terça-feira, 27 de agosto de 2019

As Mil e Uma Noites

A tradução mais fiel e sofisticada de As Mil e Uma Noites é do explorador inglês Sir Richard Francis Burton, em 16 volumes, lançada entre 1885 e 1888, com suas notas sobre as culturas persa e árabe e relatos de hábitos sexuais, inclusive de homossexualismo masculino e feminino. O clássico da literatura fantástica é uma coletânea de histórias reunidas durante séculos, inicialmente surgidas na Índia, por volta do século 3. Seus gênios, metamorfoses de animais e semideuses lembram o imaginário hinduísta. Essas histórias viajaram pela Pérsia, contadas pelos mercadores, sendo reunidas, a primeira vez, numa coletânea anônima intitulada Hezar Afsaneh (“Os Mil Contos”), na qual já apareciam o sultão Chahriar e sua esposa infiel, Sheherazade.

Traduzidos para o árabe, por volta do século 8, ganhou carga heroica e forte influência islâmica, inclusive no título, por causa da superstição de que números redondos dão azar. Por isso, passou a se chamar As Mil e Uma Noites. Há três versões árabes, uma síria, uma egípcia antiga e outra egípcia tardia. Por volta de 1700, as histórias chegaram ao Ocidente, traduzidas pelo francês Antoine Galland, de um manuscrito do ramo sírio do século 13, no qual incluiu as histórias de Ali babá e os Quarenta Ladrões, Aladim e As Viagens de Simbá, o marujo.


Burton (1821-1890) é um capítulo à parte. Antropólogo, espião, espadachim e poeta, foi cônsul britânico em Santos e escreveu três livros sobre o Brasil. Ex-aluno de Oxford, como capitão da Companhia das Índias britânica explorou a Índia, o Oriente Médio e a África. Em 1856, disfarçado de médico afegão, peregrinou a Meca e visitou a Caaba – santuário supremo dos muçulmanos. Logo depois, viajou à cidade santa de Harar, na Etiópia, de onde nenhum homem branco jamais saíra com vida. Em 1858, realizou o feito pelo qual é mais lembrado: descobriu o Lago Tanganica. A jornada, em companhia do explorador John Speke, que depois se tornou um desafeto, foi retratada em 1990 no filme As Montanhas da Lua. Speke descobriu o Lago Vitória, mas erroneamente concluiu que seria a nascente do Nilo, contra a opinião de Burton.

Burton falava 26 línguas e também traduziu os clássicos da literatura erótica Kama Sutra e o Jardim Perfumado, além do épico renascentista Os Lusíadas, de Camões. Suas traduções e relatos antropológicos escandalizaram a sociedade vitoriana da época, a ponto de sua mulher queimar seus manuscritos, mas isso não impediu a rainha Vitória de lhe conceder o título de Sir, em 1896, por serviços prestados à Inglaterra no “grande jogo” no Oriente, a disputa por áreas de influência com outras potências europeias, sobretudo a França e a Rússia. Quatro anos depois, Burton morreu em Trieste, na Itália, passando à história como aventureiro erudito e temerário. Sofria de depressão, era viciado em ópio, haxixe e bebidas alcoólicas e, ao morrer, revelou cicatrizes nas costas que levantaram suspeitas de que havia se convertido ao sufismo, uma linha mística do islamismo.

Numa das passagens de As Mil e Uma Noites, o sultão diz para Sheherazade: “Aquele que não sabe adaptar-se às realidades do mundo sucumbe infalivelmente aos perigos que não soube evitar. Aquele que não prevê a consequência dos seus atos não pode conservar os favores do século”. Parece sob encomenda para o presidente Jair Bolsonaro, que hoje, Dia do Soldado, completa 237 dias no poder, em meio a uma crise internacional sem precedentes, provocada por ele mesmo, por causa de um brutal erro de conceito na sua estratégia de governo em relação a um dos quatro principais temas da atualidade: a sustentabilidade. Os outros são a democracia , o crescimento econômico e as desigualdades.

Nada como um dia atrás do outro. A atmosfera não tem fronteiras, a questão ambiental deixou de ser um assunto nacional após a Conferência do Clima, da qual o Brasil foi um dos principais protagonistas. Quando se erra no conceito, quanto maior o ímpeto na estratégia, maior o desastre. A narrativa de Bolsonaro potencializou a crise internacional, que estava escrita nas estrelas por causa do desmantelamento da política ambiental e dos órgãos de controle, fiscalização e combate ao desmatamento. Foi uma sucessão de erros cometidos quase que diariamente, além de uma subestimação das implicações internacionais que o assunto tem, por uma visão ideologizada das relações diplomáticas e uma postura provinciana e chauvinista.

Bolsonaro perdeu a batalha da comunicação no terreno em que se achava imbatível, as redes sociais, e o Brasil enfrenta inédito isolamento internacional, cujo preço pode ser a adoção de sanções pelos países da União Europeia contra as exportações brasileiras de carne e de soja, por causa do avanço da fronteira agrícola na Amazônia. O governo corre atrás do próprio rabo, inclusive quando atribui ao aquecimento global a ocorrência das queimadas, comparando-as aos incêndios que ocorrem nos Estados Unidos e na Europa pela mesma razão. Trata-se, porém, de um argumento a mais para preservar a Amazônia. Bolsonaro ainda tem mais de mil e uma noites para repensar suas políticas e recuperar o prejuízo, pois ainda lhe restam 1224 dias de mandato.

Será que o presidente busca sua ruína?

Perguntado sobre o que faria se ocorressem tumultos ao iniciara abertura democrática, o presidente Figueiredo (1979-1985) respondeu: “Eu chamo o Pires”. O general Walter Pires, então ministro do Exército, não era, naturalmente, das pessoas mais suaves para enfrentar tensões represadas em anos de ditadura militar. Na ocasião, a aberração histórica iria finalmente sair da nossa vida para entrar na triste memória.

Usada como falso e arriscado remédio contra a impotência, a prepotência é um dispositivo que ressurge aqui e ali. O curioso é que, mais de 30 anos depois, cansados de corrupção e fracassos de governos petistas, eleitores brasileiros escolheram chamar o Bolsonaro. Ele não figurava entre os mais educados políticos que poderiam ter sido eleitos para resgatara dignidade e o crescimento econômico. O mais inquietante, porém, é que diante das naturais adversidades na tarefa de governar, o próprio Bolsonaro tenha chamado o Bolsonaro profundo para lidar com seus desafios.


Alguns dizem que ele é assim mesmo. Então, a maioria dos brasileiros (que não o elegeu) não teria outra alternativa anão ser tentar civiliza-lo, aplicando os limites do bom sensoe da democracia. Algo que até estadistas mundiais estão tendo que fazê-lo! Missão impossível? Outros comentam que sua estupide zé estratégia para manter acesa a chama vingativa de seus fiéis e fanáticos eleitores.

Esta última hipótese depõe contra si própria: Bolsonaro é chefe de uma facção direitista, ou é o presidente do Brasil? Se ele não percebera distinção atempo, estará—entre outros efeitos — encenando um dos dramas freudianos — aquele que analisa situações nas quais pessoas, ao obterem êxito, arrumam um jeito de zerar o ganho e se arruinar. Por não suportar um obscuro e edípico sentimento de culpa.

As pesquisas de opinião que saíram ontem comprovam atese: ele caminha para a autodestruição. Bolsonaro pareces e divertir lançando farpas ator toe à direita( evocando, por alto, a cena de Charlie Chaplin interpretando Hitler a brincar com o globo terrestre). Ele sequer poupa estadistas internacionais (com exceção do alter-bufão Trump). Seu fracasso vai sendo produzido deforma exuberante. O país, e o mundo, que excedem em muito o número de fanáticos seguidores, unem-se contra ele. E, nesses tempos de extremismo e alta polarização, o antídoto não está no centro—mas no seu arqui-inimigo PT. Viciados nesse estilo de resolução de problema, os brasileiros talvez respondam no caso de uma ruína bolsonarista: “Eu chamo o Lula”. Ou, no que dá no mesmo, o Haddad.

O fantasma da recessão ronda novamente o mundo. Isso não ajudará o retorno do crescimento e a diminuição do desemprego no Brasil. O vento mudou: não é hora —nunca foi! — de sarcasmo irresponsável ou de proselitismo inconsequente. John Waldron, presidente e chefe de operações do Goldman Sachs, disse que nunca viu em sua carreira, com essa força, o mercado negociar olhando políticas, governo, lideranças e geopolítica. Líderes populistas não convencionais impactam e assustam. A opinião é compartilhada por Mohamed El-Erian, um dos maiores gestores mundiais de ativos: “A política confusa influi nos resultados econômicos e de mercado”.

Porque as contas e variáveis que são olhadas na atualidade não se resumem aos números, mas às reservas morais, sociais, políticas e ambientais deu manação. Do jeito que atua, o presidente joga brasileiros uns contra os outros— e estadistas e investidores contra nós. Não creio que, além de seu séquito, muita gente vá chorar por sua ruína, caso ele encene o drama inconsciente, de produzir seu próprio fracasso. Ou por sentir que não possui recursos para exercer com dignidade o cargo que ocupa.

O fenômeno já faz preço na Bolsa. Se a crise persistir— e Bolsonaro precisa estar consciente de sua responsabilidade nisso — milhões de pessoas, os familiares dos desempregados, estarão perpetuando o sofrimento, enquanto ele diverte sua horda de fanfarrões falando a primeira besteira que vem à sua cabeça.

Gente fora do mapa

Awá-Guajá (Sebastião Salgado)

Bolsonaro faz mal ao Brasil

Faz mal quando enfraquece deliberadamente os mecanismos de controle sobre o meio ambiente, suspende a demarcação de terras indígenas e ameaça liberar a mineração em áreas protegidas só para ser coerente com o que sempre defendeu e agradar aos seus devotos.

Faz mal e envergonha o país quando por suas posições atrasadas sobre a natureza é descrito pelo The New York Time, o jornal mais importante do mundo, como “o menor e o mais insignificante chefe de Estado”. Jornais da Europa preferiram chamá-lo de "câncer".

Faz mal quando alinha sem condições os interesses nacionais aos interesses americanos, e rasteja para obter favores do presidente Donald Trump entre eles, o de aprovar a indicação do seu filho para embaixador. Sequer se constrange em imitá-lo, embora sem sucesso.



Faz mal quando governa de preferência para os ricos, como se este não fosse um dos países de maior desigualdade e da mais perversa concentração de renda do planeta, onde mais de um terço da população simplesmente carece de qualquer tipo de amparo social.

Faz mal quando discrimina os governadores do Nordeste, a região que resiste aos seus encantos, chamando-os de “paraíbas” e ordenando a ministros para que não atendam às suas demandas, como se tivesse sido eleito só para servir bem e privilegiar a maioria que o elegeu.

Faz mal quando governa sob o signo do enfrentamento permanente com adversários e eventuais aliados, destratando-os sempre que enxerga nisso a chance de alimentar a fama de cavaleiro corajoso e solitário que segue em frente por cima de pau e de pedra.

Faz mal quando só recua em sua escalada retórica e agressiva ao dar-se em conta de que já foi longe demais e já produziu estragos em excesso. Mesmo assim está sempre pronto a retomá-la porque é da sua índole ser assim, e não parece disposto a mudar.

Faz mal quando põe a família – a sua, naturalmente – acima de tudo, inclusive do país, e só abaixo de Deus, aparelhando o Estado para beneficiá-la e tomando decisões para beneficiá-la em escandalosa afronta ao que determinam as leis.

Faz mal quando para defender um dos seus filhos, Flávio, o senador investigado por suspeita de corrupção e de desvio de dinheiro público, apoia uma decisão judicial equivocada que bloqueia o avanço do combate à corrupção com o qual na verdade não tem nenhum compromisso.

Faz mal quando por isso interfere na autonomia de organismos como a Receita Federal, Polícia Federal e outros, porque os considera antes de tudo organismos do governo e não do Estado, e, portanto, sujeitos à sua vontade e à vontade da sua família a quem devem proteger.

Faz mal quando mente à farta, espalha notícias falsas, ataca repetidamente a imprensa e tenta dificultar sua jornada com a esperança de domesticá-la em breve. Porque a liberdade de expressão para ele só é suportável se avalizar o que ele pensa e o que ele faz.

Faz mal quando agride fatos, como no caso dos números sobre a destruição da Amazônia, por exemplo, e se empenha em reduzi-los a uma mera questão de opinião. Como se fatos, com base em evidências e provas científicas, não fossem fatos porque ele não os reconhece.

Por fim, faz mal quando testa todos os limites da democracia com a intenção de alargar ao máximo possível os seus próprios poderes, a ponto de o presidente da Câmara dizer como disse na última sexta-feira que o país vive em um Estado “quase totalitário”.

É por ter feito tanto mal em tão pouco tempo que a avaliação do seu governo, e a dele pessoalmente, chama a atenção. Nunca na história deste país desde a redemocratização em 1985, um presidente da República desvalorizou-se com tamanha rapidez. Merece.

Onde há fumaça, há fogo, e ele arde e queima

Na semana em que o dia virou noite, uma feia fumaça cobriu os céus de Brasília, atingindo as principais instituições de fiscalização e controle da administração pública. Da Receita Federal ao Coaf, do Cade à Polícia Federal, o que se viu foram órgãos agonizando em queimadas patrocinadas pelo Planalto, algumas delas com rajadas de apoio do STF e do Congresso.

Nunca é demais lembrar que o governo Bolsonaro herdou uma estrutura de órgãos de fiscalização e controle que vieram se afirmando paulatinamente nas últimas décadas e cuja atuação no combate à corrupção produziu o cenário favorável à ascensão de um candidato com discurso antissistema. Aos oito meses do governo símbolo da negação da velha política, essa estrutura se vê ameaçada tal como animais numa floresta em chamas.

Sobre o Cade pesa a suspeita de que cadeiras vagas foram politicamente negociadas pelo governo com o Senado, de olho na votação da reforma da Previdência e na sabatina do filho-embaixador. Na Receita Federal, o número dois na hierarquia foi destituído do cargo a pedido de Bolsonaro, na esteira de ações do STF e do TCU que emparedaram auditores que estavam investigando altas autoridades. Criticado pela interferência, o presidente disse que fora eleito para “interferir mesmo” e que, “se é para ser um banana, um poste dentro da Presidência, estou fora, pô”. É curioso que tenha se utilizado de símbolos fálicos para afastar a hipótese de impotência, mas desta feita agiu para obstruir a atuação de fiscais que antes aplaudia.

No caso da Polícia Federal, um dos órgãos de maior prestígio nesta década de combate à corrupção, o presidente ameaçou a autonomia da instituição ao intervir diretamente na superintendência do Rio de Janeiro. Criticado pela atitude que seus antecessores não ousaram adotar, Bolsonaro afirmou que “se eu não posso trocar o superintendente, eu vou trocar o diretor-geral”, dobrando a aposta e passando por cima de Sergio Moro, ministro a quem a PF está teoricamente subordinada. Quanto ao Coaf, a novela que se arrastava desde o início do novo governo se encerrou com a transferência do órgão, que já esteve na Fazenda e na Justiça, para o Banco Central. A caminho do novo endereço, Roberto Leonel, seu dirigente e outro homem de confiança de Sergio Moro, caiu do caminhão da mudança. Beneficiado por uma sequência de decisões que atingiram o Coaf, o filho-investigado do presidente agradece, assim como Queiroz (onde quer que ele esteja).


Para entender essas queimadas, é necessário considerar que, ao longo das últimas décadas, o Brasil viu florescer um importante conjunto de instituições de fiscalização e controle, mas isso não se deu mediante um plano geral prévio e articulado. Antes, tem sido resultado de germinação espontânea, que começa no interior desses próprios órgãos, cujas burocracias buscam afirmação institucional e crescentes graus de autonomia e poder. Foi o que aconteceu com o Ministério Público e, em parte, com a Polícia Federal, que hoje servem de exemplos a outros órgãos que também pretendem alcançar a copa das árvores. Segundo o mantra, querem ser considerados como órgãos de Estado, e não de governo, isto é, permanentes e autônomos para sobreviver às intempéries provocadas pela alternância de partidos no poder.

Paradoxalmente, tem sido em situações críticas como a atual que tais órgãos ganham força. Delegados da PF voltaram a reivindicar a aprovação de emendas constitucionais capazes de assegurar maior independência à corporação. Quando propôs a transferência do Coaf para o BC, o ministro Paulo Guedes afirmou que “toda vez que tem uma crise institucional, não é só uma cabeça rolar. Uma cabeça rolar pode até acontecer, desde que haja avanço institucional”. O ministro descreve bem o fenômeno que tem marcado a evolução das instituições nesse campo e, provavelmente, acredita que a nova Unidade de Inteligência Financeira (UIF) representa um avanço, apesar de cabeças terem sido queimadas em seu nome.

Todavia, o tempo de Bolsonaro não se assemelha a qualquer outro, e essa lei geral do desenvolvimento institucional brasileiro, segundo a qual órgãos de controle crescem na crise, pode caducar. Até o Congresso Nacional teve o seu dia de fogo, ao aprovar a Lei de Abuso de Autoridade, algo esperado há muitos anos, mas que somente agora prosperou com as raízes expostas da Lava Jato. Quem percebeu que a queimada pode estar correndo morro abaixo foi o presidente da Associação Nacional dos Auditores Fiscais (Unafisco). Segundo Mauro Silva, sua categoria é contrária à proposta que tem sido ventilada de transformar a Receita Federal em autarquia — portanto mais independente —, pois veem na iniciativa uma espécie de “cavalo de Troia”, um presente bonito por fora, mas que seria preenchido por nomes estranhos à carreira e nomeados politicamente, por dentro. Um golpe contra a instituição, em resumo.

Desmatamento seguido de fogo, é isto que devem temer as instituições de fiscalização e controle no período atual.

Bolsonaro e a maldição da meia sola

As piores doenças crônicas do Brasil têm o peronismo no seu DNA. A socialização da teta insuficiente, cuidadosamente dimensionada para que não cesse nunca a dependência do agraciado, é a versão benigna da doença universal do populismo. A cêpa peronista é a maligna. Rói darwinianamente, de geração em geração, a moral das nações onde se instala.

A corrupção das elites pelo acesso ao privilégio através da riqueza, mesmo a conquistada por mérito, é um processo natural que, em última instância, promove a mobilidade social e a renovação das sociedades. Mas o peronismo, que Getúlio Vargas instilou nas veias do Brasil, corrompe a sociedade a partir da base. A República Sindicalista (“Trabalhista” na versão macunaímica), criminaliza o ato de empregar e estatiza a progressão na escala social, o que é veneno bastante para deixar qualquer economia paraplégica. Mas em paralelo instala, onipresente nos céus da nação, a mensagem deletéria que tem o potencial de salgar para todo o sempre a terra arrasada: “Traia, minta, falseie que o governo garante”.

Graças à prosperidade da indústria nacional de achaque aos empregadores o Brasil tem hoje mais “escolas de direito” e produz mais “advogados” de botequim por ano que todo o resto do mundo somado. Nelas não é preciso ler um livro de direito sequer para, ao fim do percurso, ganhar a prerrogativa de cabalar trabalhadores (em dificuldade ou não é fator que se vai tornando irrelevante na medida em que o caráter aviltado passa a ser padrão) para dividir com eles um dinheiro tão fácil quanto certo de ser arrancado às vítimas por tribunais que não são de justiça, são “de classe”.

O resultado é a geleia argentina que só se diferencia da do Brasil pela longevidade e por vir com letra de tango e não de samba.


A doença, como todas as que matam seus hospedeiros, só se esgota no seu próprio paroxismo. Mortos todos os empregos, passadas quatro gerações aqui, cinco lá, com o país tentando desesperadamente livrar-se da herança maldita, não é na massa dos desempregados e subempregados vivendo sob a lei do cão no favelão nacional que se instala a resistência. É nessa horda de caçadores de cúmplices para achaques e nos “sindicatos” e “partidos políticos” estatizados que exploram o monopólio do comércio de privilégios para fazer corporações selecionadas por sua força eleitoral saltar sem fazer força para os diferentes degraus da classe média não meritocrática, ou para guindar seus patronos à nobreza da privilegiatura que vão instalando em metástese em todos os orgão vitais de governança do país.

A fase terminal dá-se com a infestação da imprensa, o aparelho imunológico das sociedades democráticas. Isolados pela língua que deu eficiência redobrada ao patrulhamento ideológico, já vamos para a 3a geração dos produtos do modelo gramsciano de censura imposta pela ameaça de assassinato midiático, exílio social e asfixia econômica dos “hereges”. A imprensa é a voz da classe média e a classe média que sobra é, cada dia mais, a classe média de teta. A meritocrática está ameaçada de extinção pela progressiva supressão do meio ambiente capaz de sustenta-la.

Na semana retrasada festejou-se como “uma vitória” a “confirmação” da MP da Liberdade Econômica pelo Congresso. A lista dos itens desbastados dela – todos os que apontavam na direção da meritocracia e da redução do espaço para o achaque ao trabalho e ao empreendedorismo, assim como ocorreu com os dispositivos revolucionários (desconstitucionalização dos privilégios e regime de contribuição) da reforma da previdência – testemunham a precisão e o zelo religioso com que a guarda pretoriana do status quo afasta de nós qualquer chance de alforria real. Sem maiores aprofundamentos, no entanto, a imprensa chama candidamente de “polêmicos” os itens amputados, num quase endosso à sua evicção, e a MP que sobra segue festejada como o que já não é.

É impossível definir exatamente quanto é por covardia, quanto por “superação orgânica do senso comum” e “absorção do discurso ideológico hegemônico” (Gramsci) e quanto é pela ignorância consequente do sucesso da censura às alternativas possíveis mas o fato é que, na imprensa ou fora dela, ninguém mais no Brasil, nem mesmo seus “inimigos declarados”, diz sobre “O Sistema” a verdade inteira ou propõe qualquer coisa para substituí-lo. 230 anos depois da Bastilha e com o país literalmente se dissolvendo ninguém levanta-se para exigir “Privilégio Zero Já” ou plantar no horizonte, ainda que só como bandeira, a meta de devolver do funcionalismo para a função, vá lá, que seja a terça parte dos 45% do PIB que hoje os palácios surrupiam ao favelão nacional sem dar nada em troca.

Num mundo que demanda Margareth Thatcher’s tudo que o filtro de seleção negativa permite chegar “lá” são Macri’s e Macron’s cuja derrota configura-se antes da luta começar pela timidez entre covarde e cúmplice das “reformas” que encomendam.

A conspiração gramsciana, que vai longe em toda a América inclusive a do Norte, é uma aposta na covardia humana, uma das mais formidáveis forças da natureza. Só a do instinto de sobrevivência é maior que ela. O que estamos começando a assistir no Brasil e seu entorno é o duelo final entre as duas. E começou mal: o México derrapa na direção da volta ao populismo, a Argentina parece ter fixado o rumo da Venezuela, o resto da América Latina não bolivariana igualmente balança. E o que faz todos eles voltarem recorrentemente à estaca zero é a maldição da meia-sola…

Não há como darmo-nos o luxo de hesitações porque a alternativa é o compromisso juramentado com o desastre. Mas a pergunta que todos quantos têm pena do Brasil têm a obrigação de se fazer é até onde poderá chegar este Jair Bolsonaro “toffolizado” que, como todos eles, “elegeu-se vendendo mudanças radicais mas age como se não as quizesse” se em vez de babar ôvo incondicional e acriticamente para ele, não passarem a empurra-lo com toda a força que a gravidade extrema da situação exige na direção daquilo que ele dizia ser.

Brasil tá na promoção


O custo Bolsonaro

Alguns políticos se apaixonam pela própria voz, sem se importar com o que dizem. Jair Bolsonaro foi além: no mimetismo caricato de Donald Trump encontrou a moldura para a retórica e as atitudes de confronto, como se estivesse numa batalha eleitoral permanente.

Como o presidente insiste em manter o inconsciente muito perto dos lábios, cria riscos desnecessários para o país. Isso porque em política palavras e atos têm consequências — geralmente, no bolso dos governados.


Desde a semana passada, empresários vislumbram uma novidade no agronegócio: o custo Bolsonaro. É o preço previsível, para muitos inevitável, do incêndio político amazônico lavrado pelo Capitão Motosserra, com o auxílio dos ministros do Meio Ambiente e das Relações Exteriores.

A retórica eleitoral inflamada ecoando uma política arcaica, obscurantista, hipnotizou o governo e o deixou exposto no centro de uma inédita crise ambiental. Sob pressão europeia, Bolsonaro ficou ainda mais dependente da Casa Branca.

Para o setor privado, onde o acesso ao mercado global é jogo de poder e dinheiro, Bolsonaro agora é sinônimo de um custo extraordinário e considerado praticamente inevitável.

Responsáveis por US$ 101 bilhões em exportações, empresas do agronegócio agora convivem com o espectro de boicotes e taxações.

Por ironia, esse setor foi o esteio eleitoral de Bolsonaro, indica o mapas da urnas nas cinco regiões de maior PIB agropecuário: obteve 65,6% dos votos em Uberaba (MG); 69,5% em Cascavel (PR); 67% em Rio Verde (GO); 68% em Dourados (GO) e 75,5% em Sorriso (MT).

Foi, também, o predileto de madeireiros e pecuaristas das áreas onde hoje mais se incendeia a Floresta Amazônica. Alcançou 78% dos votos em Novo Progresso (PA); 69% em Porto Velho (RO) e 63% em Altamira (PA).

O custo Bolsonaro fragiliza o agronegócio, no meio de uma guerra comercial global de consequências imprevisíveis para economias como a brasileira.

Amazônia

Antes da pátria, eras úmida promessa...
semente primordial
árvore mãe
planta continental
arvoredo, floresta, selva palpitante.
Hoje canto tua estatura vertical
o mogno gigantesco, seu colossal diâmetro
canto essa caudalosa geografia
essa multidão de vidas que sustentas
canto o itinerário sazonal da seiva
e essa infinita linfa...
parto de infinitas criaturas.
Canto teu verde planetário
e no teu imenso respirar,
canto o nosso pão de oxigênio...
Canto a ti... Amazônia
bosque inquietante da esperança...
e eis porque denuncio esse machado cruel sobre teu peito...
essa fruta milenar, dia a dia devorada.

Antes da grande nação...já eras tu...
a nação primogênita
filha dos filhos da mata.
A infância da pátria foste tu,
sílaba aborígine, idioma tupi
cerâmica, canoa e tacape
ritual, dança e canção.
Foste tu a raiz, sangue ameríndio
o parto da nacionalidade.

Hoje canto os povos da floresta
e o desencanto dessa memória esquecida.
Falo de sobreviventes
de tribos desgarradas
de aldeias tristes
de sonhos desmatados
de segredos e tradições pirateadas
das águas lavadas na bateia do mercúrio.

Amazônia....Amazônia...
quem deterá o teu martírio
uma vida tão diversa num adverso viver...
Falo dos teus hectares de sangue
da lâmina cruel, da pira ardente
dessa cartilha de serras, rifles e archotes
dessa morte plural
na diversidade de aves e primatas
roedores, felinos e serpentes.
Falo de uma terra de cepos
de raízes degoladas
de caules retalhados
de castanheiras preservadas... a morrer de solidão.
Falo da linha negra do fogo
e desse cemitério de troncos defumados.

Falo da floresta sitiada
por uma legião de máquinas assassinas
falo de estradas e picadas clandestinas
de súbitas clareiras
desse assalto interminável... lento e invisível.
Falo de grileiros, posseiros, garimpeiros, bandoleiros
e de terras demarcadas sob a mira das pistolas.
Falo de dragas e crateras
das águas manchadas e dos rios estropiados.
Falo da vida degradada pelas pastagens da ambição.
Manoel de Andrade, "Cantares"

'Salles não entende nada de Amazônia'

O ministro Ricardo Salles não entende nada de Amazônia. Para ser ministro [do Meio Ambiente], tem que conhecer a Amazônia.

É hora de botar a bola no chão e recuperar o prestígio diplomático do Brasil através de ações muito claras. Temos que trabalhar apoiados na comunidade internacional, e não criar adversários à toa para o país. A diplomacia brasileira não pode continuar sofrendo desgastes. O Brasil tem uma grande chance de se reconciliar com a comunidade internacional
Arthur Virgílio Neto (PSDB), prefeito de Manaus

Isolamento esplêndido

Irrelevância ou ridículo — eis a questão. O Brasil de Jair Bolsonaro oscila entre esses polos, como fruto de políticas externa e ambiental que, aos olhos do mundo, nos rebaixam à condição de república bananeira.

Dias atrás, Nicolás Maduro anunciou que mantém negociações diretas com os EUA. Donald Trump confirmou a informação: “Estamos conversando em nível muito alto”. Ernesto Araújo, nosso chanceler de fachada, e Eduardo Bolsonaro, chanceler de fato, nada disseram — e, piedosamente, nada lhes foi perguntado. Vão longe os tempos em que a dupla dinâmica definiu como prioridade nacional externa a remoção do ditador chavista por meio de uma ação militar americana deflagrada a partir de território brasileiro.

Onde está o Ernesto? O figurante sumiu, transferindo a condução de nossas relações com a Argentina ao Bolsonaro pai. E o 00 inovou radicalmente, rompendo as relações diplomáticas com um governo que ainda nem existe. No ato inicial, proclamou que o provável triunfo eleitoral de Alberto Fernández e Cristina Kirchner converterá o Rio Grande do Sul em “uma nova Roraima”. No seguinte, qualificou os líderes da favorita chapa de oposição como “bandidos comunistas”. Qual é a diferença substancial entre as retóricas de Bolsonaro e de Maduro?

Os bárbaros que nos governam são governados por suas próprias redes (anti) sociais. Adianta dizer-lhes que, ao contrário da Venezuela, existem eleições livres na Argentina? Que a vontade popular merece algum respeito? Ou, ainda, que Fernández, o candidato presidencial, um peronista moderado, é antigo desafeto de Kirchner, a candidata a vice? Ou, finalmente, que a Argentina é nossa circunstância geográfica e geopolítica, o vizinho incontornável na estação de trânsito da bacia platina, como constatamos já nos idos do Império?

A arrogância beija a testa nua do ridículo. Paulo Guedes ofereceu-nos uma aula de lógica cartesiana ao explicar que o Brasil crescerá mesmo sob uma hipotética recessão mundial porque, nos últimos anos, retrocedeu em pleno ciclo de expansão global. Na sequência, em genuflexão imotivada, lustrou as botas presidenciais antecipando que, “caso a Argentina feche”, sairemos do Mercosul. Adianta dizer-lhe que o Mercosul não é a União Europeia e o Brasil não é o Reino Unido? Que o Mercosul é o nome da parceria entre Brasil e Argentina? E que, portanto, atingido pelos desaforos do 00, estará virtualmente morto na hora da eventual vitória de Fernández e Kirchner?

Amazônia em chamas — a notícia, oriunda das imagens do Inpe, fez seu caminho até as manchetes dos veículos de imprensa do mundo, junto com a negativa original de Bolsonaro, que a classificou como fake news, demitiu o mensageiro e deflagrou uma onda de agressões gratuitas contra as nações contribuintes do Fundo Amazônia. Agora, depois das invectivas sobre as florestas alemãs e as baleias norueguesas, o 00 reconheceu a amplitude do incêndio, mas apontou um irresponsável dedo acusador às ONGs.

Pária ambiental. O percurso até essa condição exigiu meros sete meses, pontilhados por exposições de ignorância de Ricardo Salles, o ministro do Desmatamento, sobre as mudanças climáticas, e pela explicitação de suas “soluções capitalistas” de abertura das terras indígenas e unidades de conservação à sanha de garimpeiros, mineradores e madeireiros. “Se plantamos em área desmatada, eles não compram”, explicou didaticamente Blairo Maggi, um capitalista que conhece o tema e não milita em nenhuma ONG, concluindo com um alerta sobre a soberba: “Não tem essa de que o mundo precisa do Brasil. Somos apenas um player – e, pior, substituível.”

Logo mais, o Senado sabatinará o 03. Nesse dia, os senadores deveriam ignorar os atalhos de Randolfe Rodrigues e cia., sempre propensos a substituir o debate político por alguma muleta jurídica. Cumpram seu dever, senadores: esqueçam a ladainha ilusória do nepotismo. Perguntem ao chanceler de fato o que ganha o Brasil com o isolamento esplêndido ao qual nos condena a doutrina ideológica emanada de seu mestre místico, o Bruxo da Virgínia.

As chamas que saem pela boca

Caros brasileiros,

eles se vendem como patriotas. Como religiosos, incorruptíveis e fortes. Estou falando de políticos populistas da extrema direita que não têm papas na língua. Abrem tanto a boca que depois mal conseguem dar conta das frases envenenadas e ignorantes que saíram dela. As consequências são drásticas: vão do soluço político até a morte política por asfixia.

Além do presidente Jair Bolsonaro, o ministro do Interior e vice-primeiro-ministro italiano, Matteo Salvini, é um dos mais recente exemplos desse tipo de comportamento. Ele rompeu com o movimento Movimento Cinco Estrelas (M5S) e causou uma crise de governo na Itália. O objetivo de Salvini são eleições antecipadas. Ele conta com com uma grande aprovação nas urnas e pretende aumentar seu poder.


Mas esse plano pode não dar certo. O presidente italiano, Sergio Mattarella, em vez de convocar novas eleições, determinou que o M5S tentasse formar uma nova base de governo com outros partidos no Parlamento. Um novo pleito também não garantiria a vitória de Salvini, que está perdendo apoio nas pesquisas.

Outro exemplo é a crise de governo recente na Áustria. Devido a um escândalo de corrupção, o então vice-chanceler federal, Heinz-Christian Strache, teve que renunciar em maio. O político do populista e ultradireitista Partido da Liberdade da Áustria (FPÖ) governava junto com os conservadores.

No Reino Unido, o premiê Boris Johnson causa grandes temores apostando num Brexit sem acordo. Com medo do caos político e econômico, muitas empresas já transferiram suas filiais para a Europa continental. E os escoceses ameaçaram realizar um novo referendo sobre sua independência.

Será que Johnson será o último premiê do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte? Se, depois do Brexit, os escoceses decidirem mesmo por sua independência, a grande Grã-Bretanha passaria a ser minúscula.

Britain first, America first, Brasil acima de tudo – me parece que todas essas frases vazias, mais cedo ou mais tarde, tendem a se voltar contra o próprio país ou o próprio governo. Será que o presidente Donald Trump confunde o "America first" com Trump first?

Ainda na sexta-feira passada, em sua conta no Twitter, Trump disse que os Estados Unidos não precisavam da China. Para o espanto de seus próprios aliados, ordenou que as empresas americanas saíssem da China e voltassem a produzir no mercado americano.

Na cúpula do G7 na França, Trump mudou de ideia, dizendo que não tinha a intenção de exigir que empresas americanas saíssem da China. Ficou evidente: se celulares, televisões, roupas e sapatos ficarem bem mais caros devido a taxas ou maiores custos de produção, eleitores desiludidos poderiam atrapalhar a reeleição de Trump em 2020.

De repente, o autoproclamado patriota se revelou antipatriota ao colocar a própria carreira politica acima de tudo. O risco de uma guerra comercial contra a China, que pode desacelerar não somente a economia americana, mas afetar a economia global, é minimizado até passar a ameaçar um possível segundo mandato. Que revelação maquiavélica!

Parece que esse estilo errático e barulhento de governar está chegado à sua fase da autodestruição. As mentiras, o ódio, a ignorância e as ofensas são como as queimadas na Amazônia, que primeiro são estimuladas, depois minimizadas, e por fim se tornam incontroláveis.

O fogo do caos político que os populistas e ultradireitistas acenderam produz tantas chamas e fumaça que eles podem acabar queimando a si mesmos. No Brasil, as chamas que destroem a Amazônia já chegaram ao Congresso, ao Planalto, às ruas e ao agronegócio.

O governo Bolsonaro, que sempre diz que a "Amazônia é nossa", terá que assumir que a "Amazônia queimada é nossa" também. Provavelmente, ele não verá o acordo de livre-comércio entre o Mercosul e a União Europeia entrar em vigor, pois a ratificação desse pacto pode se dissolver nas chamas que consomem a Amazônia, assim como a aprovação de seu governo.

Pensamento do Dia


Um lugar errado no mundo

Se com Lula já era claro que a política interna vivia fortes condicionamentos externos, particularmente no que se refere a uma inserção do País na globalização, marcada por tensões ideológicas, sem considerar o nível de criminalização que em paralelo se praticou, com o governo Bolsonaro, excetuando aparentemente esta última ponderação, a dimensão internacional parece ser inescapável. O episódio da indicação do filho, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), é ilustrativo dessa evidência.

Com Bolsonaro acentua-se a percepção de que nos encontramos imersos naquilo que Giuseppe Vacca define como “conflito econômico mundial”, uma situação sistêmica que caracteriza o mundo desde a superação da guerra fria, posicionando-nos definitivamente no tempo da globalização. Trata-se de um conflito perene e global que envolve múltiplos atores em torno de decisões geopolíticas, econômico-financeiras, do mundo do trabalho e da cultura, questões tecnológicas, ambientais, etc.

Torna-se conveniente, assim, analisar o governo Bolsonaro a partir dessa perspectiva. Seu nacionalismo e seu notável reacionarismo são equivalentes ao que ocorre em diversos países e traduzem o lugar que Bolsonaro vê para o Brasil no contexto global. O que se apresenta nos EUA sob Trump ou na Hungria sob Orbán tem lógica similar aos posicionamentos de Bolsonaro, embora este possa talvez ser considerado o mais despreparado dentre tais líderes, tanto em termos pessoais como de assessoria imediata.


O momento que vivemos não recoloca na agenda mundial o retorno da guerra fria, mesmo porque não há duas potências orientando os vetores do “conflito econômico mundial”. A guerra fria foi um conflito forjado de dentro para fora das duas potências rivais, os Estados Unidos e a União Soviética, e representou um equívoco de ambas, já que nenhuma delas seria capaz de suplantar a outra e estabelecer um domínio efetivo a partir de uma suposta vitória militar sobre a adversária (G. Vacca, La Sfida de Gorbaciov – Guerra e Pace nell’Era Globale, no prelo).

Parece não haver espaço também para outros retornos cultivados no imaginário de muitos que ambicionam combater a extrema direita como um conflito do tipo “comunismo versus fascismo” – por evidente anacronismo, além do erro de avaliação que julgava ser tal disjuntiva a única alternativa que existia na década de 1930 –, ou uma confrontação do tipo “frente popular versus nazi-fascismo”, como sucedeu no século passado.

O bipolarismo morreu com a guerra fria, mas um multilateralismo compartilhado pelos principais países ainda não se consumou. O momento evidencia um avanço da extrema direita, até mesmo com a formação de entidades autônomas de orientação internacional de que participam representantes do governo Bolsonaro. Na outra ponta há forte desorientação da esquerda, com inclinações incompreensíveis para uma política de autoisolamento; a exceção surpreendente fica por conta da esquerda dita tradicional, que tem buscado uma renovação, ainda precária e inicial, mas que já dá alguns frutos, como os avanços eleitorais da social-democracia em alguns países europeus. Liberais, conservadores e liberal-democráticos vivem cada um sua própria crise, fustigados pelo iliberalismo da extrema direita, que põe em xeque os fundamentos da democracia liberal representativa. Nas recentes eleições europeias, a novidade foi a emergência de núcleos ecológicos, especialmente os verdes alemães, que difusamente atuam em busca de expressivas alternativas futuras, mas sem ainda alcançar capacidade orgânica e/ou institucional de se conformarem num peso forte no cenário mundial.

Mesmo de forma errática, Bolsonaro se posiciona claramente contra o globalismo e, pela via de um nacionalismo anacrônico, aposta na sua capacidade de anular a dinâmica e os efeitos da globalização entre nós. Trata-se de um equívoco: não há país que possa ficar de fora do “conflito econômico mundial”, que se expressa de forma global. O alinhamento ativo diante dessas circunstâncias – que Bolsonaro por seu viés ideológico de extrema direita não contempla – é a defesa de uma perspectiva de cooperação entre os países, advinda de uma nova orientação estratégica, isto é, de uma política de interdependência que favoreça a convivência entre diferentes e a busca de um destino comum para a humanidade. O regressismo de Bolsonaro é uma escolha que leva o País para o pior dos lados do “conflito econômico mundial”, numa posição subalterna ao atual governo norte-americano, além de vinculá-lo ao que há de mais reacionário na política europeia.

Por um lado, é inútil afirmar uma visão apologética ou catastrófica do novo cenário criado pela globalização. Por outro, no caso brasileiro não se trata apenas de retomar uma política externa equilibrada, uma das marcas da nossa História diplomática, mas de enfrentar politicamente o “conflito econômico mundial” e apresentar ao mundo uma orientação nova diante de um cenário novo. O passado pode, certamente, nos ajudar, mas não será a chave para um futuro de ampla cooperação, suplantando os vetores ideológicos.

É preciso politizar, em termos democráticos, tanto externa quanto internamente, o quadro de conflitos que se estabelece no mundo atual. Isso significa superar a noção tantas vezes mencionada de que vivemos um tempo em que “a política está morta”. Ao contrário, é preciso ultrapassar a antiga noção territorial de soberania nacional e buscar uma perspectiva inovadora para conectar cidadania, nação, interdependência e cooperação. E, com isso, avançar no sentido de recolocar a modernidade em novos termos, com seus ricos avanços e aberturas ilimitadas a novas subjetividades.

O regresso a um nacionalismo anacrônico manchado de reacionarismo não nos serve e pode malograr todas as expectativas de um lugar generoso no mundo para os brasileiros.

Não há verba nem equipe para fazer fiscalização ambiental, admite ministro

Num instante em que Jair Bolsonaro esnoba doações de países ricos e assegura que o Brasil não precisa de socorro externo para preservar a floresta amazônica, o ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) reconheceu: falta dinheiro e estrutura para realizar a fiscalização ambiental no país. Disse que o GEF, Grupo Especializado de Fiscalização, uma espécie de pelotão de elite do Ibama, dispõe de apenas 13 fiscais em todo país.

Em entrevista ao programa Roda Viva, Salles lamentou a falta de auxílio dos governos estaduais."A nossa estrutura por si só, sem o apoio dos estados, não é suficiente". Contou, por exemplo, que coleciona pedidos frustrados de colaboração com o governo paraense. Foram "doze ofícios pedindo apoio policial, desde fevereiro, para operações no estado do Pará".

Na prática, o controle da fiscalização ambiental foi transferido para as Forças Armadas pelo menos até a primeira quinzena de setembro. Para atenuar o drama financeiro, o ministro Paulo Guedes (Economia) desbloqueou R$ 39 milhões do Ministério da Defesa. Recorreu-se à farda depois de uma sequência de tolices protagonizadas por Bolsonaro — do questionamento de dados científicos sobre o desmatamento às agressões aos doadores estrangeiros, passando pela calúnia de atribuir às ONGs a responsabilidade pelo surto de queimadas.



Por que o governo não agiu antes de a crise ambiental virar uma manchete planetária? Ricardo Salles afirmou que os militares só poderiam atuar depois que o presidente editasse decreto autorizando a soldadesca a exercer o "poder de polícia" em território nacional. Batizada de GLO, Operação de Garantia da Lei e da Ordem, esse tipo de atividade está prevista na Constituição. Faltou esclarecer por que Bolsonaro agravou a crise que abriu os quarteis.

A certa altura, Salles comentou o caso batizado de "dia do fogo". Trata-se de um conluio supostamente urdido num grupo de WhatsApp por fazendeiros do sudoeste do Pará, para provocar queimadas em série ao longo da BR-163 no último dia 10 de agosto. O ministro reconheceu que o Ibama foi avisado pelo Ministério Público paraense com três dias de antecedência. Acionou a polícia estadual. E nada.

Um dos entrevistadores lembrou que também a Força Nacional de Segurança, subordinada ao Ministério da Justiça, foi acionada pelo Ibama. E Salles, em timbre de resignação: "Pois é".

Criticado por ter desossado o aparato de fiscalização ambiental de sua pasta, o ministro se escorou no funcionalismo que desprestigia. "A equipe nossa tem tomado as medidas que são possíveis". Atribuiu a falta de cooperação estadual à penúria financeira e à existência de governos novos. "O fato é que, havendo alinhamento com os estados, dá para fazer melhor trabalho. Não havendo alinhamento, isso fica mais prejudicado".

Perguntou-se a Ricardo Salles por que um governo descapitalizado sabota o Fundo Amazônia, maior projeto de preservação ambiental do planeta, custeado com verbas doadas por Noruega e Alemanha. "Nós não sabotamos o fundo", afirmou o ministro, antes de reiterar o lero-lero habitual sobre as tentativas da gestão de Bolsonaro de alterar o funcionamento de um programa que recebeu R$ 3,4 bilhões em doações nos últimos dez anos.

Após muita desconversa, o ministro foi ao ponto: "O governo do presidente Bolsonaro é um governo eleito em 2018. Um governo que trouxe uma escolha política da sociedade brasileira". Acrescentou: "Entre outras questões que mudaram com a eleição do presidente Bolsonaro também está o direito ou a legitimidade ou a vontade de ter maior direcionamento, maior participação nos destinos da atribuição das verbas ou dos projetos ou daquilo que se faz no âmbito do Fundo Amazônia".

É improvável que o eleitor de Bolsonaro tenha lhe concedido o voto para que o capitão rasgasse dinheiro. Entretanto, o vaivém ambiental da atual gestão não produziu senão a suspensão de verbas geridas sem a interferência dos doadores e sob supervisão do BNDES. A Alemanha reteve o envio de R$ 150 milhões. A Noruega bloqueou o repasse de R$ 133 milhões. Bolsonaro deu de ombros. Fez gracejos sobre as florestas alemãs e ironizou o hábito dos noruegueses de caçar baleias.

Pouco antes do início da entrevista de Ricardo Salles, o Planalto decidira refugar também a mais recente oferta de auxílio financeiro internacional. Bolsonaro recusa-se a aceitar os US$ 20 milhões oferecidos pelo G-7, grupo que reúne sete das nações mais ricas do mundo.

Informado de que o chefe da Casa Civil Onyx Lorenzoni confirmara a novidade, Salles tentou estabelecer um contraponto. Mas soou contraditório. Primeiro, disse ter lido na imprensa que a doação seria materializada na forma de um envio de aeronaves canadenses, para lançar água sobre as chamas. "Sendo assim, me parece ajuda importante de ser aceita." E quanto a Onyx? "Ele tem um papel político. [...] Eu sou ministro do Meio Ambiente. E tenho outra visão técnica".

De repente, Salles trocou de figurino. Disse que não lhe cabe mensurar "se esse acréscimo de aeronaves é necessário ou não". Heim?!? "Sou mais político do que técnico. Então, essa definição sobre a pertinência da necessidade do emprego desses equipamentos deverá ser corroborada pelos técnicos, seja do Ministério da Defesa ou do grupo de combate ao fogo nos estados ou federal".

Foi como se o entrevistado se desse conta de sua nova condição temporária. Enquanto os comandantes militares derem as cartas, Salles será uma espécie de ex-ministro no exercício do ministério. Vem daí a desenvoltura com que Onyx, cuja sala está separada do gabinete presidencial por um lance de escada, se imiscui com tanta desenvoltura em ambiente alheio.

Cada 1.000 ha custa R$ 1 milhão

O desmatamento ilegal de grandes proporções é praticado, sim, por agentes do crime organizado, inclusive pela capitalização. As queimadas são reflexo do aumento do desmatamento. A queimada aumenta porque a fronteira agrícola está sendo expandida
Joel Bogo, procurador da força-tarefa Amazônia (MPG), em Rio Branco (AC)
 

Para se recuperar do fogo, 'floresta leva décadas ou centenas de anos'

Um incêndio na Amazônia costuma ter chamas baixas - às vezes não passam de 30 centímetros -, que avançam com lentidão. A destruição causada pelo fogo é grande e leva tempo para ser superada. No Cerrado, as chamas são altas e avançam com velocidade. No entanto, a área se recupera com rapidez.

Enquanto o Cerrado é preparado para lidar com o fogo, a região amazônica não possui a mesma capacidade, conforme especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.

Biomas mais comuns no Brasil, os dois lideram a lista dos atingidos pelas queimadas que têm sido registrados em diversos pontos do país neste ano. Em primeiro lugar aparece a Amazônia, com 52,6% dos focos de incêndios de 2019. No Cerrado foram notificados 29,8% dos casos. Os dados foram divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

De janeiro a agosto deste ano, foram registrados, até sexta-feira (23), 76,7 mil focos de incêndio no Brasil. Os estados com mais queimadas são Mato Grosso (14,6 mil), Pará (10,2 mil), Amazonas (7.2 mil), Tocantins (5,9 mil) e Rondônia (5,8 mil). Os cinco compõem a Amazônia Legal, com áreas de Floresta Amazônica.


Pesquisadora da Universidade de Oxford, a brasileira Erika Berenguer estuda os efeitos do fogo na região amazônica. Ela ressalta que os incêndios na Floresta Amazônica não acontecem de maneira natural. "É preciso que alguém coloque o fogo. Ao contrário de ecossistemas como o Cerrado, a Amazônia não evoluiu com o fogo e ele não faz parte da dinâmica dela", diz.

"No Cerrado, o fogo é natural. Assim como ele ocorre naturalmente, por exemplo, em savanas ou nas florestas da costa da Califórnia. Mas na Amazônia, o fogo não faz parte dessa dinâmica", relata.

A especialista ressalta que a vegetação da Amazônia não tem mecanismos de proteção ao fogo, enquanto o Cerrado tem seus meios de defesa. "No Cerrado, há árvores com uma casca supergrossa, quase uma cortiça. Essa casca serve para proteger o cerne da árvore do fogo. Se o fogo queimar a casca, ela é tão grossa que não deixa a chama, nem a alta temperatura, chegar no cerne da árvore", detalha.

Enquanto no Cerrado existem árvores com dezenas de centímetros de casca, diz, na região amazônica as cascas têm poucos milímetros. "Isso significa que o fogo tem muito mais facilidade para levar essa árvore da Amazônia à morte, porque vai destruir o cerne dela."

"Essa falta de proteção ao fogo na Amazônia significa que a mortalidade de árvores é muito alta. Se uma área de floresta queima, até 50% das árvores dela morrem", acrescenta.

O britânico Jos Barlow, doutor em Ecologia e professor da Universidade de Lancaster, no Reino Unido, ressalta que as plantas da Amazônia nunca estiveram preparadas para enfrentar incêndios.

"Elas não têm histórico de fogo ao longo de milhões de anos de evolução. Por isso, quando as chamas passam por lá, desmatam muitas árvores, mesmo sendo um incêndio de baixa intensidade", explica.

Sobre as consequências dos incêndios nos dois biomas, Barlow afima que mesmo com fogo de alta intensidade e chamas altas no Cerrado, o impacto é pouco. "As árvores conseguem sobreviver. Depois de seis meses ou um ano, não é possível perceber que passou fogo ali", comenta o britânico. Na Amazônia, além da morte de quase metade das árvores da floresta incendiada, as consequências do fogo são notadas até mesmo depois de décadas.

As mortes de árvores da Amazônia representam graves consequências ao meio ambiente e colaboram para alterações climáticas. "Essas árvores são grandes armazéns de carbono. Uma grande árvore na região amazônica pode ter de três a quatro toneladas de carbono armazenado. Se ela for queimada, todo esse carbono vai para a atmosfera, contribuindo para acelerar as mudanças climáticas", diz Erika.

"A Amazônia inteira estoca o equivalente a 100 anos de emissões de CO2 dos Estados Unidos. Então, queimar a floresta significa colocar muito CO2 de volta na atmosfera", acrescenta a pesquisadora.

Há mais de uma década, Erika estuda a Floresta Amazônica. Ela comenta que as queimadas que ocorrem na região são, em sua maioria, feitas por produtores rurais para o desmatamento. "Primeiro, eles derrubam as árvores com um "correntão", no qual interligam dois tratores em uma imensa corrente. Com os veículos andando, a corrente entre eles vai levando a floresta ao chão."

"A floresta derrubada fica um tempo secando no chão, geralmente por meses adentro da estação seca, para perder umidade suficiente para que possam colocar fogo nela. Fazem toda aquela vegetação desaparecer, para que possam plantar capim. Cerca de 70% da área já desmatada da Amazônia brasileira é usada para pastagem ", declara.

Erika detalha que o fogo do desmatamento pode escapar e atingir árvores que não tinham sido alvos dos "correntões" e haviam permanecido em pé.

A pesquisadora ressalta que o período de seca na Amazônia, que começa em julho e pode seguir até outubro, costuma culminar no aumento dos incêndios florestais. "O que tem de diferente em 2019 é a dimensão do problema. É o aumento do desmatamento, aliado aos inúmeros focos de queimadas e ao aumento das emissões de monóxido de carbono, o que mostra que a floresta está ardendo", afirma. Ela acredita que a tendência é que a situação na piore nos próximos dois meses.

Para especialistas, medidas de preservação ambiental devem ser tomadas com urgência pelo Governo Federal. "Desde janeiro, com o atual governo, tem existido um grande desmonte nas agências ambientais brasileiras. Tanto no Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente) quanto no ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade)", lamenta Erika.

Ela também cita o bloqueio do Fundo Amazônia - uma reserva de dinheiro doado internacionalmente para projetos de preservação da floresta -, suspenso em razão da política ambiental de Bolsonaro. "Esse fundo é de extrema importância, pois é responsável por financiar operações de combate ao desmatamento. Com recursos dele, foram comprados caminhões e aviões que são usados no combate às queimadas nos estados amazônicos", declara Erika.

A ausência de políticas de preservação ambiental poderá trazer um cenário ainda pior nos próximos anos, conforme os estudiosos.

Após a repercussão extremamente negativa da situação das queimadas no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro afirmou, em pronunciamento na noite de sexta-feira, que terá "tolerância zero" com crimes ambientais. Ele declarou que o governo atuará fortemente no combate aos incêndios da Amazônia.

Ainda que haja redução no crescente número de queimadas na região amazônica, as consequências das áreas já afetadas irão perdurar por tempo indeterminado. A dificuldade de se recuperar é um dos maiores problemas enfrentados pelas regiões da floresta que foram atingidas pelo fogo.

"A gente tem árvores enormes caindo. Elas vão morrer. Depois, podem nascer árvores finas. Essas árvores novas crescem rápido, mas tem baixa densidade de madeira. Elas retêm pouco carbono. Não é porque temos uma árvore nascendo que ela vai corresponder à que morreu", esclarece Erika.

Conforme estudos feitos por especialistas que analisam as queimadas na Amazônia, mesmo três décadas após ser atingida pelo fogo, as florestas queimadas têm 25% menos carbono que as que não foram alvos de chamas. "Isso mostra que a gente precisa de décadas ou até mesmo centenas de anos para que as florestas se recuperem de um incêndio", lamenta a pesquisadora.