Pawel Kuczynski |
sexta-feira, 8 de março de 2019
O Brasil precisa de um estadista
Antes de entender que qualidades um estadista deveria ter agora, é preciso mostrar por quais razões um líder com tais predicados seria mais urgente neste momento. A resposta mais ampla é a confluência de várias crises no mesmo ponto da história, numa intensidade e combinação raras, uma verdadeira tempestade perfeita.
A primeira crise é a econômica. Ela não pode ser representada apenas pelo baixo crescimento e enorme desemprego. Por trás de tudo isso, há a necessidade de reformar grande parte do modelo econômico, dando maior solvência fiscal ao Estado, melhorando a competitividade da economia, fortalecendo os pilares da produtividade (principalmente em termos educacionais) e garantindo um mercado de trabalho que gere mais e melhores empregos.
Não será nada fácil, pois transformação de tal envergadura exigirá mudanças legislativas difíceis, como as reformas da Previdência e do sistema tributário, além de um processo intrincado de implementação - por exemplo, quem vai formular e executar as melhorias na educação necessárias para qualificar o capital humano?
Mas a crise econômica não pode ser descolada da dinâmica social brasileira. A característica mais marcante do país é a desigualdade e reformar o Estado sem levar em conta isso é mais do que uma falta de sensibilidade. É um passo para o precipício. A tarefa é árdua porque teremos de, a um só tempo, garantir a solvência do Estado sem piorar a vida dos mais pobres do país. Olhar apenas para um lado levará a dois fins trágicos: ou será o caminho para inviabilizar as políticas públicas porque não teremos dinheiro para tal, ou será a trilha para deslegitimar o governo frente à maior parcela da população.
Sendo mais direto: o Brasil não pode gastar com a Previdência o volume de recursos em relação PIB que gasta hoje, mas não pode deixar para atrás os desvalidos urbanos e rurais que não tiveram igualdade de oportunidades no ponto de partida, sobretudo do ponto de vista da educação, ou que tenham problemas de saúde graves. Há muita coisa para mudar no modelo previdenciário do setor público, no ajuste mais parcimonioso do país à sua demografia e nos generosos subsídios às empresas ou mesmo à classe média.
O ponto mais nevrálgico, no entanto, é a crise política. O alicerce do sistema partidário por mais de 20 anos foi destruído, sem que algo em seu lugar fosse colocado. O processo de renovação que ocorreu é muito mais heterogêneo, inorgânico e frágil do que pode pensar a vã filosofia dos crentes na reforma moral do país. O Congresso não tem hoje uma coluna vertebral e o partido do presidente, além de francamente minoritário, é composto por neófitos na política, incapazes de entender a profundidade da crise e os seus remédios. Brincam de propor a Escola sem Partido, a mudança forçada da composição do STF e outras bobagens. Estão muito distantes de um diagnóstico sério, que envolva não só o entendimento dos problemas do país, mas que busque ainda inspiração na experiência internacional bem-sucedida. Essa dispersão temática só vai atrapalhar a busca do essencial.
O amadorismo político, na verdade, começa no Executivo. Desde a redemocratização, nunca se viu um fosso tão grande entre o Palácio do Planalto e as duas Casas Legislativas. Continuar usando a estratégia da campanha eleitoral como forma de convencer os congressistas é desastroso em termos de efetividade política. O presidente Bolsonaro tem que montar uma maioria parlamentar para aprovar reformas constitucionais, e isso exige construir uma coalizão, ou para usar uma palavra mais adequada ao bolsonarismo, um casamento partidário. É o que ocorre em todas as democracias multipartidárias, algo mais complexo no Brasil por conta da enorme fragmentação partidária.
Para piorar, a crise política pode ficar mais ampla, tornando-se geopolítica. A forma como o Brasil tem se comportado nos últimos três meses no cenário internacional é, no mínimo, temerária. O sucesso do país sempre esteve atrelado, embora de diferentes formas no tempo, à sua posição moderada e cooperativa em relação a diversos atores estrangeiros, sejam países ou organismos multilaterais. Mas o chanceler quer dar um cavalo de pau e colocar o Brasil numa cruzada de transformações semelhantes ao pós-Segunda Guerra Mundial. Essa ousada aposta aumenta a incerteza sobre nosso futuro nos próximos anos.
Por conta dessa soma de crises, precisamos urgentemente de um estadista que seja capaz de ter três qualidades. A primeira é pensar além do seu mandato. Isso envolve, de um lado, levar em conta o projeto de nação inscrito em nossa história e reforçado pela Constituição de 88. Um rompimento brusco com o que, arduamente, construímos poderá enfraquecer as bases mais sólidas do país.
Por outro lado, o momento exige um estadista capaz de explicar ao país quais são as medidas necessárias para termos um futuro melhor. Em alguns aspectos, isso significará muita gritaria de vários grupos, incluindo bolsonaristas, e uma provável perda de popularidade. Mas é preciso que o presidente Bolsonaro saiba que, sem fazer alterações profundas nas políticas públicas, em pouco tempo ele também perderá legitimidade. Sem melhorar a situação fiscal, ganhar a confiança da comunidade internacional em questões como o meio ambiente e os direitos humanos e iniciar um projeto que sinalize a melhoria da educação, não haverá Trump que nos salve. E o alarme vai soar bem antes do fim do mandato.
A segunda qualidade de estadista diz respeito ao amplo diálogo com as principais forças políticas e sociais do país. Esse predicado será necessário para, primeiramente, legitimar e aprovar reformas difíceis, que não vão parar na Previdência. A estratégia de atropelar o mundo político e de jogar a culpa nos adversários não dará certo. Governos de outra linha ideológica tentaram fazer isso e só provocaram mais crise.
A maior abertura ao diálogo é fundamental, ademais, para reduzir a polarização política. Cabe lembrar que o que pode ser útil para ganhar uma eleição pode ter o efeito contrário quando se é governo. Alimentar a divisão do país, por meio de guerras culturais e contínua provocação dos adversários, só vai atrapalhar a realização de mudanças estruturais do Estado. Um exemplo: muitos implementadores das políticas públicas podem não ter votado no presidente e caso se sintam alijados ou forem xingados, nada os fará cooperar.
Além disso, o presidente Bolsonaro deveria ouvir mais outros grupos sociais que ultrapassem seu círculo de apoiadores, pois, diga-se a verdade, seu plano de governo era bastante incompleto, dado que não tinha o diagnóstico de vários problemas do país. Ele precisará agregar mais informações e soluções que não estavam colocadas no processo eleitoral. Imerso numa imensa crise, o Brasil precisa agora de alguém que, em alguma medida, junte os diferentes e disso obtenha maior força e legitimidade políticas.
O rol de qualidades do estadista se completa com o exercício de liderança em tempos difíceis. Em situações assim, grande parte do capital político obtido com a eleição será gasta. Para que esse processo seja mais eficiente, Bolsonaro precisa definir de que maneira irá convencer as pessoas e os grupos políticos da urgência das mudanças mais duras. O presidente pode e deve descentralizar várias decisões governamentais para gestores competentes. Mas os temas mais complexos e polêmicos devem ser liderados por ele.
A liderança de um estadista também se mede por sua capacidade de arbitrar conflitos e avaliar as decisões de seus subordinados. Muitas confusões ocorreram em pouco tempo de governo, concentradas em alguns ministérios, e aparentemente o presidente esteve alheio a maioria delas. No fundo, a impressão que se tem é que Bolsonaro ainda não em uma ideia clara de quais são as prioridades do país e que futuro imagina para as principais áreas de políticas públicas. Sua inexperiência no Executivo e a falta de um grupo político mais orgânico e preparado para os desafios do poder explicam esse quadro de incerteza decisória.
Claro que o presidente pode optar por um outro caminho, acreditando, erroneamente, que só deve responder a um grupo sectário que o apoiou desde o início. Se seguir essa trilha, todo o restante, num tempo menor do que se imagina, vai abandoná-lo, e a grande maioria estará do lado contrário de Bolsonaro. O tempo é de mudar o padrão de liderança, antes que o presidente descubra a verdadeira solidão do Palácio do Planalto, olhando para os retratos de Jânio, Collor e Dilma.Fernando Abrucio
Estoque reduzido
Certamente a paciência é uma virtude humana diante do desespero e uma couraça contra a adversidadeNagib Mahfuz, "O jogo do destino"
Quebrando louças
Desde seu grotesco discurso de posse, atulhado de arroubos e bravatas ginasianas, já devia estar claro para todos que Bolsonaro nunca se viu na obrigação de medir suas palavras e gestos, adequando-os à sua condição de chefe de Estado. Ao contrário: a julgar pelo comportamento muitas vezes grosseiro e indecoroso de Bolsonaro, o presidente provavelmente se considera acima do cargo que ocupa, dispensado dos rituais e protocolos próprios de tão alta função. Até à disseminação de pornografia pelas redes sociais ele tem se dedicado, para estupefação nacional e internacional.
Se estratégia há, é a de deixar o País apreensivo a cada novo tuíte ou discurso presidencial, pois nunca se sabe o que virá. Bolsonaro parece imaginar que foi eleito para dizer o que lhe vem à cabeça, sem se importar com os estragos – e seus assessores que se esforcem para tentar reduzir os prejuízos decorrentes de seus excessos.
Mas há casos em que nem mesmo o mais habilidoso ministro é capaz de remendar. Como explicar, por exemplo, o discurso de ontem do presidente, durante cerimônia no Corpo de Fuzileiros Navais do Rio, quando ele disse, com todas as letras, que “democracia e liberdade só existem quando as Forças Armadas assim o querem”? Será necessário um grande malabarismo retórico para não considerar esse discurso como explícita manifestação de um pensamento irremediavelmente autoritário, de quem acredita que a democracia é apenas um favor dos militares aos civis. Para o presidente da República – é o que se conclui –, a democracia e a liberdade seriam meramente circunstanciais, pois dependeriam não da força e da solidez das instituições democráticas e da honestidade de convicção dos homens que ele próprio chefia, e sim dos humores dos quartéis.
Vai mal um país cujo presidente claramente não entende qual é seu papel, especialmente quando não consegue dominar os pensamentos que, talvez, lhe venham à mente. Como chefe de Estado, Bolsonaro tem a obrigação de saber que todas e cada uma de suas palavras nortearão o debate político nacional, seja no Congresso, seja nas ruas, e terão consequências também no delicado campo da economia. O presidente deve ter consciência de que não é mais candidato, condição que lhe permitia incorporar o personagem histriônico e falastrão que seus fanáticos seguidores apelidaram de “mito”. Deve entender que sua retórica truculenta e polarizadora pode ter sido muito útil para viabilizar sua candidatura presidencial, mas é péssima para agregar apoio político para um governo que começa sem base visível no Congresso.
Antagonizar foliões do carnaval nas redes sociais, como fez Bolsonaro de forma imprópria e estouvada, divulgando um vídeo pornográfico a título de “expor a verdade”, provavelmente não agregará um único voto dos tantos necessários para aprovar no Congresso os projetos de real interesse do País. Nem mesmo alguns de seus mais sinceros apoiadores aprovaram a grosseria, razão pela qual os assessores presidenciais se viram na contingência de soltar uma nota oficial para tentar explicar o inexplicável, obviamente sem sucesso.
O bom senso sugere que não se deve esperar que Bolsonaro de repente compreenda seu papel e se transforme num estadista, capaz de, em poucas palavras, guiar as expectativas do País. Diante disso, a ala adulta do governo parece ter decidido trabalhar por conta própria, tentando reparar os danos da comunicação caótica e imprudente de Bolsonaro – desde os prejuízos econômicos causados pelo despropositado antagonismo público do presidente em relação à China e aos países árabes, até a dificuldade de arregimentar apoio a uma reforma da Previdência na qual Bolsonaro parece não acreditar. Pelo que se viu até aqui, todo o esforço que alguns de seus auxiliares estão fazendo para que o presidente desastrado não quebre toda a louça será inútil. Bolsonaro está ficando cada vez mais rápido e certeiro. Em Davos, precisou de seis minutos para mostrar sua incompetência administrativa. Com os fuzileiros navais, não precisou de mais de quatro minutos para revelar sua face autoritária e sua ignorância cívica.
Acabou nosso Carnaval?
Pelas redes o que se vê/É uma gente que nem se vê/ Que nem se sorri/Ataca e ameaça/E sai tuitando/ Brigando e xingando/Torcidas do horror.
Peço perdão a Vinicius de Moraes, mas nesta Quarta-Feira de Cinzas em que escrevo minha coluna semanal para ÉPOCA, a situação brasileira é tão tóxica que nem saudades nem cinzas restaram. O presidente da República precisa aprovar uma reforma, mas puxou o tapete debaixo dos pés de Sergio Moro e enfraqueceu um de seus superministros. O presidente da República precisa aprovar uma reforma, mas já demonstrou relutância em relação a pontos do plano apresentado por Paulo Guedes, o outro superministro entre os únicos dois a ter respaldo técnico em suas áreas. O presidente da República precisa passar uma reforma, mas, na terça-feira gorda, preferiu tuitar vídeos pornográficos atacando o Carnaval, como se todos assim se comportassem, e, por tabela, manchar a instituição da Presidência. O presidente da República precisa passar uma reforma, mas prefere incitar a divisão estúpida sobre assuntos comezinhos ante o tamanho dos desafios que enfrenta o Brasil. O presidente da República precisa passar uma reforma, mas prefere perder tempo com a ignomínia de alguns de seus ministros, de seus filhos, de alguns de seus seguidores nas redes sociais. O presidente da República precisa passar uma reforma, mas prefere tuitar perguntas esdrúxulas no amanhecer das cinzas.
Há quem já tenha se dado conta de que a reforma apresentada por Paulo Guedes está ameaçada pelas próprias atitudes do chefe da nação. Rodrigo Maia, presidente da Câmara, soltou advertência sobre a desorganização da base governista no Congresso e disse, nas entrelinhas, que desse jeito não vai dar. Entre os investidores, começa a despontar a sensação desagradável de que o atual presidente da República, governado pelas redes sociais, não terá estofo ou coragem para enfrentar a saraivada de contestações sobre os principais pontos da reforma. Volto sempre ao mesmo ponto, que não canso de repetir: o eleitor real de Bolsonaro, aquele que é fiel ao capitão, não aquele que repudiou o PT, não votou na reforma da Previdência. O eleitor fiel de Bolsonaro talvez nem saiba direito por que a reforma da Previdência é necessária — não falo da turma do mercado financeiro que ainda não largou o osso. Falo das pessoas que haverão de pressionar para que a reforma seja diluída ou que verão nela — sobretudo no tempo adicional que terão de trabalhar para desfrutar de suas contribuições — uma espécie de traição. Não falar durante a campanha dá nisso. Não dizer o que defende durante a campanha, não comparecer a debates, esconder-se nas redes e recolher-se às bolhas dá nisso. Agora que o Carnaval passou e que a vida real haverá de se impor, Bolsonaro terá duas escolhas: enfrentar o debate e a eventual queda de sua aprovação e popularidade ou criar chuvas azuis, cor-de-rosa, verdes, amarelas, douradas ou de qualquer outro tom que desvie a atenção por um tantinho de tempo daquilo que de fato importa para o país. Não acredito que o Carnaval de Bolsonaro — não a festa popular, mas a fábrica de inutilidades que ele e os seus criaram — acabe nesta semana.
A briga mais ferrenha será não com os servidores públicos que, segundo a proposta de Guedes, teriam de contribuir muito mais do que hoje o fazem. A briga mais ferrenha será com eleitores desiludidos, porque, ao não entenderem a urgência da reforma da Previdência por falhas de Bolsonaro durante a campanha, verão na Previdência o espectro do estelionato eleitoral. A idade mínima, o tempo de contribuição, as regras de transição — tudo necessário, nada explicado. Tudo necessário, nada entendido pela maioria da população brasileira.
Enquanto isso, quem disser essas verdades para lá de inconvenientes continuará a ser alvo da turba que saliva nas redes. Mas não faz mal. A realidade sempre se impõe, mais cedo ou mais tarde. Para os que pedem vai vai vai vai, não vou. Para os que negam a vida real fora das bolhas virtuais, advirto: vai vai vai vai, sofrer; vai vai vai vai, chorar; vai vai vai arrepender. Saravá.
Monica de Bolle
Entre Bolsonaro e a democracia, creiam, militares escolheriam a democracia
Não adianta. Ele não entende a democracia. Ponto final. Imaginem o que teria acontecido se, na Presidência da República, Lula tivesse dito em algum momento: "Democracia e liberdade só existem quando os trabalhadores querem". Como sua origem era o meio sindical, a leitura óbvia e necessária teria sido uma só: se o PT decidir, põe fim à democracia. Mas Lula não disse isso, certo? Nem por isso, é verdade, o PT deixou de aparelhar o Estado. E foi combatido — inclusive por este escriba.
Não há como dourar a pílula. Bolsonaro quis dizer o que disse e disse o que quis dizer, o que implica uma agressão múltipla à Constituição Federal. Fere o Parágrafo Único do Artigo 1º:
"Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição."
Observem que não está escrito lá que todo o poder emana das "Forças Armadas".
Há um outro artigo que as implica diretamente com a questão democrática. É o 142:
"As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem."
Como se nota, elas são garantias dos poderes constitucionais, não forças de tutela. Para que intervenham, inclusive, na garantia da lei e da ordem internas, é preciso que contem com a concordância dos demais Poderes. Que são civis.
O general Hamilton Mourão, vice-presidente também eleito, tentou dourar a pílula, assegurando que a fala foi mal interpretada. E empregou a Venezuela como exemplo. Como, naquele país, as Forças Armadas ainda garantem o apoio a Nicolás Maduro, então vige uma ditadura.
O general é inteligente o bastante para saber que sua frase pode ser desconstruída sem muito esforço. Então ficamos assim, senhor vice-presidente: a democracia existe por vontade do povo; as ditaduras, por vontade dos militares. O que lhes parece? Há uma diferença que distingue a civilização da barbárie entre estas duas frases de sentidos semelhantes apenas na aparência:
1: Nas democracias, as Forças Armadas garantem os Poderes Constituídos;
2: só existem democracia e Poderes Constituídos se as Forças Armadas quiserem.
Na primeira, elas se subordinam à ordem democrática; na segunda, elas a tutelam. Os países que vivem a circunstância nº 1 são democracias; os que experimentam a nº 2 são ditaduras.
O contexto da fala de Bolsonaro também é elucidativo. Ele não fala como chefe de Estado, como chefe de uma milícia política. Ainda fazendo referência ao vídeo pornô que espalhou Brasil afora, afirmou:
"A missão será cumprida ao lado das pessoas de bem do nosso Brasil, daqueles que amam a pátria, daqueles que respeitam a família, daqueles que querem aproximação com países que têm ideologia semelhante à nossa, daqueles que amam a democracia."
E aí veio o complemento:
"E isso, democracia e liberdade, só existe quando a sua respectiva Força Armada assim o quer".
Como se nota, Bolsonaro se dá o direito de determinar o que sejam amor à pátria, respeito à família e amor à democracia. Quanto aos países "que têm ideologia semelhante à nossa", devemos ficar no aguardo: assim que este gênio da raça definir a nossa "ideologia oficial", vamos ver de quais ele pretende se aproximar e se distanciar. Penso aqui em alguns compradores dos nossos produtos e que compõem mais da metade do nosso superávit comercial: China, países árabes e Irã. O Brasil deve repudiá-los, no cenário internacional, em razão das diferenças?
Que coisa! A cada dia, uma insanidade nova.
Sim, Bolsonaro já violou o Item 7 do Artigo 9º da Lei 1.079 ao espalhar um vídeo pornô. Agora atenta contra os valores expressos nos incisos II, III e IV do Artigo 4º da mesma lei. Lá está escrito:
"São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentarem contra a Constituição Federal, e, especialmente, contra: II – O livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados; III – O exercício dos direitos políticos, individuais e sociais: IV – A segurança interna do país."
No fim das contas, está dizendo às Forças Armadas: "Enquanto vocês segurarem a minha onda, faço o que "bem entender".
Asseguro ao presidente Jair Bolsonaro que não será assim.
Se preciso, o povo o derruba, segundo a Constituição. E as Forças Armadas vão garantir a Constituição, não um doido der plantão.
Se chegar a um ponto desejado por ninguém, os militares ficam com a democracia, e Bolsonaro cai.
Para encerrar: nos EUA tão admirados pelo presidente, se Donald Trump afirma algo semelhante, é deposto por um processo de impeachment. Inclusive com os votos dos republicanos, que não veem a hora de se livrar do seu próprio maluco.
Militares viraram a tecla SAP de Jair Bolsonaro
As manifestações de Jair Bolsonaro instilam na alma do brasileiro uma sensação insuportável de exílio, uma brutal nostalgia do Brasil. Todos sabiam que o presidente da República não fala as línguas de Dante, Goethe e Shakespeare. Mas ninguém imaginava que estivesse desaprendendo a de Camões. Expressa-se num idioma muito parecido com o português, uma espécie de bolsonarês Para compreendê-lo, tornou-se imperioso esperar pela "tradução" dos militares.
No original, Bolsonaro virou um outro nome para controvérsia. Ele vai de uma polêmica a outra sem a concessão de um entreato para que a plateia tome fôlego. Com naturalidade hedionda, pula do "golden shower" para a democracia relativa, que "só existe quando as Forças Armadas assim o querem". Não há nota oficial ou esclarecimento capaz de acompanhar a fecunda loquacidade do capitão.
A nota do porta-voz da Presidência, general Rêgo Barros, sobre o apreço de Bolsonaro pelo Carnaval mal conseguira sedar o noticiário da véspera e o chefe do GSI, general Augusto Heleno, já teve de levar a cara às redes sociais para traduzir um Bolsonaro que estava ao seu lado. O presidente perguntou se Heleno enxergara alguma polêmica em suas declarações sobre democracia.
E o general: "É claro que não. Isso não tem nada de polêmico, ao contrário. Suas palavras foram ditas de improviso, para uma tropa qualificada, e foram colocadas exatamente para aqueles que amam a sua pátria, aqueles que vivem diariamente o problema da manutenção da democracia e da liberdade, e exortando para que [os militares] continuem a fazer o papel que vêm fazendo, de serem os guardiões da democracia e da liberdade".
Numa transmissão ao vivo na página de Bolsonaro no Facebook, Heleno culpou a imprensa pela eletrificação do noticiário. "Tentaram distorcer isso como se [a garantia da democracia] fosse um presente das Forças Armadas para os civis. Não é nada disso."
Mais cedo, outro general, o vice-presidente Hamilton Mourão, também atribuíra os ruídos à incapacidade dos jornalistas de compreender o bolsonarês. "Está sendo mal interpretado. Ele falou que onde as Forças Armadas não estão comprometidas com democracia e liberdade esses valores morrem. É o que acontece na Venezuela. Lá, as Forças Armadas venezuelanas rasgaram isso aí."
Quando você assiste a um filme pela televisão, pode escolher entre ouvir o som dublado ou apertar a tecla SAP, para escutar a fala dos atores no original —normalmente em língua inglesa. No enredo estrelado por Bolsonaro, os militares viraram uma espécie de tecla SAP do presidente da República. Vale o que eles dizem na dublagem, não o que se ouve no original. Com dois meses de governo, o que Bolsonaro balbucia já não se escreve.
No seu "Diário Intemporal", Mário da Silva Brito atribui a Monteiro Lobato a seguinte frase: "A pátria é o idioma, e só no idioma pátrio a gente pode pensar bem e dizer besteira."
Pode-se dizer em bolsonarês as mesmas besteiras que seriam ditas em português. A diferença é que, na pátria em que os brasileiros estão momentaneamente exilados, Bolsonaro pensa mal. Frequentemente, ele envereda pela trilha do eufemismo. Cospe cacófatos em série. Abraça qualquer substantivo promíscuo que enxerga pela frente. Não consegue livrar-se das mordidas dos anacolutos. E desespera-se ao notar que chega sempre ao mesmo lugar-comum. Até os tradutores militares estão achando tudo muito monótono.
Quem tem medo de Lobato?
Na verdade, tanto ela quanto o Saci-Pererê são pretos míticos, a alma do imaginário brasileiro de todos, brancos e negros, cernes de nossa identidade cultural mestiça. Para muitos, uma imperfeição; para outros, expressão de nossa pluralidade, uma de nossas maiores virtudes.
Por cerca de um século, a obra de Monteiro Lobato formou nossa consciência social e educou várias gerações de brasileiros, de várias origens, para uma compreensão brasileira e crítica dos atrasos de nossa sociedade. A crítica de nossas sutis injustiças saídas da boca de crianças bem-nascidas, mas educadas nas ambivalências do que restava culturalmente das polarizações do cativeiro. Sobretudo no rico imaginário humanizador que há nas fantasias e lendas da preta velha.
Retificar a obra de Lobato, para corrigir-lhe as cruas verdades da desigualdade e da injustiça, é indevida e inadmissível censura de obra literária, coisa de polícia e não coisa de literatura. É criar uma mentira para enganar crianças e adultos. Fazer das histórias de Lobato uma literatura pó de arroz.
Emília quer reformar a natureza e o mundo, impelida pelo simplismo modernizador de refazer o já feito, a destruição do ser em nome do não ser. Já Tia Nastácia, ao contrário, quer prover a alma da criança brasileira com os entes libertadores do imaginário da senzala. É ela quem inventa o Brasil que conhecemos. O Brasil que ouve e ensina, não o Brasil que manda.
Lobato é um educador e um reformador da sociedade. Diferentemente das elites de então, ele quer destravar o desenvolvimento econômico e quer desalienar os que viam o Brasil como se Brasil não fosse.
Nenhuma criança se tornou racista por ler os livros de Lobato. Nenhuma deixou de ser seduzida pelo afeto generoso de Tia Nastácia, o de um coração que tem lugar para todos, que não discrimina mas acolhe, mesmo quem a discrimina. As crianças e os adolescentes de várias gerações é que são os justos juízes da obra de Monteiro Lobato e mais ninguém.
O sectarismo e a intolerância que se difundem entre nós desde o início dos anos 1960 vêm alcançando níveis que ultrapassam os limites da ignorância lícita. O politicamente correto é incorreto quando despoja nossa consciência social da poesia que é própria da vida e da inteligência. A poesia das mediações e da totalidade que desvenda os mistérios da aparência para nos revelar a essência do que somos e não sabemos.
Sem a perspectiva do todo, a obra de Lobato se torna incompreensível, o que abre caminho para o descabido preconceito de leitor apressado e desatencioso. Mais descabido em relação ao leitor que, além do mais, é mediador de interpretação, seja como crítico literário, seja como educador, seja como editor.
A obra de Lobato é impregnada de minúcias desconstrutivas e explicativas. Nela estão contidos, plenamente, os mistérios do Brasil, do nosso ser não sendo. Lobato, com sua obra, quer iluminar nosso caminho, remover a catarata de nosso atraso, mostrar o que somos mesmo não gostando de sê-lo. Ele quer libertar-nos de nossos fingimentos.
Tanto a obra artística quanto a obra literária de Monteiro Lobato são espelhos para que nos vejamos naquilo que não temos conseguido ver, as heranças da escravidão que empobrecem o nosso espírito.
O caipira lobatiano é um ser residual da peculiar escravidão indígena. Os que acusam Lobato de racismo, na definição de personagens e nos diálogos de seus textos, com base no mesmo critério tendencioso, poderiam ver no Jeca Tatu outra manifestação preconceituosa contra o indígena e o caipira que dele descende. Mas disso ninguém reclama. O mesmo se pode dizer do Saci-Pererê. Originalmente, um ente mítico indígena que, no século XVIII, com a disseminação da escravidão negra em São Paulo, torna-se negro na narrativa popular. Um poderoso documento de que a nossa negritude é a do enegrecimento cultural, nossa bela busca de identidade.
José de Souza Martins
Governo de foro íntimo
“Seus filhos e seus bons amigos constituem para ele a totalidade da espécie humana”
Alexis de TocquevilleO governo federal foi tomado de assalto pela “tirania da intimidade”. Gustavo Bebianno foi acusado de mentiroso pelo filho do presidente, que divulgou mensagem de voz do pai. Dias depois, outro vazamento mostrou que mentiroso era o filho. O apelo emotivo do ex-ministro de nada adiantou: “Capitão, eu só prego a paz. Por que esse ataque, por que esse ódio, o que eu fiz de errado, meu Deus? Só estive do seu lado. Você vai permitir que eu seja agredido dessa forma?”. O porta-voz da Presidência explicou que “o motivo da exoneração é de foro íntimo de nosso presidente”. Já o presidente atribuiu a demissão a “incompreensões e questões mal-entendidas de parte a parte, não sendo adequados prejulgamentos de qualquer natureza”. Bebianno chamou essas “incompreensões” de “macumba psicológica”. A “filhocracia” manda nomear e manda demitir. O pai obedece e pede paciência com os “garotos”.
O ministro Sergio Moro também tem apreço por sua intimidade. Autor do “pacote anticrime” e do decreto de rearmamento da sociedade brasileira, reuniu-se com o grande beneficiário dessas medidas, a empresa Taurus, maior fabricante brasileira de armas de fogo (e financiadora de campanhas). Diante do pedido de informações sobre a reunião, baseado na Lei de Acesso à Informação (LAI), Moro recitou seu bacharelês: “O direito à privacidade, no sentido estrito, conduz à pretensão do indivíduo de não ser foco de observação de terceiros, de não ter seus assuntos, suas informações pessoais e características expostas a terceiros ou ao público em geral”. Você e eu temos o direito de manter segredo sobre nossos encontros privados. Um ministro de Estado, no exercício de sua função pública, não.
Foi a mesma lógica do decreto presidencial que desidratou, semanas atrás, a Lei de Acesso à Informação, ao permitir que funcionários abaixo da cúpula governamental classifiquem informações como secretas e ultrassecretas. Facilitou, assim, que documentos fiquem blindados contra o público por até 25 anos. Jornalistas e pesquisadores teriam de esperar, portanto, pelo menos até 2044 para estudar algumas decisões “sensíveis” desse governo. A LAI, potente arma contra a corrupção e os malfeitos administrativos, afeta o projeto da intimidade. Dias atrás, a Câmara dos Deputados aprovou decreto legislativo que revoga a medida. Esperemos o Senado.
Um governo de foro íntimo rejeita valores republicanos: despreza a impessoalidade, boicota a esfera pública e confunde deliberadamente o interesse público com o privado (ou familiar).
Também desconhece a liturgia do cargo e os ônus éticos e simbólicos de desempenhar uma função pública representativa. Desqualificar a imprensa sem contestar a reportagem, priorizar o ritmo frenético e agressivo das redes sociais (e delegar ao filho a administração da conta) ou tirar foto no Palácio da Alvorada de chinelo e camisa falsificada de time de futebol (sob incrédulo protesto do Fórum Nacional de Combate à Pirataria), como se estivesse num churrasco em seu jardim carioca, são claros sinais da patologia. Seu modus operandi mistura patrimonialismo, personalismo e autoritarismo. Não é só indisposição para a impessoalidade, mola mestra do Direito Público e Constitucional, mas incapacidade de entender como ela se pratica.
Em seu livro "O declínio do homem público" (1976), o sociólogo Richard Sennett tentou mostrar como aspectos da vida política e social contemporânea negam o valor da vida impessoal, uma conquista civilizatória moderna. Para ele, a “tirania da intimidade”, manifestada de modos mais ou menos sutis, subordina o “senso de comunidade” ao “senso de família”. O filósofo político francês Alexis de Tocqueville, ao descrever a autoridade do déspota, antecipava risco parecido no século XIX: “Seria como a autoridade de um pai que quer preparar os homens para a masculinidade, mas procura, ao contrário, mantê-los em perpétua infância: fica satisfeito que o povo se regozije, desde que não pense em nada além de regozijo”. Um governo de foro íntimo oferece extraordinária atualização dessa ameaça.Conrado Hübner Mendes
A degradação da politica
Os sinais não são animadores. A base do governo, em processo de formação, mostra que, sem participar da administração federal, não vai fincar pé em sua defesa. O dilema se impõe: como pode o país exibir melhorias nos níveis gerais de vida da população – taxas de escolaridade, distribuição de renda, Índice de Desenvolvimento Humano – quando a qualidade política deixa a desejar?
Norberto Bobbio lembra que o valor central da democracia representativa é o papel do “quem”: o parlamentar deve ser fiduciário e não um delegado; e, quanto ao “que” (fazer), o fiduciário deve representar demandas sociais e não interesses particulares. O titular de um mandato vincula-se ao eleitor, ao qual deve obedecer.
Entre nós, os ajuntamentos que consideram o mandato seu feudo se multiplicam. São esses que têm como foco cargos e espaços no governo, por entenderem o mandato como domínio pessoal. Grande parte desses tipos integra o que se chama de “baixo clero”, geralmente localizado nos fundões do plenário. Essa legião seria mais sensível a barganhas. Não se pretende dizer que os cardeais do “alto clero” são puros. Dinarte Mariz, estrela do Senado nos tempos de chumbo, costumava dizer: “todo homem tem seu preço e eu sei o preço de cada um”. O velho senador potiguar se referia ao indefectível traço do caráter político: o jogo de recompensas.
O rebaixamento do nível parlamentar se reforça com a substituição do paradigma clássico da democracia representativa – a promoção da cidadania – pelo parâmetro de uma “democracia funcional”, formada para abrigar interesses de grupos especializados da sociedade pós-industrial. Cientistas políticos, como o francês Maurice Duverger, chegam a definir a democracia de nosso tempo como “tecnodemocracia”, amparada em organizações complexas e nos conjuntos que integram um novo triângulo do poder, formado pelo sistema político, pela alta administração e pelos círculos de negócios (a Operação Lava Jato fisgou representantes dessa tríade).
Em democracias clássicas, os impactos desse modelo, apesar de fortes, não chegam a eliminar a missão dos partidos políticos. Mas em democracias incipientes, como a nossa, os efeitos se fazem sentir. A perda de força dos partidos abre espaço para a formação de bancadas temáticas, como as de grupos econômicos (ruralistas, por exemplo); profissionais liberais (médicos, advogados, etc); sindicalistas; religiosas; em defesa do armamento; funcionários públicos etc. Seu traço de união é o corporativismo. São os arquipélagos do oceano parlamentar. Tentam substituir o todo pelas partes.
Sob essa formação, o processamento das demandas sociais passa a enfrentar barreiras. A fragmentação de interesses obscurece a visão de prioridades. Não se consegue definir um norte. Basta ver a pluralidade de pontos de vista sobre as reformas, a começar pela Previdência. O parlamentar que chega ao Congresso vai privilegiar o conjunto ao qual pertence. Delegado de um grupo, o congressista vê-se livre de compromissos mais amplos. Desse modo, o voto da base da pirâmide acaba sendo canalizado para atores mais sensíveis ao balcão da política.
Sem doutrina, os atores personalizam o poder, transformando a política em espetáculo. A degradação ganha volume, mais ainda ao se deparar com o poder imperial do Executivo, useiro e vezeiro na arte de praticar um presidencialismo de coalizão com a solda irresistível de cargos e posições na estrutura administrativa. O cambalacho se expande. Não é de surpreender que perfis canhestros, afeitos ao Estado-espetáculo, passem a dominar os espaços do Parlamento. Eis o preço de uma democracia claudicante.
A esperança é a de que o Brasil pós-Lava Jato encontre o fio da racionalidade e a representação política, estonteada pelos abalos que macularam a instituição parlamentar, inicie nova jornada, usando sabão e esponja para limpar a lama que inundou os dutos das casas congressuais.
Gaudêncio Torquato
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