sexta-feira, 16 de outubro de 2020
O contrato de vassalagem dos militares
Na verdade, é a insegurança generalizada e crescente
em que se debate, agoniada a humanidade de hoje,
o ópio venenoso que cria e alimenta estas hórridas visões,
capazes, entretanto, de se tornarem
uma realidade monstruosa.
Golbery do Couto e Silva
Conjuntura, Política Nacional,
o Poder Executivo & Geopolítica do Brasil
Nunca houve consenso ideológico dentro das Forças Armadas brasileiras, e sempre existiram militares que foram democratas, nacionalistas e comunistas. O mais famoso talvez tenha sido o capitão Luiz Carlos Prestes, que participou do “movimento tenentista” dos anos 20 e da “Revolta dos 18 do Forte” de Copacabana, e depois liderou – ao lado do Major Miguel Costa – a famosa Coluna que marchou pelo Brasil, durante 2 anos e 5 meses, antes de ser derrotada, defendendo a justiça social, a universalização do ensino gratuito e a adoção do voto secreto nas eleições brasileiras. E mesmo depois da Segunda Guerra Mundial, houve muitos que se opuseram aos golpes de Estado de 1954, 55, 61 e 64, e que tiveram participação importante na luta pelo monopólio estatal do petróleo e pela criação da Petrobras. Mais do que isto, sempre houve militares que defenderam a centralidade do Estado no desenvolvimento econômico e na luta contra a desigualdade social do Brasil.
Mesmo assim, não há dúvida de que a grande maioria dos oficiais brasileiros, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial, foi sempre conservadora e de direita, golpista e partidária da submissão militar do Brasil aos Estados Unidos. E foi essa tendência majoritária e conservadora que sempre venceu e se impôs, dentro e fora das FFAA, em todos os momentos cruciais da história política brasileira dos últimos 80 anos. E agora de novo, foram eles que venceram com o golpe de Estado de 2016 e a instalação do atual governo; e foram eles que reestabeleceram a vassalagem militar do Brasil com relação às Forças Armadas e à política externa dos Estados Unidos. Por isso cabe perguntar-se: em que consiste exatamente a “vassalagem moderna” entre Estados nacionais soberanos? Qual é a aposta ou expectativa dos militares brasileiros, depositada neste tipo de relacionamento com os Estados Unidos, e mais recentemente, também com relação a Israel? E sobretudo, quais as consequências de curto e longo prazo, desta relação de vassalagem, para o Estado e a sociedade brasileira?
Do ponto de vista estritamente contratual, os acordos modernos de vassalagem militar garantem ao “Estado-vassalo” a venda de armas e munições mais sofisticadas, e de algumas “tecnologias de ponta” controladas pelo “estado-suserano”, em troca de recursos e minerais estratégicos do país vassalo, e da cessão de suas tropas para as guerras da potência dominante. E em muitos casos, esse contrato também envolve – como na Colômbia – a cessão de território para instalação de soldados e bases militares norte-americanas. No período da Guerra-Fria, essas armas foram entregues ao Exército brasileiro para combater os “países comunistas”. Mas hoje não está claro quem seja o inimigo brasileiro, e o que pretendem fazer suas Forças Armadas com este armamento mais sofisticado e destrutivo que receberão dos Estados Unidos. Contra quem pretendem utilizá-las? Se for contra as Grandes Potências, serão inúteis porque elas dispõem do poder atômico que o Brasil não tem, mas se for contra seus vizinhos sul-americanos, isto acabará provocando uma corrida armamentista no continente, uma vez que não se pode supor que os outros não façam o mesmo que o Brasil. E quem pode sair ganhando com a transformação da América do Sul num grande comprador de armas? E qual o custo dessa loucura para um continente que já é pobre e que sairá ainda mais pobre da atual pandemia do coronavírus? Neste sentido, cabe perguntar aos militares brasileiros se eles já fizeram este cálculo, e se eles têm clara a herança que deixarão para seus filhos e netos, e sobretudo para a grande maioria dos brasileiros que não são militares e que não têm nada a ver com essas armas que lhes serão financiadas e favorecidas em troca de sua vassalagem?
Mas além disto, a expectativa de todo “Estado vassalo” é obter também vantagens econômicas de sua vassalagem, sob a forma do livre acesso aos mercados e investimentos da “potência-suserana”. Foi assim que de fato, durante a Guerra Fria, em particular entre 1950 e 1980, a vassalagem brasileira foi compensada pelo apoio norte-americano ao projeto desenvolvimentista dos militares brasileiros daquela época. E neste sentido se pode dizer, inclusive, que o chamado “milagre econômico” da ditadura militar” foi uma espécie de réplica latina do “desenvolvimento a convite” da Coreia, de Taiwan, do Japão ou mesmo da Alemanha, e de quase toda a Europa que foi favorecida pelo Plano Marshall. Essa situação, no entanto, não se repetiu em lugar nenhum do mundo depois da década de 80, quando os Estados Unidos abandonaram sua estratégia econômica internacional do pós-Segunda Guerra inaugurada pelos acordos de Bretton Woods, de 1944, e adotaram sua nova estratégia de desregulação e liberalização selvagem dos seus mercados periféricos, que foi experimentada depois do golpe militar chileno de 1973, mas que só chegou ao Brasio na década de 90. E agora, mais recentemente, a expectativa de que os Estados Unidos possam ajudar o desenvolvimento econômico de seus “vassalos”, já na terceira década do século XXI, não tem pé nem cabeça. Neste momento, a economia americana está sendo atropelada pela “crise epidêmica”, mas mesmo antes disto, o governo de Donald Trump já havia adotado uma política econômica “de tipo nacionalista”, com a proteção de seu mercado interno e de sua indústria, e com a defesa intransigente de seus produtores de grãos e alimentos, que concorrem diretamente com o agro-business brasileiro.
Assim mesmo, é impossível imaginar um governo que seja mais subserviente e lambe-botas de Donald Trump que o atual governo brasileiro. No entanto, nos últimos dois anos, o Brasil não logrou nenhum acordo comercial significativo com os Estados Unidos e não obteve nenhuma vantagem ou favorecimento especial do governo norte-americano. Pelo contrário, o Brasil já foi objeto de várias retaliações e humilhações econômicas do governo Trump, sem que tenha dito uma só palavra de protesto ou defesa de seus próprios interesses nacionais. E para além dos Estados Unidos, o Parlamento Europeu rejeitou recentemente o acordo comercial que havia começado a tramitar, entre a União Europeia e o Mercosul, como forma de retaliação explícita contra o o governo do Sr, Bolsonaro. E para culminar, nos últimos 12 meses, a fuga dos investidores privados estrangeiros do Brasil mais que dobrou, não havendo nenhuma expectativa de reversão dessa tendência que, pelo contrário, deve piorar ainda mais. Por tanto, até agora, a nova vassalagem militar do Brasil não trouxe nenhuma vantagem econômica, nem de mercados abertos nem de investimentos
Os bufões do atual governo não entendem nada de economia, nem sabem o que seja o capitalismo. Mas o mais grave é que seus militares também não consigam entender que seus novos aliados econômicos – diferentemente do período da Guerra Fria – são financistas; e que, no capitalismo contemporâneo, os financistas não necessitam do crescimento econômico do PIB, para aumentar seus lucros e acumular sua riqueza privada. Basta dizer que nos últimos cinco meses em que a pandemia do coronavírus destroçou a economia mundial, a riqueza financeira do mundo cresceu 25%, para mais de US$10 trilhões, e o patrimônio dos 42 maiores bilionários brasileiros, quase todos financistas, cresceu US$34 bilhões. E enquanto os militares do governo não entenderem este aparente paradoxo capitalista, nem conseguirem perceber que sua vassalagem contemporânea não lhes trará vantagens econômicas, eles seguirão se debatendo para controlar este governo” que ajudaram a criar, que consegue ter, ao mesmo tempo, um chanceler que ataca a China e a globalização econômica, enquanto seu ministro de economia aposta todas as suas fichas exatamente na China e na globalização.
Por último, a “relação de vassalagem” moderna envolve também compromissos e consequências estratégicas que não aparecem explicitados nos acordos militares. Por exemplo, depois da Segunda Guerra Mundial, as Forças Armadas (FFAA) brasileiras não precisaram mais escolher seu “inimigo externo”, que passou a ser definido diretamente pelos Estados Unidos. E durante toda a Guerra Fria, esse “inimigo” foi a União Soviética, que não tinha o menor interesse nem a menor possibilidade de atacar o Brasil, um país que estava inteiramente fora do “jogo” das grandes potência”. Além disso, esta estranha condição de “inimigo do inimigo dos outros” criou uma distorção permanente no comportamento do Exército brasileiro, que se transformou numa polícia especializada no combate aos “traidores internos”, ou seja, para começar, todos aqueles que divergissem da posição norte-americana e da vassalagem militar brasileira. Foi assim que nasceu a figura do “inimigo interno”, criada pela Doutrina de Segurança Nacional formulada na década de 1940 pela Escola Superior de Guerra, imediatamente depois da assinatura do Acordo Militar Brasil-Estados Unidos, de 1952. E foi graças a essa verdadeira “cambalhota funcional” que as FFAA passaram a espionar seu próprio povo, na busca constante e obsessiva do “ópio venenoso” e das “hórridas visões” que estariam ameaçando a paz interna da sociedade e do estado brasileiro, segundo as palavras do General Golbery do Couto e Silva, citadas na epígrafe deste texto. E foi assim que nasceu e se consolidou historicamente a relação direta entre a “vassalagem internacional” do Brasil e o “autoritarismo nacional” das suas Forças Armadas, que passaram a denunciar como “inimigos” do Estado todos aqueles que discordassem das suas próprias posições ideológicas, e da sua cegueira estratégica.
Esta distorção das Forças Armadas explica por que depois da Guerra Fria, e durante o período da uni-polaridade americana, os militares brasileiros perderam sua bússola e ficaram sem inimigos claros durante quase vinte anos. E quando tentaram definir um “inimigo externo” por sua própria conta, escolheram a França1, o que é pouco menos que ridículo, uma vez que ela é hoje apenas uma potência intermediária declinante, que mal consegue exercer alguma influência no norte da África e que, ainda por cima, é adversária do governo venezuelano que os militares brasileiros tanto odeiam. E como consequência, para recriar o seu o “boneco de pancada” ou “inimigo interno”, tiveram que recorrer a uma invenção esdrúxula da ultradireita norte-americana: um tal de “marxismo cultural”, que ninguém sabe o que seja, mas que serviu para os militares brasileiros demonizarem todos os “movimentos identitários”’ e “politicamente corretos”, e em particular, a um ex-presidente da República, seu partido e seus militantes, apesar deles serem uma peça essencial de todo e qualquer jogo democrático.
Esta confusão se mantem até hoje, mas o quadro alterou-se radicalmente no momento em que o presidente Donald Trump elegeu o novo inimigo externo dos Estados Unidos, em 2019, ao declarar sua guerra comercial e tecnológica contra a China, e ao tentar polarizar o mundo em torno de seu contencioso com os chineses. O problema, entretanto, é que no momento em que Donald Trump mudou sua política externa, o Brasil já tinha se transformado numa economia primário-exportadora dependente dos mercados e investimentos chineses, e está cada vez mais difícil de transformar em inimigo estratégico do Brasil o país que é precisamente o seu principal parceiro econômico. Além disso, como os chineses são pragmáticos e não se propõem a converter ninguém, fica ainda mais difícil transformar os admiradores da China em “inimigos internos” do Estado brasileiro, como aconteceu com os comunistas durante a Guerra Fria.
No meio dessa “barafunda” ideológica e política, e do caos econômico que se acentua a cada momento que passa, o homem comum se pergunta o que afinal tem a dizer e propor os militares brasileiros com relação aos milhões de brasileiros que hoje vegetam na miséria e na fome dos campos e das grandes cidades do país, e que reclamam e protestam porque têm fome, mas não são “inimigos” do Estado brasileiro, nem muito menos de suas Forças Armadas ?
E aliás, quem deu a estes senhores o direito, e de onde vem sua arrogância de querer julgar e decidir quem são os bons, e quem são os maus brasileiros?
José Luís Fiori, professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Economia política Internacional e Coordenador do GP da UFRJ/CNPQ
Ódio eleito
As instituições da República precisam ser reconstruídas, depois do terremoto da Lava-Jato. E Bolsonaro não veio para reconstruir e pacificar, mas para viver do ódio às instituições e explorar o ódio contra elasChristian Edward Cyril Lynch, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
A corrupção sempre presente
O escândalo enojante, em todos os sentidos da palavra, do ex-vice-líder do governo, senador Chico Rodrigues, é a mais recente prova de como Jair Bolsonaro usou abusivamente a bandeira do combate à corrupção, vendendo-se diferente do que sempre foi. Não precisava mais nada no governo, mesmo assim houve essa última excrescência. Bastava a abundância de dinheiro sem origem ou sem explicação clara que circula nas mãos ou nas contas de Bolsonaro, seus filhos, sua mulher e suas ex-mulheres. No fim do dia, o ministro Luís Roberto Barroso determinou o afastamento do senador do mandato por 90 dias, decisão ainda sujeita à aprovação pelo Senado.
O senador foi removido da vice-liderança pelo governo, mas isso não apaga o fato de que foi líder, tinha com o presidente da República uma relação definida por Bolsonaro como “quase uma união estável”, emprega no seu gabinete Leo Índio, o notório primo dos filhos do presidente. O distanciamento que Bolsonaro tenta agora ter em relação ao senador foi o mesmo movimento que ele executou contra o advogado Frederick Wassef, o mesmo que tenta manter de Fabrício Queiroz, que, por sua vez, tinha ligação com Adriano da Nóbrega, chefe miliciano.
Bolsonaro terá que fazer cada vez mais esforço para manter o seu discurso que foi definido pelo senador Chico Rodrigues como de “patriotismo, defesa da família e retomada da moralidade”. Na verdade, ele é o antimodelo em cada um desses quesitos.
Os fatos verdadeiros estão no relatório da Transparência Internacional que denunciou um “desmanche institucional” no país, afirmando que o principal responsável é o presidente Bolsonaro. A Transparência fez dois relatórios. Num deles, relacionou os casos da exportação da corrupção por diversas empresas. Em outro, mostrou os retrocessos institucionais no Brasil que, por 15 anos, foi exemplo no exterior pelo Mensalão e pela Lava-Jato. O relatório é uma atualização e confirmação de outro documento de outubro do ano passado. Os textos foram para o Grupo Antisuborno, da OCDE, e o Grupo de Ação Financeira contra Lavagem de Dinheiro e Financiamento do Terrorismo (Gafi/FATF). O Brasil faz parte de acordos, integra esses grupos, portanto, o desmonte do combate à corrupção executado pelo governo Bolsonaro está desrespeitando compromissos internacionais. Será também levado em conta, assim como os crimes ambientais, na decisão sobre a entrada do país na OCDE.
O relatório sobre os retrocessos enumera os passos atrás que têm sido dados na luta do Brasil contra a corrupção. Foram muitos. O Coaf foi enfraquecido, o diretor da Polícia Federal, demitido para dar lugar a outro delegado submisso ao governo, o procurador-geral da República, em seu primeiro ano de mandato, colocou como alvos os procuradores da Lava-Jato, e a operação Greenfield “foi parcialmente desmantelada”, diz o texto. O Congresso instalou uma comissão de especialistas para elaborar uma lei de lavagem de dinheiro e excluiu do debate exatamente o Coaf, principal órgão de combate a esse crime. O ex-presidente do Supremo negociou novas regras para acordo de leniência sem passar pelo Ministério Público. O Congresso quer fazer uma nova lei de combate à improbidade administrativa e os sinais não são bons. O relatório relaciona inclusive a retirada de representantes da sociedade de órgãos de controle como o Conama.
“Foi reportado que no período de 24 anos, Flávio e Carlos Bolsonaro e as duas ex-mulheres do presidente Bolsonaro compraram várias propriedades e pagaram as despesas em cash, transações que totalizaram quase R$ 3 milhões em valores ajustados. Ainda que não seja ilegal, transações em dinheiro vivo são vulneráveis a práticas ilegais, como lavagem de dinheiro, que são difíceis de serem rastreadas.” Com fatos assim, circunstanciados, o relatório informa aos grupos internacionais de combate à corrupção que a cena brasileira é oposta à que o presidente descreveu quando disse que acabou com a Lava-Jato porque a corrupção acabou.
Por uma dessas coincidências da vida brasileira, o relatório foi divulgado no mesmo dia da descoberta de dinheiro nas cuecas do então vice-líder do governo. A diferença da primeira cueca monetária é que aquela foi de um assessor de parlamentar do PT, essa é do próprio senador governista e os maços foram acomodados atrás.
O senador foi removido da vice-liderança pelo governo, mas isso não apaga o fato de que foi líder, tinha com o presidente da República uma relação definida por Bolsonaro como “quase uma união estável”, emprega no seu gabinete Leo Índio, o notório primo dos filhos do presidente. O distanciamento que Bolsonaro tenta agora ter em relação ao senador foi o mesmo movimento que ele executou contra o advogado Frederick Wassef, o mesmo que tenta manter de Fabrício Queiroz, que, por sua vez, tinha ligação com Adriano da Nóbrega, chefe miliciano.
Bolsonaro terá que fazer cada vez mais esforço para manter o seu discurso que foi definido pelo senador Chico Rodrigues como de “patriotismo, defesa da família e retomada da moralidade”. Na verdade, ele é o antimodelo em cada um desses quesitos.
Os fatos verdadeiros estão no relatório da Transparência Internacional que denunciou um “desmanche institucional” no país, afirmando que o principal responsável é o presidente Bolsonaro. A Transparência fez dois relatórios. Num deles, relacionou os casos da exportação da corrupção por diversas empresas. Em outro, mostrou os retrocessos institucionais no Brasil que, por 15 anos, foi exemplo no exterior pelo Mensalão e pela Lava-Jato. O relatório é uma atualização e confirmação de outro documento de outubro do ano passado. Os textos foram para o Grupo Antisuborno, da OCDE, e o Grupo de Ação Financeira contra Lavagem de Dinheiro e Financiamento do Terrorismo (Gafi/FATF). O Brasil faz parte de acordos, integra esses grupos, portanto, o desmonte do combate à corrupção executado pelo governo Bolsonaro está desrespeitando compromissos internacionais. Será também levado em conta, assim como os crimes ambientais, na decisão sobre a entrada do país na OCDE.
O relatório sobre os retrocessos enumera os passos atrás que têm sido dados na luta do Brasil contra a corrupção. Foram muitos. O Coaf foi enfraquecido, o diretor da Polícia Federal, demitido para dar lugar a outro delegado submisso ao governo, o procurador-geral da República, em seu primeiro ano de mandato, colocou como alvos os procuradores da Lava-Jato, e a operação Greenfield “foi parcialmente desmantelada”, diz o texto. O Congresso instalou uma comissão de especialistas para elaborar uma lei de lavagem de dinheiro e excluiu do debate exatamente o Coaf, principal órgão de combate a esse crime. O ex-presidente do Supremo negociou novas regras para acordo de leniência sem passar pelo Ministério Público. O Congresso quer fazer uma nova lei de combate à improbidade administrativa e os sinais não são bons. O relatório relaciona inclusive a retirada de representantes da sociedade de órgãos de controle como o Conama.
“Foi reportado que no período de 24 anos, Flávio e Carlos Bolsonaro e as duas ex-mulheres do presidente Bolsonaro compraram várias propriedades e pagaram as despesas em cash, transações que totalizaram quase R$ 3 milhões em valores ajustados. Ainda que não seja ilegal, transações em dinheiro vivo são vulneráveis a práticas ilegais, como lavagem de dinheiro, que são difíceis de serem rastreadas.” Com fatos assim, circunstanciados, o relatório informa aos grupos internacionais de combate à corrupção que a cena brasileira é oposta à que o presidente descreveu quando disse que acabou com a Lava-Jato porque a corrupção acabou.
Por uma dessas coincidências da vida brasileira, o relatório foi divulgado no mesmo dia da descoberta de dinheiro nas cuecas do então vice-líder do governo. A diferença da primeira cueca monetária é que aquela foi de um assessor de parlamentar do PT, essa é do próprio senador governista e os maços foram acomodados atrás.
A urgência da fome
Por uma porção de conveniência política e um punhado de incompetência técnica, o governo de Jair Bolsonaro adiou para depois das eleições 2020 a decisão sobre a política social no pós-pandemia. Na prática, ficará para 2021, já que o segundo turno do pleito municipal está marcado para 29 de novembro. Assim, ignorou-se descaradamente a regra número um de quem se ocupa do combate à extrema pobreza: quem tem fome tem pressa. A frase eternizada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, deu na cruzada brasileira pela erradicação da miséria; desaguou no Fome Zero, no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva; emendou no Bolsa Família. Rendeu a saída do Brasil do Mapa da Fome da ONU, no início desta segunda década do século XXI, que chega ao fim com o recrudescimento da insegurança alimentar.
A equipe de Paulo Guedes e os interlocutores do ministro da Economia no Congresso Nacional têm se ocupado mais do debate fiscal que da arquitetura do programa que coexistirá ou substituirá o bem desenhado Bolsa Família — este voltado à erradicação da miséria a médio e longo prazos, via transferência de renda vinculada a exigências em educação e saúde. A emergência é assemelhada ao alerta de Betinho em 1993, ano de lançamento da Ação da Cidadania Contra a Fome e a Miséria. O Brasil foi capaz de transformar a mobilização da sociedade civil em política pública. Alcançou a própria ONU: Fome Zero batiza o segundo dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. O brasileiro José Graziano da Silva, que esteve no governo, presidiu a FAO, agência da ONU para Alimentação e Agricultura, de 2012 a 2019. Ano passado, na despedida, foi homenageado pelo WFP.
O aumento da vulnerabilidade social mundo afora, durante a pandemia da Covid-19, explica o Nobel da Paz concedido ao Programa Mundial de Alimentos, WFP da abreviação em inglês. A agência da ONU foi reconhecida pelas ações de combate à fome, por melhorar condições de paz em áreas de conflito e por atuar contra o uso da falta de alimentos como arma de guerra, informou o comitê norueguês do prêmio. Resumindo em hashtag: #comidaépaz. Segundo as Nações Unidas, o WFP é a maior organização humanitária do mundo; em 2019, assistiu 97 milhões de pessoas em 88 países. Foi festejada pela complexa logística que construiu para levar alimentos onde há fome na África, na Ásia e na América Latina. Opera com mais de cinco mil caminhões, uma centena de aviões, 30 navios.
O relatório “Estado da insegurança alimentar e nutricional no mundo”, lançado em julho por cinco agências da ONU, estimou que, em 2018, pelo menos 820 milhões de pessoas passavam fome no planeta. O diagnóstico já punha em risco a meta de universalizar o acesso a alimentos até 2030, conforme estabelecido nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Com a pandemia da Covid-19, a situação se agudizou. Em meados deste ano, as estimativas chegavam a 132 milhões de novos famintos, em decorrência da recessão global. Para conter a escalada, o WFP anunciou que precisaria arrecadar US$ 6,8 bilhões nos próximos seis meses; até o início da semana, conseguira um quarto. A Oxfam calculou que, de março a junho deste ano, 73 bilionários da América Latina e do Caribe, Brasil incluído, ficaram US$ 48,2 bilhões mais ricos.
No Brasil, o IBGE disparou o alerta quando contou 10,3 milhões de brasileiros com privação alimentar grave no biênio 2017-2018. Foi consequência da recessão profunda dos anos anteriores, que a recuperação modesta do triênio 2017-2019 não superou e, agora, retorna com a pandemia. Em projeções otimistas, o PIB brasileiro cairá 5% em 2020. O auxílio emergencial de R$ 600, pago a 67,8 milhões de pessoas até agosto, ajudou a aplacar os efeitos socioeconômicos da crise sanitária. Mês passado, o governo decidiu, por restrições orçamentárias, cortá-lo à metade e prorrogá-lo até dezembro. A decisão é insuficiente para dar conta da vulnerabilidade avassaladora. Na última semana de setembro, o país tinha 13,3 milhões de desempregados e outros 15,4 milhões de trabalhadores que só não buscaram ocupação por causa da pandemia ou falta de vagas.
Para piorar, a inflação dos alimentos é galopante. O Indicador Ipea de Inflação por Faixa de Renda mostrou que, em setembro, a variação de preços para os lares com renda mensal inferior a R$ 1.650 ficou em 0,98%, o triplo da observada entre os mais ricos (acima de R$ 16.509,66). Preços da alimentação explicam 75% da carestia. Desemprego alto, queda de renda, escalada no valor da comida, crianças sem aula e sem merenda resultarão em aumento da pobreza extrema. Por isso, é tão urgente que o país ponha de pé uma política social robusta.
A equipe de Paulo Guedes e os interlocutores do ministro da Economia no Congresso Nacional têm se ocupado mais do debate fiscal que da arquitetura do programa que coexistirá ou substituirá o bem desenhado Bolsa Família — este voltado à erradicação da miséria a médio e longo prazos, via transferência de renda vinculada a exigências em educação e saúde. A emergência é assemelhada ao alerta de Betinho em 1993, ano de lançamento da Ação da Cidadania Contra a Fome e a Miséria. O Brasil foi capaz de transformar a mobilização da sociedade civil em política pública. Alcançou a própria ONU: Fome Zero batiza o segundo dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. O brasileiro José Graziano da Silva, que esteve no governo, presidiu a FAO, agência da ONU para Alimentação e Agricultura, de 2012 a 2019. Ano passado, na despedida, foi homenageado pelo WFP.
O movimento social faz o que pode. A Central Única de Favelas já distribuiu 1,350 milhão de cestas de alimentos e 59 mil vales de R$ 120 a mulheres chefes de família. A ajuda soma R$ 169 milhões. No Complexo do Alemão, o gabinete de crise distribuía cinco mil cestas básicas por mês no início da pandemia; hoje, o jornal “Voz das Comunidades” segue doando 600. A ONG Redes da Maré, de março a setembro, atendeu 17 mil famílias com kits de alimentos e itens de higiene. São apoios fundamentais, mas que não prescindem do Estado. O Brasil tem história, tecnologia social e gente capaz. É sair da política rasteira e agir.
Aparelhamento bolsonarista
A TV Brasil já nasceu, em 2007, com o mal congênito da impostura. Tratada no berço como uma emissora destinada a atender “à antiga aspiração da sociedade brasileira por uma televisão pública nacional, independente e democrática”, rapidamente ganhou o apelido de “TV do Lula”, em alusão ao fato óbvio de que a emissora estatal nada tinha de pública. Ao contrário, prestava-se, em parte da programação, a fazer a promoção descarada do governo lulopetista, sobretudo em tempos de campanha eleitoral, especialidade do demiurgo de Garanhuns.
A emissora agigantou-se em funcionários e estrutura mesmo dando apenas traço de audiência – o que já seria argumento suficiente para fechá-la sem pestanejar, se houvesse respeito pelos contribuintes. Prestou-se ademais a empregar apaniguados petistas de várias extrações, que ali garantiam o padrão chapa-branca e transformaram a TV em aparelho do partido.
Por essas e outras razões, Jair Bolsonaro, ainda na campanha presidencial, havia se comprometido a fechar a TV Brasil, na esteira das anunciadas privatizações em massa. Ainda que não fosse mais a “TV do Lula”, a emissora continuava sem justificar sua existência.
Como se sabe, nem as prometidas privatizações em massa ocorreram nem a TV Brasil foi fechada. Hoje ela é, escancaradamente, a “TV do Bolsonaro”.
A emissora agigantou-se em funcionários e estrutura mesmo dando apenas traço de audiência – o que já seria argumento suficiente para fechá-la sem pestanejar, se houvesse respeito pelos contribuintes. Prestou-se ademais a empregar apaniguados petistas de várias extrações, que ali garantiam o padrão chapa-branca e transformaram a TV em aparelho do partido.
Por essas e outras razões, Jair Bolsonaro, ainda na campanha presidencial, havia se comprometido a fechar a TV Brasil, na esteira das anunciadas privatizações em massa. Ainda que não fosse mais a “TV do Lula”, a emissora continuava sem justificar sua existência.
Como se sabe, nem as prometidas privatizações em massa ocorreram nem a TV Brasil foi fechada. Hoje ela é, escancaradamente, a “TV do Bolsonaro”.
Na terça-feira passada, a emissora transmitiu o jogo do Brasil contra o Peru pelas Eliminatórias da Copa de 2022, momento em que o locutor achou adequado fazer elogios ao presidente Bolsonaro. De quebra, no intervalo da partida, a TV veiculou reportagens favoráveis ao governo.
A própria transmissão do jogo foi fruto de um acordo obscuro do governo com a notória CBF, fazendo da TV Brasil a única emissora de canal aberto a exibir a partida, o que lhe rendeu boa audiência – devidamente explorada pela máquina de propaganda bolsonarista.
Há tempos o presidente Bolsonaro vem testando os limites das instituições republicanas, como fez impunemente durante toda a sua trajetória como deputado. No caso em questão, a baliza é a Lei 11.652, de 2008, atualizada pela Lei 13.417, de 2017, que, no parágrafo 1.º do artigo 3.º, proíbe “qualquer forma de proselitismo na programação das emissoras públicas de radiodifusão”. A violação dessa lei pode constituir crime de responsabilidade, passível de impeachment.
Para Bolsonaro, assim como havia sido para Lula da Silva a seu tempo, essa proibição não lhe diz respeito. O Estado é, para o atual presidente, uma extensão de seus domínios particulares, e sua estrutura deve estar a serviço de seus interesses privados, em geral eleitoreiros.
A “TV do Bolsonaro” é apenas uma das tantas estruturas do Estado de que o presidente e seu grupo político se apoderaram. O País, perplexo, vem testemunhando, por exemplo, a conversão da Fundação Alexandre de Gusmão, órgão de pesquisa e divulgação do Itamaraty, em escola doutrinária inspirada nos “ensinamentos” do ex-astrólogo Olavo de Carvalho, notório guru bolsonarista. Em vez de diplomatas e professores de Relações Internacionais, a fundação vem recebendo blogueiros bolsonaristas e teóricos da conspiração para fazer “conferências” que, em tese, servirão para a reflexão do corpo diplomático brasileiro.
O mesmo vem acontecendo nas áreas de Educação e Cultura, convertidas em cidadelas na guerra imaginária que o presidente Bolsonaro trava com “comunistas”, qualificação destinada a todos os que não concordam com ele.
A impessoalidade é um dos mais importantes princípios da administração pública. Inscrito no artigo 37 da Constituição, esse princípio determina que a administração deve estar voltada para os interesses da coletividade, e não do administrador.
Para políticos oportunistas, contudo, não há essa diferença: julgando-se portadores de legitimidade absoluta, alegadamente conferida pelas urnas, esses líderes de fancaria não pretendem governar, mas tomar posse do Estado. Foi assim com Lula e com Dilma, e está sendo assim com Bolsonaro – e será assim até que as instituições deixem claro qual é o limite: a lei.
A própria transmissão do jogo foi fruto de um acordo obscuro do governo com a notória CBF, fazendo da TV Brasil a única emissora de canal aberto a exibir a partida, o que lhe rendeu boa audiência – devidamente explorada pela máquina de propaganda bolsonarista.
Há tempos o presidente Bolsonaro vem testando os limites das instituições republicanas, como fez impunemente durante toda a sua trajetória como deputado. No caso em questão, a baliza é a Lei 11.652, de 2008, atualizada pela Lei 13.417, de 2017, que, no parágrafo 1.º do artigo 3.º, proíbe “qualquer forma de proselitismo na programação das emissoras públicas de radiodifusão”. A violação dessa lei pode constituir crime de responsabilidade, passível de impeachment.
Para Bolsonaro, assim como havia sido para Lula da Silva a seu tempo, essa proibição não lhe diz respeito. O Estado é, para o atual presidente, uma extensão de seus domínios particulares, e sua estrutura deve estar a serviço de seus interesses privados, em geral eleitoreiros.
A “TV do Bolsonaro” é apenas uma das tantas estruturas do Estado de que o presidente e seu grupo político se apoderaram. O País, perplexo, vem testemunhando, por exemplo, a conversão da Fundação Alexandre de Gusmão, órgão de pesquisa e divulgação do Itamaraty, em escola doutrinária inspirada nos “ensinamentos” do ex-astrólogo Olavo de Carvalho, notório guru bolsonarista. Em vez de diplomatas e professores de Relações Internacionais, a fundação vem recebendo blogueiros bolsonaristas e teóricos da conspiração para fazer “conferências” que, em tese, servirão para a reflexão do corpo diplomático brasileiro.
O mesmo vem acontecendo nas áreas de Educação e Cultura, convertidas em cidadelas na guerra imaginária que o presidente Bolsonaro trava com “comunistas”, qualificação destinada a todos os que não concordam com ele.
A impessoalidade é um dos mais importantes princípios da administração pública. Inscrito no artigo 37 da Constituição, esse princípio determina que a administração deve estar voltada para os interesses da coletividade, e não do administrador.
Para políticos oportunistas, contudo, não há essa diferença: julgando-se portadores de legitimidade absoluta, alegadamente conferida pelas urnas, esses líderes de fancaria não pretendem governar, mas tomar posse do Estado. Foi assim com Lula e com Dilma, e está sendo assim com Bolsonaro – e será assim até que as instituições deixem claro qual é o limite: a lei.
A hora é de sair da lógica vazia das guerras digitais e avançar nas reformas, só não dá pra tirar férias
Duas narrativas pautaram o debate brasileiro nesta era Bolsonaro. As duas vêm murchando como um balão furado, nos últimos tempos.
Uma delas, governista, conhecida de todos, sempre apostou na versão de Bolsonaro como um Capitão Nascimento capaz de purificar o sistema e destruir o “mecanismo”, como certa vez me explicou um sujeito bastante animado em um desses eventos empresariais.
A narrativa perdeu sua última camada de verniz por estas semanas. Bolsonaro se afasta dos radicais, consolida a base com o centrão, assiste jogo com o ministro Dias Toffoli, faz as pazes, pela enésima vez, com Rodrigo Maia, ganha afagos de Renan Calheiros e é cortejado pelos partidos tradicionais para uma eventual filiação.
A nossa líder fascista de história em quadrinhos, Sara Winter, jogou a toalha. Salpicaram ativistas na internet dizendo “chega”. Muitos deles foram banidos da internet (de mentirinha, claro) por defender o tal “cabo e soldado” que iria fechar a Suprema Corte.
A segunda narrativa apostou suas fichas na tese do abismo. A ideia saborosa de que havíamos nos tornado uma República de Weimar dos anos 1930, que havia em curso uma conspiração fascista “subterrânea” para terminar de vez com nossa democracia.
No fim a coisa esfriou. Leio nesta Folha que “Bolsonaro abriu mão da postura de embate para viabilizar o governo”. Bingo. Viabilizar o governo é isso. Negociar, ceder, fazer acordos. “Politics as usual.” A democracia e sua capacidade de moderar e fazer exatamente o que diz a Folha: induzir a turma a abrir mão, lá pelas tantas, de sua “postura de embate”.
Bolsonaro foi se revelando, com o tempo, o que sempre foi. Um político muito mais tradicional do que a boa parte da crônica sempre fez crer. Seu líder na Câmara é Ricardo Barros, um Vermeer da velha política brasileira. Seu ministro mais barulhento despacha de Washington e o país toca a vida em uma animada campanha eleitoral.
Cereja do bolo, nosso “Hugo Chávez brasileiro”, como li de um ilustre e sempre citado cientista político americano, indica um juiz garantista (seja lá o que for isso), saudado pela OAB e pelo mundo jurídico “do bem”, para o Supremo Tribunal Federal.
Uma delas, governista, conhecida de todos, sempre apostou na versão de Bolsonaro como um Capitão Nascimento capaz de purificar o sistema e destruir o “mecanismo”, como certa vez me explicou um sujeito bastante animado em um desses eventos empresariais.
A narrativa perdeu sua última camada de verniz por estas semanas. Bolsonaro se afasta dos radicais, consolida a base com o centrão, assiste jogo com o ministro Dias Toffoli, faz as pazes, pela enésima vez, com Rodrigo Maia, ganha afagos de Renan Calheiros e é cortejado pelos partidos tradicionais para uma eventual filiação.
A nossa líder fascista de história em quadrinhos, Sara Winter, jogou a toalha. Salpicaram ativistas na internet dizendo “chega”. Muitos deles foram banidos da internet (de mentirinha, claro) por defender o tal “cabo e soldado” que iria fechar a Suprema Corte.
A segunda narrativa apostou suas fichas na tese do abismo. A ideia saborosa de que havíamos nos tornado uma República de Weimar dos anos 1930, que havia em curso uma conspiração fascista “subterrânea” para terminar de vez com nossa democracia.
No fim a coisa esfriou. Leio nesta Folha que “Bolsonaro abriu mão da postura de embate para viabilizar o governo”. Bingo. Viabilizar o governo é isso. Negociar, ceder, fazer acordos. “Politics as usual.” A democracia e sua capacidade de moderar e fazer exatamente o que diz a Folha: induzir a turma a abrir mão, lá pelas tantas, de sua “postura de embate”.
Bolsonaro foi se revelando, com o tempo, o que sempre foi. Um político muito mais tradicional do que a boa parte da crônica sempre fez crer. Seu líder na Câmara é Ricardo Barros, um Vermeer da velha política brasileira. Seu ministro mais barulhento despacha de Washington e o país toca a vida em uma animada campanha eleitoral.
Cereja do bolo, nosso “Hugo Chávez brasileiro”, como li de um ilustre e sempre citado cientista político americano, indica um juiz garantista (seja lá o que for isso), saudado pela OAB e pelo mundo jurídico “do bem”, para o Supremo Tribunal Federal.
Alguma dessas coisas me surpreende? Nem um pouco. Como muitas vezes escrevi aqui, raspando um pouco a tinta, nosso “outsider” sempre foi mais “insider” do que quisemos acreditar. E nossa democracia mais capaz de produzir os devidos enquadramentos.
No mais, eis aí Bolsonaro, um político errático (ou “pragmático”, se alguém preferir), sem um projeto para o país, baixa convicção em política econômica e cuja “agenda conservadora” nunca passou de um punhado de frases de efeito.
As narrativas extremas erraram ao julgar o Brasil pela epiderme da política. Pela lógica das guerras digitais a qual pertencem e ajudam a alimentar. Elas são o feijão com arroz de nossas democracias polarizadas. Vão continuar por aí, ofendendo e espalhando ódio, apenas com menos “sex appeal”.
Seu problema sempre foi o mesmo: elas distraem o país das questões que realmente importam. Entulham o debate público de toxina ideológica. Seu resultado é a paralisia. O diálogo de surdos da democracia atual. E mais objetivamente, no Brasil de hoje, a perda de foco sobre a pauta de reformas que o país precisa enfrentar.
A pergunta a ser feita é a seguinte: o país retomará alguma objetividade agora que o fim do mundo não veio e há um momento de relativa distensão?
Rodrigo Maia garante que o Congresso mantém o ímpeto reformista, mas a verdade é que temos hoje menos consenso em torno da reforma tributária do que imaginávamos ter no início do ano.
A reforma administrativa avançou muito pouco e sequer descobrimos um jeito de financiar um óbvio programa de transferência de renda sem quebrar a regra do teto. Se o país decidisse por um momento sair do modo procrastinador, deveria exigir que o Congresso cumpra o aceno feito nesta semana de que irá cancelar o recesso de verão e trabalhar nas reformas.
No fundo, é disto que o país precisa. Menos conversa fiada e uma dose cavalar de senso de urgência.
No mais, eis aí Bolsonaro, um político errático (ou “pragmático”, se alguém preferir), sem um projeto para o país, baixa convicção em política econômica e cuja “agenda conservadora” nunca passou de um punhado de frases de efeito.
As narrativas extremas erraram ao julgar o Brasil pela epiderme da política. Pela lógica das guerras digitais a qual pertencem e ajudam a alimentar. Elas são o feijão com arroz de nossas democracias polarizadas. Vão continuar por aí, ofendendo e espalhando ódio, apenas com menos “sex appeal”.
Seu problema sempre foi o mesmo: elas distraem o país das questões que realmente importam. Entulham o debate público de toxina ideológica. Seu resultado é a paralisia. O diálogo de surdos da democracia atual. E mais objetivamente, no Brasil de hoje, a perda de foco sobre a pauta de reformas que o país precisa enfrentar.
A pergunta a ser feita é a seguinte: o país retomará alguma objetividade agora que o fim do mundo não veio e há um momento de relativa distensão?
Rodrigo Maia garante que o Congresso mantém o ímpeto reformista, mas a verdade é que temos hoje menos consenso em torno da reforma tributária do que imaginávamos ter no início do ano.
A reforma administrativa avançou muito pouco e sequer descobrimos um jeito de financiar um óbvio programa de transferência de renda sem quebrar a regra do teto. Se o país decidisse por um momento sair do modo procrastinador, deveria exigir que o Congresso cumpra o aceno feito nesta semana de que irá cancelar o recesso de verão e trabalhar nas reformas.
No fundo, é disto que o país precisa. Menos conversa fiada e uma dose cavalar de senso de urgência.
Nunca se pensa no que se tem
Em que outra coisa pode pensar um mendigo a não ser em dinheiro e comida. Se você é muito pobre precisa pensar em dinheiro. Uma pessoa rica pode pensar em outra coisa, mas um pobre, não. Da mesma forma que um doente só pode pensar na saúde. A pessoa pensa no que lhe falta, não no que tem
Jorge Luis Borges
Não existe vírus grátis
Desculpe-me o trocadilho, mas tem tudo a ver com a velha frase dos bares norte-americanos que nas décadas de 1930 e 1940 ofereciam a refeição para quem pagasse a bebida. Ficou mundialmente famosa porque intitulou um dos livros do economista liberal Milton Friedman, guru do ministro da Economia, Paulo Guedes. A lembrança não tem nenhuma relação direta com suas frases de efeito, até porque, ele tem evitado declarações polêmicas, mas, com o artigo publicado, ontem, pela economista Mônica de Bolle no jornal O Estado de S. Paulo, a propósito dos custos econômicos do negacionismo de Donald Trump em relação à pandemia. Os custos políticos podem inviabilizar a reeleição dele.
Segundo os economistas norte-americanos David Cutler e Lady Summers, citados no artigo, a queda do PIB norte-americano deve chegar a US$ 16 trilhões até outubro do próximo ano, ou seja, 90% do PIB, se a pandemia for controlada até lá. Nos cálculos dos dois economistas, foram incluídos os indicadores econômicos, como o aumento dos pedidos de seguro desemprego, mas, também, estimativas relativas aos prejuízos causados pela liquidação de vidas humanas, ou seja, de força de trabalho geradora de riqueza.
Segundo os economistas norte-americanos David Cutler e Lady Summers, citados no artigo, a queda do PIB norte-americano deve chegar a US$ 16 trilhões até outubro do próximo ano, ou seja, 90% do PIB, se a pandemia for controlada até lá. Nos cálculos dos dois economistas, foram incluídos os indicadores econômicos, como o aumento dos pedidos de seguro desemprego, mas, também, estimativas relativas aos prejuízos causados pela liquidação de vidas humanas, ou seja, de força de trabalho geradora de riqueza.
O Brasil não tem indicadores que possibilitem esse tipo de cálculo, mas tem estatísticas que podem servir de referência para um razoável balanço de perdas e danos. Pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University, Mônica De Bolle destaca que o nosso Sistema Único de Saúde (SUS), posto à prova pela pandemia, pode nos dar uma noção, por exemplo, de quanto será preciso investir na Saúde em razão das sequelas da covid-19 nas pessoas que se recuperaram da doença. Como a população está envelhecendo, a pandemia também agrava, por falta de tratamento, as doenças associadas à idade — diabetes, câncer, cardiopatias —, que se somam àquelas que são consideradas endêmicas, como tuberculose, dengue, hanseníase, malária e Aids, que já pressionavam o sistema de saúde.
O número de casos graves com longas internações é sete vezes maior do que o de óbitos; 30% dos que sobreviveram apresentam sequelas. Projetam-se 350 mil pessoas nessa situação, a grande maioria dependente do SUS. Com mais de 150 mil mortos, Mônica de Bolle estima que o custo econômico da pandemia no Brasil, por baixo, pode chegar a R$ 9 bilhões, sem considerar as mortes prematuras, ou seja, dos jovens que não faziam parte da população de risco. Coincidentemente, ontem, num evento da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan), o presidente Jair Bolsonaro disse que a pandemia da covid-19 no Brasil foi superestimada. Bolsonaro insiste que o vírus e o desemprego devem ser tratados de igual maneira, simultaneamente.
O Brasil é o 2º país com mais mortes por covid-19. Só os Estados Unidos têm mais vítimas: 220.694. Até o final da tarde de ontem, eram 150.998 óbitos de brasileiros causados pela doença. Segundo o Ministério da Saúde, 5.113.628 pessoas foram infectadas pelo novo coronavírus no país, 10.220 a mais nas últimas 24 horas. O número de mortes, felizmente, está caindo: foram 309.
Aproximadamente 4,5 milhões de pessoas se recuperaram da doença até o momento. Outras 436 mil estão em acompanhamento. São 713 vítimas a cada milhão de habitantes, o que coloca o Brasil na 3ª posição de letalidade da pandemia no ranking mundial. O Peru é o país onde a covid-19 mais mata em relação ao número de habitantes (1.008 pessoas para cada milhão), o segundo é a Bélgica (880 pessoas).
As advertências de Mônica de Bolle são importantes porque as pesquisas de popularidade do presidente Jair Bolsonaro, com a recuperação de seu prestígio, reforçam o discurso negacionista oficial, robustecido pelo fato de que o pior já passou e a redução das taxas de contaminação permite que a política de isolamento social seja flexibilizada, como está sendo, na maioria das cidades. A fatura do vírus chegou primeiro para os desempregados e trabalhadores “por conta própria”, que perderam sua fonte de renda e dependem do auxílio emergencial do governo. A ideia de uma recuperação econômica rápida, acalentada pelo ministro Paulo Guedes, porém, não tem sustentação técnica. A conta está chegando para os demais à prestação.
O número de casos graves com longas internações é sete vezes maior do que o de óbitos; 30% dos que sobreviveram apresentam sequelas. Projetam-se 350 mil pessoas nessa situação, a grande maioria dependente do SUS. Com mais de 150 mil mortos, Mônica de Bolle estima que o custo econômico da pandemia no Brasil, por baixo, pode chegar a R$ 9 bilhões, sem considerar as mortes prematuras, ou seja, dos jovens que não faziam parte da população de risco. Coincidentemente, ontem, num evento da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan), o presidente Jair Bolsonaro disse que a pandemia da covid-19 no Brasil foi superestimada. Bolsonaro insiste que o vírus e o desemprego devem ser tratados de igual maneira, simultaneamente.
O Brasil é o 2º país com mais mortes por covid-19. Só os Estados Unidos têm mais vítimas: 220.694. Até o final da tarde de ontem, eram 150.998 óbitos de brasileiros causados pela doença. Segundo o Ministério da Saúde, 5.113.628 pessoas foram infectadas pelo novo coronavírus no país, 10.220 a mais nas últimas 24 horas. O número de mortes, felizmente, está caindo: foram 309.
Aproximadamente 4,5 milhões de pessoas se recuperaram da doença até o momento. Outras 436 mil estão em acompanhamento. São 713 vítimas a cada milhão de habitantes, o que coloca o Brasil na 3ª posição de letalidade da pandemia no ranking mundial. O Peru é o país onde a covid-19 mais mata em relação ao número de habitantes (1.008 pessoas para cada milhão), o segundo é a Bélgica (880 pessoas).
As advertências de Mônica de Bolle são importantes porque as pesquisas de popularidade do presidente Jair Bolsonaro, com a recuperação de seu prestígio, reforçam o discurso negacionista oficial, robustecido pelo fato de que o pior já passou e a redução das taxas de contaminação permite que a política de isolamento social seja flexibilizada, como está sendo, na maioria das cidades. A fatura do vírus chegou primeiro para os desempregados e trabalhadores “por conta própria”, que perderam sua fonte de renda e dependem do auxílio emergencial do governo. A ideia de uma recuperação econômica rápida, acalentada pelo ministro Paulo Guedes, porém, não tem sustentação técnica. A conta está chegando para os demais à prestação.
Dinheiro sujo
O Supremo Tribunal Federal (STF) esteve envolvido nos últimos dias em situações extremas, desde a soltura de um traficante condenado a 25 anos por tráfico internacional de drogas, até a suspensão de um senador da República que escondia dinheiro não apenas na cueca, mas também nas nádegas.
O presidente Bolsonaro, que alardeava que em seu governo não havia corrupção, teve que abrir mão de seu vice-lider Chico Rodrigues, com quem dizia ter “quase uma relação estável”.
O presidente do STF, ministro Luis Fux, teve ontem ratificada sua decisão de suspender o habeas corpus que seu colega Marco Aurélio Mello dera ao traficante André do Rap, em prisão preventiva. O que para Marco Aurélio desmoralizou o Supremo, para Fux a cassação salvou o tribunal da desmoralização.
Mesmo os que se incomodaram com a possibilidade de o presidente do Supremo cassar decisão de um colega, admitiram que a medida foi acertada devido à urgência do caso e à periculosidade do condenado.
Nos dois casos o Legislativo está envolvido. No habeas corpus, o ministro Marco Aurélio obedeceu à letra fria da lei, sem levar em conta outros critérios para apenas constatar que a prisão não fora reafirmada após 90 dias, como manda o artigo 316 introduzido no Código de Processo Penal (CPP) pelo Congresso através do pacote anticrime.
Ao final do julgamento, ficou definido que a soltura dos presos depois de 90 dias sem revisão da prisão preventiva não é automática, como interpretou Marco Aurélio. O juiz de primeira instância que decretou a prisão terá que ser consultado sobre se as razões da prisão continuam válidas. Com isso, mantém-se a sentido benéfico da lei, que é o de impedir que presos sem acusação formal ou sem julgamento apodreçam nas prisões. Mas impede-se que criminosos do colarinho branco e grandes traficantes se beneficiem do artigo para fugir, como aconteceu com André do Rap.
O próximo passo será definir se presos condenados em segunda instância não necessitam de uma revisão, como era o caso do traficante. Essa alteração, proposta pelos ministros Alexandre de Moraes e Luis Roberto Barroso, teve o apoio do presidente Fux, mas o ministro Ricardo Lewandowski se opôs, argumentando que cada caso tem que ser analisado individualmente, e lembrando que o Supremo já mudou a jurisprudência sobre a prisão em segunda instância, permitindo que os condenados recorram até o trânsito em julgado.
O caso do senador Chico Rodrigues, do DEM, tem sabor de farsa ao repetir tragédia já ocorrida durante o mensalão com um assessor do deputado federal petista José Guimarães, preso com dólares na cueca. Desta vez o esconderijo foi mais além da cueca, uma situação tão escatológica que obrigou o ministro Barroso a pedir à Polícia Federal que guardasse num cofre “em absoluto sigilo”, pois, “Consoante informado pela autoridade policial, o registro exibe demasiadamente a intimidade do investigado. (...) Se comprovada a culpabilidade, estará justificada a sua punição, mas não sua desnecessária humilhação pública”.
O ministro do STF não aceitou o pedido de prisão feito pela Polícia Federal, mas determinou o afastamento do senador por 90 dias, prorrogáveis por mais 90. Agora caberá ao Senado decidir se acata a decisão do ministro. Ficam então Câmara e Senado com questões éticas em suspenso.
A deputada federal Flordelis, acusada de um crime hediondo juntamente com vários filhos seus, anda com tornozeleira eletrônica, mas não vai presa porque tem imunidade parlamentar. A Câmara não consegue reunir seu Conselho de Ética para cassar seu mandato, num movimento corporativista vergonhoso.
Agora o Senado terá que encarar mais esse problema ético. Não há prova mais definitiva de quebra do decoro como a que o senador Chico Rodrigues deu. A maior prova de que o dinheiro que tentou esconder no seu íntimo é ilegal é que ele declarou à Justiça Eleitoral em 2018 que tinha em casa cerca de R$ 500 mil em dinheiro vivo.
Esse caso tem o agravante de ser conseqüência de verbas extras para combate à Covid-19 que o presidente Davi Alcolumbre conseguiu com o Palácio do Planalto para pavimentar o apoio à sua reeleição, até o momento ilegal.
'A imunidade de rebanho é uma perigosa falácia sem respaldo científico'
A chamada imunidade de rebanho, que consiste em deixar que a população se infecte livremente para que desenvolva proteção de forma natural, é “uma falácia perigosa sem evidência científica”. Desta forma contundente se expressou um grupo de 80 cientistas numa carta aberta publicada na revista médica The Lancet, em resposta à proliferação de teorias que defendem essa estratégia contra o coronavírus. Os pesquisadores advertem que a ausência de medidas de controle aumentaria a mortalidade em toda a população, afetaria a economia de forma irreversível, prolongaria a epidemia e paralisaria todos os sistemas sanitários. A diretora científica da Organização Mundial da Saúde (OMS), Soumya Swaminathan, calcula que 1% da população mundial (77 milhões de pessoas) morreria com uma medida como a imunização coletiva natural.
Em setembro, um estudo científico preliminar apontou que 66% dos moradores de Manaus, no coração da floresta amazônica, já teriam anticorpos para a covid-19, o que faria da cidade a primeira no mundo a alcançar imunidade coletiva. Isso seria produto da simples inação dos governantes para conter o avanço da pandemia. A pesquisa ainda precisa passar pela revisão dos pares, porém, uma nova onde de casos na região coloca em xeque essa tese.
A estratégia de permitir a livre infecção entre as pessoas, no entanto, não começou no Brasil. Ela ganhou força depois de uma proposta, intitulada Declaração de Great Barrington, assinada pelos epidemiologistas Martin Kulldorff (da universidade Harvard), Sunetra Gupta (Oxford) e Jay Bhattacharya (Stanford). Sua ideia é “permitir àqueles que estão sob um risco mínimo de morte que vivam suas vidas com normalidade para alcançar a imunidade ao vírus através da infecção natural, enquanto se protege melhor àqueles que se encontram sob maior risco”, segundo escreveram os três signatários. “Chamamos isso de Proteção Focada.”
A proposta gerou numerosas adesões, mas também a reação imediata da OMS e da comunidade científica, que terminou por responder através dos 80 signatários da carta na The Lancet e onde observam, de saída, que “a proporção de pessoas vulneráveis constitui até 30% da população em algumas regiões”.
“Qualquer estratégia de gestão da pandemia que dependa da imunidade das infecções naturais pelo coronavírus é errônea”, afirmam os cientistas. Segundo eles, a transmissão descontrolada nas pessoas mais jovens (supostamente com menor risco de morte) pode acabar aumentando a mortalidade em toda a população. “O custo humano seria enorme”, acrescenta Swaminathan.
A diretora científica da OMS aponta, além disso, que alcançar a imunidade coletiva de forma natural exigiria que pelo menos 70% da população desenvolvesse anticorpos, um processo que levaria muito tempo e que os autores da carta aberta alertam que teria efeitos catastróficos para a economia global. “Além disso, não há provas de uma imunidade protetora duradoura ao SARS-CoV-2 como resultado da infecção natural, e a transmissão endêmica suporia um risco para as populações vulneráveis”, acrescentam.
Além da alta mortalidade, a estratégia da imunidade de rebanho traria um desafio insustentável para os sistemas de saúde. “Se todo mundo adoece de uma vez, o sistema hospitalar tem que estar muito bem desenhado para poder absorver todos esses doentes”, escrevem Esperanza Gómez-Lucía e José Antonio Ruiz-Santa-Quiteria, pesquisadores do Departamento de Saúde Animal da Universidade Complutense de Madri.
A imunidade de rebanho natural, longe de pôr fim à pandemia, segundo os cientistas, “daria lugar a epidemias recorrentes, como ocorreu com numerosas doenças infecciosas antes do desenvolvimento de vacinas”. É o caso do ressurgimento do sarampo onde os movimentos antivacina proliferaram ou os programas de imunização não foram completados.
Os autores da carta também são contra o conceito de Proteção Focada, defendido pelos autores da Declaração de Great Barrington. Em primeiro lugar, porque definir quem é vulnerável é complexo no caso do coronavírus e, em segundo lugar, porque afirmam que “o isolamento prolongado de grandes faixas da população é praticamente impossível e pouco ético”.
“A evidência empírica de muitos países mostra que não é factível restringir os surtos descontrolados a setores particulares da sociedade. Este enfoque também corre o risco de exacerbar ainda mais as desigualdades socioeconômicas e as discriminações estruturais já expostas pela pandemia”, argumentam os cientistas.
O diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, somou-se a estas advertências e afirmou que a imunidade coletiva significa “permitir infecções, sofrimentos e mortes desnecessárias”. “Nunca na história da saúde pública se utilizou a imunidade coletiva como estratégia para responder a um surto, e muito menos a uma pandemia. É científica e eticamente questionável”, afirmou.
Adhanom e os cientistas atribuem as adesões à questionada imunidade de grupo à “frustração que o avanço da pandemia suscita em muitas pessoas, comunidades e Governos”. Mas insiste em que a única maneira de obter a imunidade coletiva é através das vacinas. “Não há nenhum atalho nem nenhuma medida única. É preciso empregar todas as ferramentas das quais dispomos.”
O coronavírus já infectou mais de 35 milhões de pessoas em todo o mundo e causou a morte de mais de um milhão. Os cientistas apontam como únicas medidas eficazes as que suprimem e controlam a transmissão, respaldadas por programas financeiros e sociais.
As medidas concretas que eles defendem coincidem com aquelas globalmente aceitas: distanciamento físico, uso de revestimentos faciais, higiene respiratória e de mãos, evitar multidões e espaços mal ventilados, testes rápidos, rastreamento de contatos e o isolamento. Estas são essenciais para reduzir a mortalidade e evitar o colapso dos serviços sanitários.
“A evidência é muito clara: controlar a propagação comunitária da covid-19 é a melhor maneira de proteger nossas sociedades e economias até que cheguem vacinas e terapias seguras e eficazes nos próximos meses. Não podemos nos permitir distrações que solapem uma resposta eficaz; é essencial agirmos com urgência com base em evidências”, concluem os pesquisadores.
O grupo de 80 cientistas internacionais que assinam a carta na The Lancet é composto por pesquisadores em saúde pública, epidemiologia, medicina, pediatria, sociologia, virologia, doenças infecciosas, sistemas sanitários, psicologia, psiquiatria, política de saúde e modelagem matemática. A carta será oficialmente lançada durante o 16º Congresso Mundial sobre Saúde Pública.
Em setembro, um estudo científico preliminar apontou que 66% dos moradores de Manaus, no coração da floresta amazônica, já teriam anticorpos para a covid-19, o que faria da cidade a primeira no mundo a alcançar imunidade coletiva. Isso seria produto da simples inação dos governantes para conter o avanço da pandemia. A pesquisa ainda precisa passar pela revisão dos pares, porém, uma nova onde de casos na região coloca em xeque essa tese.
A estratégia de permitir a livre infecção entre as pessoas, no entanto, não começou no Brasil. Ela ganhou força depois de uma proposta, intitulada Declaração de Great Barrington, assinada pelos epidemiologistas Martin Kulldorff (da universidade Harvard), Sunetra Gupta (Oxford) e Jay Bhattacharya (Stanford). Sua ideia é “permitir àqueles que estão sob um risco mínimo de morte que vivam suas vidas com normalidade para alcançar a imunidade ao vírus através da infecção natural, enquanto se protege melhor àqueles que se encontram sob maior risco”, segundo escreveram os três signatários. “Chamamos isso de Proteção Focada.”
A proposta gerou numerosas adesões, mas também a reação imediata da OMS e da comunidade científica, que terminou por responder através dos 80 signatários da carta na The Lancet e onde observam, de saída, que “a proporção de pessoas vulneráveis constitui até 30% da população em algumas regiões”.
“Qualquer estratégia de gestão da pandemia que dependa da imunidade das infecções naturais pelo coronavírus é errônea”, afirmam os cientistas. Segundo eles, a transmissão descontrolada nas pessoas mais jovens (supostamente com menor risco de morte) pode acabar aumentando a mortalidade em toda a população. “O custo humano seria enorme”, acrescenta Swaminathan.
A diretora científica da OMS aponta, além disso, que alcançar a imunidade coletiva de forma natural exigiria que pelo menos 70% da população desenvolvesse anticorpos, um processo que levaria muito tempo e que os autores da carta aberta alertam que teria efeitos catastróficos para a economia global. “Além disso, não há provas de uma imunidade protetora duradoura ao SARS-CoV-2 como resultado da infecção natural, e a transmissão endêmica suporia um risco para as populações vulneráveis”, acrescentam.
Além da alta mortalidade, a estratégia da imunidade de rebanho traria um desafio insustentável para os sistemas de saúde. “Se todo mundo adoece de uma vez, o sistema hospitalar tem que estar muito bem desenhado para poder absorver todos esses doentes”, escrevem Esperanza Gómez-Lucía e José Antonio Ruiz-Santa-Quiteria, pesquisadores do Departamento de Saúde Animal da Universidade Complutense de Madri.
A imunidade de rebanho natural, longe de pôr fim à pandemia, segundo os cientistas, “daria lugar a epidemias recorrentes, como ocorreu com numerosas doenças infecciosas antes do desenvolvimento de vacinas”. É o caso do ressurgimento do sarampo onde os movimentos antivacina proliferaram ou os programas de imunização não foram completados.
Os autores da carta também são contra o conceito de Proteção Focada, defendido pelos autores da Declaração de Great Barrington. Em primeiro lugar, porque definir quem é vulnerável é complexo no caso do coronavírus e, em segundo lugar, porque afirmam que “o isolamento prolongado de grandes faixas da população é praticamente impossível e pouco ético”.
“A evidência empírica de muitos países mostra que não é factível restringir os surtos descontrolados a setores particulares da sociedade. Este enfoque também corre o risco de exacerbar ainda mais as desigualdades socioeconômicas e as discriminações estruturais já expostas pela pandemia”, argumentam os cientistas.
O diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, somou-se a estas advertências e afirmou que a imunidade coletiva significa “permitir infecções, sofrimentos e mortes desnecessárias”. “Nunca na história da saúde pública se utilizou a imunidade coletiva como estratégia para responder a um surto, e muito menos a uma pandemia. É científica e eticamente questionável”, afirmou.
Adhanom e os cientistas atribuem as adesões à questionada imunidade de grupo à “frustração que o avanço da pandemia suscita em muitas pessoas, comunidades e Governos”. Mas insiste em que a única maneira de obter a imunidade coletiva é através das vacinas. “Não há nenhum atalho nem nenhuma medida única. É preciso empregar todas as ferramentas das quais dispomos.”
O coronavírus já infectou mais de 35 milhões de pessoas em todo o mundo e causou a morte de mais de um milhão. Os cientistas apontam como únicas medidas eficazes as que suprimem e controlam a transmissão, respaldadas por programas financeiros e sociais.
As medidas concretas que eles defendem coincidem com aquelas globalmente aceitas: distanciamento físico, uso de revestimentos faciais, higiene respiratória e de mãos, evitar multidões e espaços mal ventilados, testes rápidos, rastreamento de contatos e o isolamento. Estas são essenciais para reduzir a mortalidade e evitar o colapso dos serviços sanitários.
“A evidência é muito clara: controlar a propagação comunitária da covid-19 é a melhor maneira de proteger nossas sociedades e economias até que cheguem vacinas e terapias seguras e eficazes nos próximos meses. Não podemos nos permitir distrações que solapem uma resposta eficaz; é essencial agirmos com urgência com base em evidências”, concluem os pesquisadores.
O grupo de 80 cientistas internacionais que assinam a carta na The Lancet é composto por pesquisadores em saúde pública, epidemiologia, medicina, pediatria, sociologia, virologia, doenças infecciosas, sistemas sanitários, psicologia, psiquiatria, política de saúde e modelagem matemática. A carta será oficialmente lançada durante o 16º Congresso Mundial sobre Saúde Pública.
Assinar:
Postagens (Atom)