quarta-feira, 22 de março de 2023

O fantasma do comunismo renasceu com o bolsonarismo

“Um fantasma ronda a Europa — o fantasma do comunismo. Todas as potências da velha Europa se aliaram numa caçada santa a esse fantasma: o papa e o czar, Metternich e Guizot, radicais franceses e policiais alemães. Que partido oposicionista não é acusado de comunista por seus adversários no governo?”

As primeiras palavras do Manifesto Comunista de 1848 publicado por Karl Marx e Friedrich Engels em Londres, em inglês, francês, alemão, flamengo e dinamarquês, parecem saltar das estantes empoeiradas para a pesquisa Ipec divulgada no domingo pelo jornal O Globo.

Para 44% dos brasileiros, o Brasil corre o risco de “virar um país comunista” sob o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Segundo a pesquisa, 33% concordam totalmente com a afirmação de que um novo regime poderia ser implantado no país; 13% concordam parcialmente com a tese. Discordam total ou parcialmente da ideia 48% dos entrevistados.

A pesquisa mostra que a essência do bolsonarismo é o anticomunismo. O ex-presidente Jair Bolsonaro trata toda a esquerda e mesmo setores liberais como uma “ameaça comunista”. Na campanha eleitoral de 2022, teve nome e sobrenome: Luiz Inácio Lula da Silva. Continua sendo um divisor de águas da política brasileira: 81% dos que afirmam que a gestão Lula é “ruim ou péssima” concordam com o risco de comunismo. Já 71% dos que consideram o governo Lula “bom ou ótimo” rejeitam a afirmação.


A “ameaça comunista” é um tema recorrente na política brasileira, corroborado pela história do Brasil. Fundado por anarquistas, sob a liderança do jornalista e crítico literário Astrojildo Pereira, o Partido Comunista surgiu em 1922. Colheu lideranças da primeira grande onda de greves operárias no Brasil, que ocorreu em 1917, o “ano vermelho”, pois coincidiu com a Revolução Russa.

O Partido Comunista logo foi posto na ilegalidade. Em janeiro de 1927, reconquistou a legalidade, com a eleição de Azevedo Lima para a Câmara de Deputados. Em agosto, foi posto novamente na ilegalidade, pela “Lei Celerada” (Decreto n° 5.221) do governo de Washington Luís. Com o trabalho assalariado e a crescente urbanização, a questão social havia emergido nas grandes cidades e se tornara um caso de polícia.

A lei limitava a atuação da oposição ao governo e a direito de reunião, pois permitia ao governo fechar por tempo determinado sindicatos, clubes ou sociedades que convocassem ou apoiassem publicamente greves ou protestos. Também proibia a propaganda desses temas e impedia a distribuição de panfletos ou jornais que apoiassem ou incitassem greves e manifestações. A imprensa foi amordaçada. Os sindicatos foram duramente reprimidos, trabalhadores estrangeiros socialistas e anarquistas foram deportados do país.

Com a entrada no Partido Comunista do líder tenentista Luiz Carlos Prestes, comandante da famosa coluna que leva seu nome e o do general Miguel Costa, o comunismo deixou de ser um fantasma. Com o levante comunista em quartéis do Rio de Janeiro, de Recife e de Natal, em novembro de 1935, durante a ditadura de Getúlio Vargas, passou a ser tratado como uma ameaça real. Com o fracasso da chamada Intentona Comunista, Prestes passou nove anos na cadeia.

Entretanto, o fantasma voltou a rondar o Brasil em 1964, durante o governo João Goulart, que assumiu o poder com a renúncia de Jânio Quadros e propôs um programa de reformas de base, entre as quais a agrária. Um discurso de Prestes na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no qual exagerava a influência comunista no governo, seria um dos pretextos para a destituição de Jango pelos militares, em março de 1964.

No livro A Mente Naufragada, o cientista político norte-americano Mark Lilla explica que o espírito reacionário difere muito do conservador. Trata-se de invocar o passado para nele viver sem transformações, o que é muito diferente da atitude do conservador, que tem o passado e suas tradições como referência para agir no presente e construir o futuro.

Lilla conclui que mente reacionária naufragou, “porque olha para os destroços de um passado que lhe parece ameaçado, e luta para salvá-lo, porque não sabe conviver com as mudanças”. Ironicamente, porém, isso faz do reacionarismo um fenômeno “moderno” no mundo da globalização e do multiculturalismo.

No Brasil, o grande porta-voz do pensamento reacionário é o ex-presidente Jair Bolsonaro, que não conseguiu se reeleger. Esgrime o fantasma do comunismo contra toda a esquerda, principalmente o PT, um partido de base operária e social-democrata, que retroalimenta o fantasma do comunismo pela sua narrativa classista e, principalmente, devido às boas relações com Cuba, Venezuela, Nicarágua e, agora, a China.

A odisseia do igualitarismo

Em duas décadas, Thomas Piketty publicou três obras muito importantes sobre a desumanidade no capitalismo: As altas rendas na França do século XX; O capital no século XXI; e Capital e ideologia. Cada uma delas contém quase mil páginas. Em 2021, lançou Uma breve história da igualdade, com somente 300 páginas. Atendeu aos pedidos dos leitores para que fosse conciso. “Apresento uma nova perspectiva acerca da história da igualdade, a partir de uma forte convicção forjada no decorrer de minhas pesquisas. A marcha rumo à igualdade é uma luta que vem de longe e pede que seja prosseguida. Observamos evoluções voltadas à igualdade de status, propriedade, renda, gênero e raça na maioria das regiões e sociedades do planeta”. O otimismo tem respaldo nos fatos.

O progresso é atestado pela Saúde. A expectativa de vida, que na média era de escassos 26 anos em 1820, passou a alcançar 72 anos em 2020. A mortalidade infantil que, no mesmo período, atingia 20% dos recém-nascidos, caiu para menos de 1% hoje. O Homo sapiens nunca sonhou com tanta longevidade. Raros sobreviviam por 50 anos. Wolfgang Mozart morreu com 35, de um edema que espalhou complicações no organismo, então a terceira causa de óbitos atrás da tuberculose e da desnutrição.

O acesso à Educação e à Cultura também aponta números alvissareiros. Há duzentos anos, só 10% da população mundial era alfabetizada, contra 85% atualmente. Os anos de alfabetização pularam de um para oito anos em nossos dias, chegando a mais de doze nos países desenvolvidos. Antigo privilégio das classes altas, as universidades se abrem de modo paulatino e, com a adoção do sistema de cotas, promovem a bem-vinda mobilidade etnorracial. Disparidades permanecem nos hemisférios Norte e Sul. Thomas Piketty, porém, enfatiza a démarche crescente de igualitarização.


Os avanços não correspondem a uma lei espontânea e linear. Resultam de mobilizações, revoltas e revoluções; e em simultâneo de dispositivos institucionais jurídicos, tributários, educacionais e eleitorais. Destaque para a igualdade formal, o sufrágio universal, a democracia parlamentar (que não se perca pelos eventuais defeitos, que são vários), a educação gratuita obrigatória, o seguro-saúde universal, o imposto progressivo sobre a renda, a herança e a propriedade, a cogestão nas administrações, a organização sindical, a liberdade de imprensa e o direito internacional. Isso tudo, num contexto global, há quarenta anos hegemonizado pelo neoliberalismo e, em consequência, apoiado na circulação descontrolada de capitais sem objetivo social nem climático, o que evoca o neocolonialismo em prol dos abastados e a mentalidade típica do hiperindividualismo yuppie.

Para Thomas Piketty, lições devem ser tiradas da retrospectiva do movimento igualitarista. “Uma, consiste em negligenciar o papel das lutas e das relações de força na história da igualdade; outra, ao contrário, em sacralizá-las e negligenciar a importância das oportunidades políticas e institucionais e o papel das ideias e das ideologias em sua elaboração”. A posição de classe não basta para cunhar uma teoria da sociedade justa sobre a propriedade, o imposto, o salário, a educação e a democracia. A indeterminação sobre tais temas leva à recomendação habermasiana para um debate amplo.

Classes plurais e multidimensionais (renda, diploma, gênero, origem) cobram paciência da opinião pública. Sua plasticidade não autoriza definir, a priori, políticas para uma série de áreas. Até a proposta de alargamento dos direitos políticos, com a ampliação da participação social, precisa ser debatida para gerar uma metodologia com critérios na alocação de recursos. As carências não coincidem e nem se expressam com a mesma intensidade nas zonais de um território nacional.

A unificação de palavras de ordem no combate às políticas desigualitárias (neoliberais) não significa unidade automática de pensamento sobre as alternativas. Estas exigem uma concertação de pontos de vista e respeito às experimentações e deliberações coletivas para fechar consensos. A história ensina que propostas autoritárias de partido único, centralização burocrática, propriedade estatal hegemônica, proibição da propriedade cooperativa e suspensão das eleições não resolvem.

Oscilando entre Max Weber e Karl Marx, o premiado economista ora atribui às “elites” e ora às “classes dominantes” a relutância em estender os valores da civilização moderna socialmente – um verdadeiro escárnio em tempos de bilionários transnacionais mais poderosos do que Estados. A posse de fortunas indecorosas (que na pandemia se divertiam fora da lei da gravidade) está em contraste com a penúria do povaréu, a exemplo do que ocorria à época das revoluções no mundo.

No Brasil, entre 2019 e 2022, moradores sem-teto em situação de rua cresceram 38%, empurrando mais de 280 mil excluídos ao relento, consentâneo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Na comparação com o levantamento inaugurado em 2012, a pobreza social disparou em 30,4% em 2020, abarcando cerca de 65 milhões de pessoas, acusa o Laboratório de Desigualdades, Pobreza e Mercado de Trabalho (PUC/RS). O padre Júlio Lancellotti costuma lembrar que praças, agora, assemelham-se a campos de refugiados, onde pessoas acham-se na condição de subgente. O desafio está em avançar na direção de mais equanimidade, com o espírito do cristianismo primitivo.
Se hace camino al andar

A desigualdade é uma construção histórica, social e política, sendo as escolhas sempre reversíveis. As estruturas não igualitárias variam conforme as sociedades e o poderio das visões em disputa. A divisão internacional do trabalho e a utilização dos recursos da natureza, somadas à acumulação de conhecimento, incidem no samba-enredo. Na caminhada da igualdade, as difíceis batalhas vencidas contra as injustiças permitiram “transformar a correlação de forças e derrubar as instituições fomentadas pelas classes dominantes para estruturar a desigualdade social em seu benefício, a fim de as substituir por novas instituições e regras sociais, econômicas e políticas mais justas e emancipadoras para o conjunto dos habitantes”. Como no belo elogio à práxis por mudanças do poeta espanhol Antonio Machado: “Caminante, no hay camino / se hace camino al andar”.

Em todas as quadras da história, a malquerença mereceu análises e rendeu saberes. Em reflexões clássicas sobre a República e As leis, Platão recomendava que as diferenças entre ricos e pobres não ultrapassassem a proporção de um para quatro. Enquanto o filósofo iluminista Jean-Jacques Rousseau julgava que o surgimento da propriedade privada e sua acumulação desmedida seriam as parteiras da desigualdade e das discórdias sociais. Vale salientar que apenas depois da Primeira Revolução Industrial (máquina a vapor, na confecção têxtil) se passou a ter avaliações com dados e estatísticas de relativa precisão e confiança, sobre os salários dos operários e seu padrão de vida.

Os acontecimentos da Revolução Francesa levaram à extinção dos privilégios da nobreza. Em 1791, a revolta dos escravizados em São Domingo, que com a derrota do exército francês e a Declaração de Independência se chamou Haiti (no retorno à denominação dos indígenas para a ilha), incentivou a abolição da opressão escravocrata atlântica. Sem as mobilizações sociais e sindicais não haveria conquistas do trabalho sobre o capital, para reduzir as discrepâncias através dos séculos. Inclusive, as duas guerras mundiais podem ser interpretadas como fruto das tensões e contradições ligadas aos despautérios sociais anteriores a 1914, no rol doméstico e internacional. Elas foram o preço a pagar.

Nos Estados Unidos, uma guerra civil sangrenta acabou com a crueldade escravista, em 1865. Em 1965, mobilizações afro-americanas eliminaram as discriminações raciais persistentes (ônibus, banheiros, bares, etc). Confrontos puseram abaixo o colonialismo europeu, nos anos 1950-1960. A existência da ex-URSS forçava concessões para um “capitalismo com rosto humano”. Idem, no que concerne ao apartheid sul-africano, em 1994. Com razão, o igualitarismo rima com um humanismo.

Afora as guerras, as revoltas e as revoluções, a eclosão de crises econômicas e financeiras (2008) e pandêmicas (2020-21) propiciou uma percepção, sem preconceito, sobre o valor estratégico do Estado para a regulação da economia e a construção de políticas públicas. Foi um erro estimular a desindustrialização. O coronavírus escancarou a atroz problemática. Faltaram produtos elementares (insumos) na cadeia produtiva da indústria farmacêutica, como leitos hospitalares em UTIs, respiradores e, pasmem, máscaras sanitárias. Entre nós, faltaram vacinas. Estocadas, 27 milhões de doses foram descartadas, causando prejuízo de R$ 2 bilhões aos cofres públicos. Obedeceram à necropolítica genocida da “imunização de rebanho”. Governantes neofascistas fizeram do ruim, pior.

O Ocidente ajudou a incrementar a industrialização da China, ao transferir as fábricas em nome da redução dos custos com a mão de obra. No sufoco, descobriu o erro geopolítico. A República Popular da China candidata-se ao pódio de potência econômica líder.

A nação chinesa possui uma economia mista (não é realmente comunista). A propriedade pública corresponde a 30% do total, o suficiente para conferir a decisão sobre a localização dos investimentos e a geração de empregos. O poder público detém 55% do capital total das empresas.

As potências ocidentais, que teimam em insistir em cosmogonias ultrapassadas, não conseguirão limitar a influência do regime oriental. Se a China não é o socialismo que queremos, também não é o capitalismo que o Fórum Econômico Mundial celebra em Davos, nos Alpes. A aliança com a Rússia é insuportável aos intelectuais orgânicos de Washington que, desde o Vietnã, mais erram do que acertam nas previsões. A costura do Brics, com outros vinte países na fila de espera, é uma pá de cal na unipolaridade mundial.

Uma breve história da igualdade encerra com um capítulo intitulado “Rumo a um socialismo democrático, ecológico e diversificado”. E “participativo”, caracterizado por “formas de soberania com tendência universalista”, acrescenta o autor no correr do texto. Não restam dúvidas sobre a esperança intelecto-militante de Thomas Piketty. Lutas ideológicas vão acelerar os processos para um maior igualitarismo nas sociedades. A onda de governos progressistas na América Latina é um indicativo da audiência ganha, entre os povos do continente, das bandeiras por direitos iguais.

A par disso, a eclosão das catástrofes ambientais, o desgelo do Ártico e da Antártida, a elevação do nível dos mares, as estiagens e tempestades imprevistas e os deslizamentos de terra em moradias de risco nas comunidades vulneráveis, já convocam protestos de massas. O futuro começou. A jovem sueca Greta Thunberg não está sozinha. Com ela, marcha a juventude com as mulheres na vanguarda da consciência da humanidade. A extrema direita, retaguarda do atraso, obriga-se a atacar o “politicamente correto”, no plano linguístico, para não revelar sua opção pela devastação do meio ambiente e sua preferência pelas hierarquias de dominação e subordinação, no plano social. Nessas circunstâncias, “eles” tiram proveito do caos; “nós” a seiva rebelde para a emancipação.

Pensamento do Dia

 


Os cúmplices de Bolsonaro

O almirante Bento Albuquerque não está com a memória boa. Esquece o que falou, confunde as coisas, mistura alhos, bugalhos e muambas. Em depoimento à PF, ele deu mais uma versão sobre as joias recebidas na viagem à Arábia Saudita em 2021.

Diz agora que o pacote feminino (par de brincos, colar, anel e relógio confeccionados com pedras preciosas que brilham de cegar e com valor avaliado em R$ 16,5 milhões), retido na Receita Federal e alvo de uma força-tarefa governamental para que fosse liberado, era um presente da ditadura saudita ao Estado brasileiro —assim como o conjunto masculino (abotoaduras, caneta, relógio, anel e um tipo de rosário, todos da marca suíça de diamantes Chopard, avaliados em R$ 400 mil), que entrou ilegalmente no país e foi entregue a Bolsonaro.

O ex-ministro de Minas e Energia afirma no depoimento que "apenas supôs" serem os presentes para o ex-presidente e a primeira-dama Michelle Bolsonaro. Uma suposição bastante convicta, como mostra um vídeo gravado em Guarulhos pelo circuito interno de segurança da Receita. Nele Bento Albuquerque diz claramente, como quem dá uma carteirada, que as joias iriam para Michelle. Outro convicto era Bolsonaro, que logo incorporou o mimo árabe a seu acervo pessoal – mas terá de devolvê-lo por determinação do TCU.

O general Augusto Heleno também precisa tomar fosfosol. Diz que nunca teve conhecimento do acesso ilegal na Receita de dados sigilosos de desafetos de Bolsonaro nem se lembra de ter recebido em encontros clandestinos os operadores da devassa. Tampouco devia saber que a Abin, sob sua responsabilidade, usou um programa secreto para monitorar cidadãos.

A cada novo escândalo fica mais evidente que Bolsonaro, ao promover seus crimes e ataques à democracia, não agiu sozinho. Sempre agiu ao lado dos militares que se curvaram a ele por ideologia e oportunismo —aquela em menor grau do que este.

Sol Nascente, a favela-síntese

Os dados preliminares do Censo de 2022 indicam que a Rocinha, do Rio de Janeiro, perderá o título de “maior favela do Brasil” para a comunidade de Sol Nascente, de Brasília. A Rocinha tem cerca de 31 mil habitantes, e a Sol Nascente tem 32 mil. Chamá-la de favela é uma impropriedade. Como milhares de outras, é uma comunidade mal servida. Ainda assim, esta é uma das piores notícias dos últimos tempos.

O fato em si parece natural, Brasília cresce e, com ela, a Sol Nascente. A comunidade fica a 35 km do Palácio da Alvorada, onde vive o presidente Lula, um migrante nordestino que chegou a São Paulo em 1952. Ele tinha 14 anos quando o presidente Juscelino Kubitschek inaugurou Brasília, a meta-síntese de seu programa que daria ao Brasil 50 anos em cinco. O garoto havia acabado de ganhar seu primeiro salário como aprendiz de torneiro no Senai. Lula encarna a ponta do sonho que deu certo. A comunidade de Sol Nascente ilustra o que deu errado.

Brasília seria uma cidade de sonhos. Planejada por um arquiteto liberal (Lúcio Costa) e outro comunista (Oscar Niemeyer), seria igualitária, funcional e moderna. Nada a ver com as grandes cidades do país, muito menos com o Rio e suas favelas. Nessa época a Rocinha devia ter uns 10 mil habitantes.

JK levava visitantes ilustres para conhecer sua cidade. No dia 21 de abril de 1960, quando a inaugurou, os dignitários vestiam casacas. Não passava pela cabeça de ninguém que Brasília viesse a ter favelas, mas também não passava pela cabeça dos sábios da ocasião onde viveriam os candangos que construíram aquela maravilha ou os migrantes que ela atrairia. Falava-se em “cidades-satélites”. Inicialmente tentou-se absorver o fluxo migratório em cidades como Taguatinga, Sobradinho e Gama. Passou o tempo, e os planos foram atropelados.


Brasília é protegida por uma legislação que exige autorização de repartições para colocar um corrimão numa escada do Itamaraty. Essa parte do Brasil legal continua de pé. Enquanto isso, no Brasil real, dezenas de milhares de pessoas vivem a alguns quilômetros dali em áreas sem a infraestrutura adequada.

Daqui a pouco Brasília completará 63 anos. Em 1960, o Plano Piloto abrigava metade da população da cidade, hoje só abriga 13% dos moradores. A cidade igualitária tornou-se a mais desigual entre as capitais brasileiras, e a comunidade de Sol Nascente tornou-se uma síntese. JK pensava numa síntese do progresso, mas o tempo produziu uma síntese do atraso fantasiado de moderno.

Em todas as grandes cidades brasileiras, as favelas refletem uma ocupação desordenada dos espaços urbanos. Em Brasília planejou-se tudo, menos um lugar para o pessoal do andar de baixo. Jornalistas que topavam ir para a nova capital habilitavam-se a receber terrenos no lago.

É fácil atribuir os defeitos de Brasília à onipotência planejadora do Estado, mas a comunidade de Sol Nascente é a síntese de um Estado fracassado. Lá, não foi o planejamento que fracassou, foi o fracasso social que prevaleceu.

Numa trapaça do tempo, a região administrativa de Sol Nascente também é chamada de Pôr do Sol.

O palácio de JK poderia também ser chamado de Palácio do Poente. A alvorada
com que ele sonhou se foi.

E agora, Jango?

Em 13 de março de 1964, o presidente João Goulart fez manifestação popular de apoio às Reformas de Base que o país necessitava há décadas, ou séculos, para desamarrar seus recursos e avançar no progresso. Para evitar as reformas, que necessariamente tocariam em seus privilégios, a reacionária elite brasileira preferiu destituir o presidente. Quase 60 anos depois, o Brasil ainda espera aquelas e outras reformas nascidas nas cinzas do fracasso do desenvolvimentismo e nos desafios da realidade do século 21.

Em 1964, nossa principal reforma era a agrária. Nosso maior recurso potencial era a terra sem trabalhadores e os trabalhadores sem terra. O Brasil seria outro se tivesse feito a reforma agrária naquele tempo, permitindo a liberação e o uso desses recursos. Se ela tivesse sido feita, nossas cidades não seriam as monstrópoles de hoje, porque a migração em massa dos anos 1970 e 1980 não teria ocorrido. O Brasil não teria a fome que decorre da falta de renda, mas também da produção menor de alimentos para o mercado interno. Embora ainda necessária, essa reforma já não tem a mesma importância. O país caminhou para uma urbanização deformada em cidades inchadas; e a agricultura, para a modernização do agronegócio exportador.


A principal reforma atual deve ser para liberar o recurso fundamental da economia do século 21: o capital conhecimento. Nosso potencial está nos cérebros de nosso povo. Sessenta anos depois de Jango, é preciso uma reforma que assegure escola de qualidade para todas as crianças brasileiras, de maneira a desenvolver o potencial com o qual cada uma delas nasce. "Nenhum cérebro deixado para trás" substitui o slogan de "nenhum latifúndio deixado improdutivo".

No seu tempo, Jango incluiu a reforma alfabetizadora sob o comando de Paulo Freire. O golpe e a interrupção daquelas reformas levaram o Brasil a ter hoje mais analfabetos adultos do que naquele tempo. É preciso retomar e realizar um programa pela erradicação do analfabetismo, que segue como um fóssil do passado. Mas o mundo atual exige a alfabetização para a contemporaneidade: todo brasileiro terminando o ensino médio com a máxima e igual qualidade. A grande reforma deste momento é a federalização da educação de base, para liberar o potencial nos cérebros de nossas crianças, independente da sua renda e do seu endereço.

Naquele tempo, o Brasil precisava usar o Estado para fazer as reformas, hoje precisa-se reformar o próprio Estado, que, submetido ao corporativismo, tem sido instrumento de criação de privilégios e mordomias, ferramenta para a concentração estrutural de renda, embora disfarçada pela distribuição conjuntural de minúsculos auxílios e bolsas. A reforma precisa submeter o Estado do patrimonialismo, do imediatismo, da ineficiência, da ostentação, da corrupção, fazendo-o eficiente, comprometido com os interesses nacionais e das camadas pobres, com estratégias estruturais de longo prazo, vacinado contra a corrupção no comportamento dos políticos e a corrupção nas prioridades das políticas.

Nos anos 1960, Jango tentou reformas que servissem de base para o desenvolvimento econômico nos moldes do crescimento mais rápido e amplo da indústria mecânica, para aumentar a renda e o consumo da população. No século 21, é preciso reformar os próprios propósitos do desenvolvimento: entender a necessidade de regras que assegurem o progresso com sustentabilidade ecológica, fiscal, social, democrática. No lugar do protecionismo à indústria ineficiente, será preciso entender que daqui para a frente o crescimento deve ser integrado ao mundo, incentivar o aumento da produtividade e da competitividade.

A reforma deve levar em conta o imenso potencial da biodiversidade brasileira, buscando sermos o líder mundial da bioeconomia sustentável e de alta tecnologia. Para tanto, a reforma da educação com máxima qualidade para todos deve ir além da educação de base e implantar no Brasil um moderno sistema nacional de ciência, tecnologia e inovação, fazendo para tanto a necessária reforma de nossas universidades. Ausente no tempo de Goulart, agora é prioritário fazer a reforma política, que rouba bilhões de reais do orçamento público e corrompe os partidos transformando-os em viciados cassinos eleitorais.

A chegada do governo Lula foi uma vitória, ao barrar a reeleição do atraso, mas o país precisa ir além e, com ambição e lucidez, definir uma estratégia para o futuro, iniciando as reformas que são tão necessárias agora quanto aquelas que Jango propunha.

Escândalo à vista

A bancada evangélica protocolou na Câmara uma proposta de emenda constitucional que amplia ainda mais a imunidade tributária conferida a igrejas. Se vingar, templos de qualquer culto ficarão livres também dos impostos sobre os bens e serviços que consomem. O Edir Macedo poderá comprar jatinhos sem pagar IPI, ICMS e Imposto de Importação; o sacristão poderá adquirir o vinho da missa sem recolher os impostos com alíquotas mais elevadas que recaem sobre bebidas alcoólicas, os "sin taxes" (impostos sobre o pecado). É o paraíso fiscal na Terra, mas restrito a igrejas e outros poucos eleitos, como partidos políticos e sindicatos.


A imunidade tributária a igrejas até já funcionou como um reforço ao princípio da liberdade religiosa. No passado, era fácil para a fé oficial, que era parte do Estado, dificultar a vida das concorrentes apenas as tributando pesadamente. Mas esses mecanismos devem ser analisados à luz do contexto histórico em que ocorrem. Ainda mais remotamente, a "jiziat", o imposto especial que os muçulmanos cobravam de membros de outras religiões, foi visto como gesto de tolerância. Quem pagava essa taxa ficava sob a proteção do califa e podia praticar sua fé. A alternativa, vale lembrar, era ter a religião proscrita.

E, no contexto atual, no Brasil, a imunidade não é mais um complemento da liberdade de culto. Hoje, seria constitucionalmente impossível cobrar mais impostos de uma igreja que de outra, o que é uma excelente razão para que todas os paguem. Ainda que se acredite na falsa premissa de que religiões só praticam o bem, há inúmeras outras entidades voltadas à promoção de ações sociais que recolhem tributos. Acho que deve prevalecer o princípio da solidariedade tributária, segundo o qual todos pagam para que cada um pague menos.

Para provar que o Diabo existe, há sinais de que o PT, para ganhar as almas dos evangélicos, poderá apoiar esse escândalo.