilegiado'', alfineta o procurador da República Diogo Castor de Mattos. Pasmo!! Em notas oficiais, Renan Calherios e Romero Jucá, respectivamente líder e presidente do PMDB, fazem pose de personagens imaculados. Assombro!!!


Ressurgem em Brasília perguntas incômodas: por que diabos o procurador-geral Rodrigo Janot e o Supremo Tribunal Federal não agem para interromper o gozo a que se refere o doutor Castor de Mattos? O que falta para que a Procuradoria e a Suprema Corte transformem o privilégio de foro num suplício de última instância, sem direito a recurso?

O que mais incomoda na Operação Lava Jato não é o espetáculo, mas a sensação de que os protagonistas permanecem em cena. O cronista Nelson Rodrigues costumava dizer que o mais exasperado problema do ser humano é o medo do rapa. “Cada um de nós vive esperando que o rapa o lace, o recolha, na primeira esquina”, ele escreveu. Falta à Lava Jato um rapa da oligarquia política com mandato.

Hoje, a turma de Brasília solta fogos para festejar o fato de que seus processos permanecem no STF, o foro dos suspeitos privilegiados. “Sem foro, com Moro”, diz o enunciado da piada que anima os congressistas. Para arrancar o riso de satisfação da cara dos afortunados detentores de mandato, seria necessário que surgisse em Brasília um sentimento de STFobia. Algo equiparável à Morofobia. O diabo é que a equipe do doutor Janot e o Supremo demoram a assumir o papel de rapa.

Paisagem brasileira

Pico da Bandeira, no Parque Nacional do Caparaó, na divisa de Minas Gerais e Espírito Santo

O Brasil amarelou! De novo!

Chegou às portas da locomotiva São Paulo, margeia as sinuosas praias nordestinas, tomou os vales campestres de Minas e ameaça se espalhar rapidamente como pandemia por esse Brasil varonil. A febre amarela retornou com tudo. E segue em franco avanço em meio às folias de Momo. De forma avassaladora. Já não pode ser ignorada como uma ameaça menor. É doença inacreditável para os atuais tempos de desenvolvimento. Estava relegada a sociedades que abandonaram ou nunca ofereceram qualquer condição mínima de higiene à população, saneamento básico e tratamento elementar nos sistemas de esgoto e limpeza de águas. Mas o Brasil de tantos descasos conseguiu. Voltou a figurar, com destaque, entre as nações que abrigam o mal. Já é o pior surto registrado em décadas, com focos de transmissão dispersos por inúmeras localidades, o que acendeu o alerta vermelho na Organização Mundial de Saúde. Viajantes brasileiros ou que aqui estiveram só poderão desembarcar em outras terras com a comprovação da vacina. A exigência acaba de entrar em vigor em muitas fronteiras. Suprema humilhação. A morte por um mosquito espreita agora em cada esquina, rua, floresta ou área urbana do País.


Explodem as estatísticas – lançadas na conta do famigerado Aedes Aegypti – dos casos de dengue, chicungunha, zika e, na nova temporada, da letal febre amarela. Abominável reviver a situação que acometeu gerações nos primórdios do século passado. Exatamente 100 anos se passaram desde que o médico infectologista, Oswaldo Cruz, redentor de milhares de brasileiros, debelou o mal com o combate sistemático às enfermidades decorrentes da negligência sanitária. Cruz trabalhou pela imunização obrigatória e estabeleceu parâmetros básicos para a erradicação da moléstia. Ao repetir a sina de um século atrás o País regride também a padrões rudimentares de atendimento à sociedade. Faltam vacinas. Não existe planejamento de combate sistemático à proliferação da doença. Sobram descaso e hesitação das autoridades competentes. Especialistas dizem que o Brasil está sentado em uma bomba-relógio prestes a explodir. Limita seu raio de ação ao mero monitoramento e registro das contaminações. O desafio aumenta na exata medida da demora para por em prática medidas mais eficazes de controle. Quase 300 confirmações da doença foram anotadas no Ministério da Saúde e o avanço territorial não para no mapa de risco dos focos. A Sociedade Brasileira de Virologia informou que o vírus “com certeza” dominará toda a mata atlântica em pouco tempo. O que falta exatamente para a mudança desse quadro dantesco? A migração da febre amarela de uma região a outra por pessoas infectadas tende a crescer em períodos de viagens e festejos como o atual. Apenas em Ribeirão Preto, no interior paulista, 35 macacos estão sendo analisados por suspeita de morte pela doença. Se nada for feito, decerto a realidade encontrada por Oswaldo Cruz nos idos de 1916 tenderá a se repetir de maneira mais dramática, dado o contingente potencial de atingidos nas diversas regiões. Uma triste perspectiva capaz de macular a memória daquele pioneiro médico que um dia promoveu expedições de vacina para vingar o sonho de salvar toda a população. Na luta contra o aedes pode se dizer, com perdão do trocadilho, que o Brasil amarelou de novo.

Pena da galinha


Puxei a pena e veio uma galinha
Tem mais um preso, vê se adivinha!
Puxei a pena e veio uma galinha
Tem mais um preso, vê se adivinha!
Ai, ai, Seu Cabral
De Portugal, uma lição
Só cuida do galinheiro
Quem não vai meter a mão
Puxei a pena e veio uma galinha
Tem mais um preso, vê se adivinha!
Puxei a pena e veio uma galinha
Tem mais um preso, vê se adivinha!
Se vai dar golpes por aí
Muito cuidado, muita atenção
Pois uma pena puxa outra
E ainda tem a delação
Puxei a pena e veio uma galinha
Tem mais um preso, vê se adivinha!
Puxei a pena e veio uma galinha
Tem mais um preso, vê se adivinha!
O país tava uma granja
Da maior dimensão
Agora o ladrão que quer galinha
Vai tomar canja na prisão
Puxei a pena e veio uma galinha
Tem mais um preso, vê se adivinha!
Puxei a pena e veio uma galinha
Tem mais um preso, vê se adivinha!

(Marchinha de autoria de Wagner Cinelli De Paula Freitas,.desembargador da 17.ª Câmara Cível do Rio de Janeiro, interpetada por mathues VK e o Urca Bossa Jazz)

Depois do Carnaval

O escritor Vargas Llosa disse que a Odebrecht merece um monumento por ter revelado o mecanismo de corrupção no continente. Naturalmente, referia-se ao modo de operar da empresa. A Odebrecht, na verdade, revelou o mecanismo da corrupção, apesar dela.

A primeira etapa foi de negação. Marcelo Odebrecht recusava-se a colaborar e orientava uma agressiva tática de defesa. Funcionários da Odebrecht foram enviados ao exterior para desfazer pistas, sobretudo na Suíça.

De fato, o mecanismo da Odebrecht é monumental, incluindo o uso de um banco, de cervejarias e inúmeras outras empresas que cobriam sua identidade. Mas a empreiteira só decidiu mesmo revelar toda a trama, até a internacional, quando foi descoberto o seu setor de operações estruturadas, que articulava esse imenso e sofisticado laranjal.

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O mérito real da revelação do mecanismo que unificou quase todos os governos do continente na mesma teia de corrupção é da Operação Lava Jato. Graças ao trabalho e à competência da equipe de investigadores, todos os sistemas políticos ligados à Odebrecht foram sacudidos e, em algum nível, terão de se renovar.

A Lava Jato tornou-se uma grande ajuda à imagem do Brasil. Em muitos países onde se debate o tema, é citada como o exemplo de uma investigação bem-sucedida.

Há outros ângulos desse esquema de corrupção que atingem a imagem do País. No Peru, por exemplo, foram bloqueados R$ 191 milhões de oito empresas brasileiras ligadas à Lava Jato.

Empresas brasileiras, assim no plural, aparecem nos títulos das notícias. O problema é que o Brasil tem mais de 400 empresas operando no exterior. É importante que não sejam chamuscadas, assim como é importante uma reflexão sobre como evitar que o próprio brasileiro não seja visto com suspeição.

O melhor para isso, creio, é avançar com a Lava Jato. O passo mais importante é levantar o sigilo dos 77 depoimentos de dirigentes da Odebrecht. Afinal, o que eles realmente revelam sobre o gigantesco esquema de corrupção?

É sempre possível argumentar que o sigilo favorece as investigações. Mas minha tese é que, se há um tsunami pela frente, é melhor passar logo por ele.

Espero que o sigilo prolongado não seja apenas uma visão paternalista de evitar que a crise política se aprofunde, de supor que ainda o País não está preparado.

Acrescento outro argumento: um pequeno grupo que conheça esses dados tem sempre um grande poder nas mãos. É razoável que queira torná-los públicos para evitar interpretações maliciosas sobre o prolongado silêncio.

No jornalismo costumávamos dizer que notícia é como baioneta, sentou em cima, ela espeta. Sentar em cima das delações da Odebrecht, de um fato histórico dessa dimensão continental, também pode ser dolorido.

Todas as delações com importância secundária já vieram à tona. A sensação que tenho é de estar num restaurante lento onde o garçons, de vez em quando, trazem algo para nos distrair, mas o prato principal mesmo continua no forno.

Pode ser que exista de fato uma preocupação com o processo de retomada econômica e os duros passos da jornada para recolocar o País no eixo – na verdade, uma escolha que significa apertar agora para não submergir adiante. Embora muitos contestem, acredito que o avanço das investigações e a recuperação econômica se entrelacem.

O governo tem uma diretriz de reformas necessárias e está a caminho de realizá-las. Mas o próprio governo já balizou o cenário em caso de ser atingido pela Lava Jato: quem virar réu perde o cargo. É uma norma anunciada e se for levada a efeito, creio, será recebida com a naturalidade com que se anula um gol de mão.

Supor que seja possível retardar o processo político – o tsunami envolve todo o sistema partidário – para não deter o econômico é optar por uma tática ilusória. É mais do que hora de dar a palavra aos 77 delatores da Odebrecht. Tenho vontade de começar a bater o garfo no prato vazio.

A necessidade de saber não é para contabilizar quem recebeu quanto, divertir-me com apelidos folclóricos. É a necessidade de pensar um pouco adiante, ter uma ideia de como é possível reconstruir um tecido político dilacerado.

Admiro a energia de pessoas sentadas sobre o tsunami. Mas estão sentadas também sobre o futuro do sistema político brasileiro, que depende desses dados para esboçar um mapa do caminho.

Felizmente, uma revelação dessa amplitude provoca visões diferentes. Com os dados na mesa, à disposição de todos, podem dar bons frutos.

Há um certo encanto em navegar na neblina, em improvisar ao sabor dos eventos. Mas é preciso pensar um pouco adiante, antecipar alguns passos mentalmente.

Não se trata de moldar o futuro, nem de fantasiar amanhãs que cantam. Apenas deixar esta fase de insegurança: crise, desemprego, violência crescente, distância abissal entre sistema político e sociedade.

Isso não pode dar certo. Submete a democracia brasileira a uma tensão cada vez maior. E de uma qualidade diferente do movimento das diretas. Ali estava em marcha a conquista de um direito: escolher o presidente da República.

A realidade mostrou-nos que não basta escolher um presidente pelo voto direto. É preciso construir um espaço para que se mova com decência.

A atmosfera política decaiu de tal maneira que bloqueou as saídas. É necessária uma implosão para abrir horizontes. A delação não pode ser mais uma obra inacabada que a Odebrecht contrata com o governo.

A composição polifônica precisa ser entregue ao público. Depois do carnaval, vá lá. Mas, pelo menos, no início do ano novo alternativo, que começa na Quarta-Feira de Cinzas.