quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Colegas de Guedes não confiam nele

Credores do governo e negociantes de dinheiro em geral não andam confiando muito em Paulo Guedes. A opinião dos colegas de profissão do ministro sobre o futuro das contas públicas e da economia voltou a piorar desde meados de agosto. Não era tão ruim desde maio, pelo menos, quando o país sentia os efeitos recentes do atropelamento da pandemia e estava perto do auge a campanha golpista de Jair Bolsonaro.

A opinião dos negociantes de dinheiro fica registrada do modo mais objetivo nas taxas de juros que cobram para fazer empréstimos ao governo, por exemplo. As taxas para empréstimos mais longos têm subido. Mais precisamente, tem ficado maior a diferença entre as taxas de cinco anos ou mais e a taxa de um ano, que foi para perto do chão por decisão, na prática, do Banco Central (que assim o fez por não ver risco imediato de inflação).

E daí? Taxas de juros mais altas desestimulam investimentos das empresas em expansão de negócios. Outras medidas da opinião dos negociantes de dinheiro, como dólar anormalmente alto no Brasil e Bolsa travada ou caindo, também contribuem para o que os economistas chamam de “aperto das condições financeiras”. Se a coisa continuar assim malparada, haverá problemas adicionais para alguma recuperação econômica daqui em diante.

A explicação dos motivos da opinião dos negociantes de dinheiro, “o mercado”, é sujeita a mais controvérsia. O que os povos dos mercados têm dito é que as taxas longas subiram porque há menos confiança de que o governo Bolsonaro vá cumprir o contrato fiscal: manter o teto de gastos, fazer um programa de redução de despesas e, se der, outras “reformas”.


A desconfiança teria aumentado porque o governo daria sinais de que pode estourar as contas a fim de criar um Bolsa Família Verde Amarelo e investir mais em obras. Ou porque terá dificuldade de manter o teto sem tirar dinheiro dos servidores públicos, arrocho que Bolsonaro não quer fazer. Em resumo, não se sabe o que será do Orçamento nem em 2021.

Como, além do mais, o déficit cresceu brutalmente neste ano, os técnicos do Tesouro, gente capaz, tentam fazer mágicas e milagres a fim de evitar que o governo pague mais caro para se financiar. Mesmo assim, para resumir uma história comprida e enrolada, o resultado é que o governo tem tomado empréstimos de prazo cada vez mais curto, o que é um risco, na maior parte por meio do Banco Central, na prática.

Em resumo, cobra-se ora mais caro do governo porque Bolsonaro não inspira confiança aos donos do dinheiro. Logo, alguém poderia dizer que a culpa não é de Guedes, mas do seu chefe, o que não melhoraria muito a situação do ministro. No entanto, o próprio Guedes é ator coadjuvante dessa desordem —“desordem” na opinião de “o mercado”, dos colegas dele. Nem está se discutindo se os motivos de “o mercado” são bons ou não. O fato é que a situação azedou.

A curto prazo e sem desastre maior pelo mundo, a coisa é administrável, do ponto de vista mercadista. A situação financeira muda se não aparecer um Bolsa Família gordo bancado por um fura-teto e se passar alguma lei que tire dinheiro dos servidores; muda ainda mais se for congelado o valor de benefícios sociais e do gasto em saúde e educação.

Como tanto se tem escrito nestas colunas, a pandemia e, em particular, o auxílio emergencial colocaram a discussão político-econômica em outro patamar, talvez em outro universo. Perto da gravidade do que se está por decidir (ou não), a inflação do arroz ou do tijolo é fichinha.

Odorico, Severino e Bolsonaro

Desde 1947 cabe ao Brasil abrir a Assembleia-Geral das Nações Unidas, na sede da ONU, em Nova York. O primeiro a fazer uso da prerrogativa foi Oswaldo Aranha. De lá para cá, nossa representação só deteriora. Com Jair Bolsonaro já são dois anos de negacionismo, mentiras e blablablá ideológico. Em 2019, presencial; ontem, em vídeo. Não importa, a vergonha é a mesma.

Infrutífero comparar as falas de Bolsonaro com outras igualmente infelizes de presidentes que o antecederam. De jaquetão e bigode engomado, José Sarney exibiu um inglês macarrônico. Mas não mentiu nem criou fantasias persecutórias aos olhos do mundo, nem tampouco exibiu desconexão completa da realidade.

Dilma Rousseff discursou várias vezes e sua fala recebeu merecidas críticas, por edulcorar os escândalos de corrupção que ajudaram a pavimentar seu impeachment, logo depois, por tergiversar com ataques à democracia em países de esquerda. Mas ela se conteve, por exemplo, e não falou em golpe ao discursar em abril, já às vésperas de ser afastada, para não levar assuntos domésticos e, mais, uma interpretação dos fatos, a um palco internacional.

Com Bolsonaro não há paralelo possível. Quando se pensava que nada poderia superar a fala do ano passado, na deste ano o presidente brasileiro disse cinicamente que o Brasil tem um dos melhores resultados no enfrentamento da covid-19, isso com mais de 137 mil mortos nas costas, enalteceu nossa política ambiental mesmo com a Amazônia e o Pantanal queimando aos olhos do mundo, converteu o auxílio emergencial em dólar e somou todas as parcelas para vender uma bonança dos mais pobres que é falsa e ainda inventou um conceito, a “cristofobia”, que, se bem explorado pelos seus ideólogos reacionários, pode fornecer mais empulhação para as eleições de 2022.


Diante de tal acervo de sandices, os paralelos possíveis com Bolsonaro na ONU se situam na ficção e no baixo clero, de onde o nosso presidente veio e de onde nunca teria saído em condições políticas normais.

A primeira referência é a antológica passagem de Odorico Paraguaçu, personagem do genial Dias Gomes, pelas Nações Unidas. Cercado de um séquito que incluía beatas fervorosas (também há as Cajazeiras do bolsonarismo), um puxa-saco caricato (candidatos a Dirceu Borboleta não faltam no Ministério) e o “capitão” Zeca Diabo (versão anos 80 de miliciano), o prefeito de Sucupira queria oferecer um terreno na cidade para que fosse construída a nova sede da ONU. Megalomania, ridículo e nacional-populismo na veia. Em 1983, pelo menos, era dramaturgia.

Outra passagem que lembra nos contornos patéticos as participações de Bolsonaro no fórum global foi a de Severino Cavalcanti em 2005, como presidente da Câmara, que cobri in loco. Então alvo do escândalo do “mensalinho”, em que era acusado de recolher propina de permissionários da Casa, o deputado pernambucano viajou com direito a séquito e limusine a Nova York e foi alvo de sistemática cobertura de imprensa.

O cerco a Severino, que se escondeu até no banheiro da ONU para fugir da imprensa, levou jornalistas de outros países a nos perguntarem quem era aquele homem para receber tanta atenção. Nos questionavam se ele estava envolvido no escândalo “Petróleo por Comida”. Mal sabiam que era comida por mensalinho mesmo, algo bem mais rastaquera.

Bolsonaro, com suas mentiras cínicas e deliberadas no momento mais grave da vida nacional neste século, rebaixa a Presidência a uma versão digital da Sucupira de Odorico. 

As agências de checagem já trataram de desmontar o discurso fake que ele fez. A mim restaram essas reminiscências envergonhadas. Levaremos anos para suplantar esse momento de rebaixamento do Brasil.

Caia na real, presidente!

Pela segunda vez o presidente desperdiçou uma oportunidade de ouro para retirar o Brasil da condição de pária no cenário internacional, ao discursar na abertura da Assembleia da ONU. Se no ano passado Jair Bolsonaro proferiu suas palavras com faca nos dentes e sangue nos olhos, este ano adotou um tom alguns decibéis mais abaixo. Nem por isso deixou de focar no seu público interno, construindo uma narrativa onde tudo vai bem no país de Alice. Seu governo foi um tremendo sucesso no combate à pandemia e o Brasil é exemplo para o mundo em matéria de política ambiental.

O fato de seu ufanismo não bater com a realidade não é um detalhe. O mundo não se deixa enganar por palavras. A ele interessa fatos concretos e, neste particular, o presidente não disse a que veio. Jogou a culpa pelas queimadas nas costas dos índios e dos caboclos da Amazônia.

Também combateu moinhos de ventos.


Segundo ele, o Brasil é vítima de uma campanha de desinformação na questão amazônica, orquestrada por interesses protecionistas de países concorrentes do nosso agronegócios. A versão de uma trama internacional também foi divulgada na véspera pelo general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional. De acordo com o general “há um complô promovido por países, entidades e personalidades internacionais” – leia-se o ator Leonardo DiCaprio- “com o objetivo de derrubar o governo Bolsonaro”.

A viseira que impede o governo de enxergar a realidade é uma mentalidade que vê conspiração em tudo, talvez herdada de parte da caserna e dos tempos da guerra fria. Os militares sempre elegeram inimigos externos associados a uma quinta coluna que agiam contra a soberania nacional. No passado, eram os comunistas e seus agentes internos. Hoje são os países da União Europeia e as ONGs que atuam na região amazônica.

De acordo com essa ótica, a Amazônia é alvo da cobiça internacional e a maneira de assegurar a soberania nacional sobre a região é a sua ocupação, mesmo que seja por um modelo predatório pautado na exploração irracional da madeira, da pecuária extensiva e do garimpo ilegal.

São eles os principais agentes do desmatamento e das queimadas e não os caboclos e índios, como quer fazer crer o presidente.

Esse modelo está em absoluta contramão da tendência mundial do próprio capitalismo, que marcha para uma economia de baixo carbono e para um modelo sustentável. As modernas empresas passaram a incorporar valores como responsabilidade social e sustentabilidade em sua governança. Cada vez mais os países desenvolvidos levam em conta questões ambientais nas suas relações internacionais, enquanto na Europa os partidos verdes vão se consolidando como uma força política expressiva.

A relevância do meio ambiente na agenda mundial pode dar novo salto caso o democrata Joe Biden ganhe a eleição americana. Nessa hipótese, haverá mais pressão sobre o governo brasileiro.

As pressões internacionais decorrem principalmente desses fatores, embora não se ignore a existência de interesses protecionistas. Mas eles não são o determinante.

Para fazer frente à nova realidade, não basta apenas o governo brasileiro afirmar enfadonhamente que temos a matriz energética mais limpa do mundo e uma legislação ambiental exemplar, se os olhos do planeta enxergam, por meio de satélites, a expansão do desmatamento e das queimadas.

O maior problema do discurso do presidente na ONU foi não ter contribuído em nada para dirimir as desconfianças do mundo. Ao contrário. Faria melhor se tivesse entendido a Amazônia como um grande ativo do Brasil, que poderia ser usado em favor do país, mostrando nosso compromisso com um modelo sustentável e aberto à cooperação internacional. Essa demonstração exigiria uma nova postura diante dos órgãos de fiscalização do meio ambiente, que foram enfraquecidos pelo seu governo.

O acesso do nosso agronegócio ao mercado dos países desenvolvidos e a atração de investimentos externos dependem muito de um compromisso claro e insofismável do Brasil com um novo padrão de exploração da Amazônia e de defesa do meio ambiente.

Essa mudança virá, mais dia menos dia, até porque passa a ser de interesse do capitalismo brasileiro. Se há alguma luz no túnel é o entendimento entre ambientalistas e grandes empresas, parte delas do agronegócio. Recentemente eles se uniram por meio da Coalizão Brasil Clima, Floresta e Agricultura para cobrar do governo medidas concretas de defesa ambiental. Gigantes do agronegócio como Marfrig, Cargil e JBS já perceberam que perderão acesso ao mercado mundial se não houver uma mudança de rota na política ambiental do governo.

Só Bolsonaro não caiu na real.
Hubert Alquéres

Brasil da Bozolândia

 


Mendacidade na ONU

Como se estivesse em uma de suas corriqueiras “lives” nas redes sociais, nas quais fala o que lhe dá na telha e dá livre curso às mais delirantes teorias conspirativas, o presidente Jair Bolsonaro usou os holofotes da abertura da Assembleia-Geral da ONU para reiterar suas irresponsáveis imposturas acerca de graves temas.

A vergonha só não foi maior porque depois de Bolsonaro quem discursou foi seu guia, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que estava mais afiado do que nunca – entre outras barbaridades, ele defendeu que a ONU responsabilize a China pela pandemia.


Como sempre colocando seus estreitos objetivos eleitoreiros acima dos interesses do País, Bolsonaro começou seu discurso reiterando pela enésima vez a farsa segundo a qual, “por decisão judicial”, todas as medidas de isolamento para combater a pandemia de covid-19 “foram delegadas a cada um dos 27 governadores das unidades da Federação”. Todos sabem, contudo, que não houve nenhuma decisão judicial com esse teor.

Há tempos o Supremo Tribunal Federal (STF) esclareceu que, conforme o princípio federativo expresso na Constituição, o governo federal não podia anular unilateralmente decisões de governos estaduais e municipais para combater a pandemia, como pretendia Bolsonaro, mas isso não o eximiu de cumprir as responsabilidades próprias da União.

Sem nenhum compromisso com os fatos, contudo, o presidente Bolsonaro reafirmou a patranha segundo a qual seu governo foi dispensado judicialmente de responsabilidade sobre a múltipla tragédia. Acrescentou, como se isso não bastasse, que grande parte da crise foi causada pela imprensa, que “politizou o vírus, disseminando o pânico entre a população”. “Sob o lema ‘fique em casa’ e ‘a economia a gente vê depois’, quase trouxeram o caos ao país”, acrescentou o presidente, repetindo para uma audiência internacional o discurso falaz que costuma fazer em seus rompantes mitingueiros.

E tudo isso resume apenas os cinco primeiros parágrafos do pronunciamento, obviamente destinado não a mudar a imagem do Brasil, visto hoje como pária em muitos círculos internacionais, mas sim a reafirmar aos bolsonaristas fanáticos a disposição do presidente de continuar a ser o Bolsonaro de sempre.

Assim, Bolsonaro pintou na ONU o quadro de um Brasil glorioso, que “alimenta o mundo” e que avança a despeito dos muitos inimigos – nunca nomeados e desde sempre interessados apenas em obstar o sucesso do País. O Brasil, disse Bolsonaro, “desponta como o maior produtor mundial de alimentos” e, por isso, segundo seu raciocínio, “há tanto interesse em propagar desinformações sobre nosso meio ambiente”.

“Somos vítimas de uma das mais brutais campanhas de desinformação sobre a Amazônia e o Pantanal”, disse Bolsonaro, negando o que todos são capazes de ver, isto é, o aumento substancial da destruição daqueles biomas sob seu governo – que sustenta um discurso irresponsável de desenvolvimento baseado no relaxamento da legislação ambiental.

“A Amazônia brasileira é sabidamente riquíssima. Isso explica o apoio de instituições internacionais a essa campanha escorada em interesses escusos que se unem a associações brasileiras, aproveitadoras e impatrióticas, com o objetivo de prejudicar o governo e o próprio Brasil”, declarou Bolsonaro. Na mesma linha da conspiração, em audiência no STF acerca da questão ambiental, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, havia dito que “não podemos admitir e incentivar que nações, entidades e personalidades estrangeiras, sem passado que lhes dê autoridade moral para nos criticar, tenham sucesso em seu objetivo, obviamente oculto, mas evidente, que é prejudicar o Brasil e derrubar o governo Bolsonaro”.

Assim, os próceres do governo Bolsonaro não se envergonham de levar às mais altas tribunas as teses mais doidivanas acerca de temas de enorme relevância para o Brasil e o mundo, apostando na confusão. Debalde: como mostra a crescente fuga de investidores estrangeiros, cada vez menos gente cai nessa conversa, que só prejudica a nação brasileira.

Bolsonaro gosta de ser um negacionista

É tradição na ONU: o Brasil é sempre o primeiro país a discursar na abertura da Assembleia Geral. A novidade este ano foi o discurso ser gravado em vídeo, devido à pandemia de coronavírus. Com mais de 137 mil mortes pela covid-19 confirmadas, o Brasil é atualmente o segundo país com mais vítimas da doença, atrás apenas dos Estados Unidos. Logo no início de seu discurso, Bolsonaro se colocou na defensiva. Afinal, como explicar o desastre nacional para um mundo que conhece a sua terrível comparação do coronavírus com uma "gripezinha"?

Segundo o presidente, a culpa não cabe a ele. Pelo contrário. Ele teria sido vítima do Judiciário brasileiro, que o deixou de mãos atadas na luta contra a pandemia e cedeu poderes aos governadores. Quem observa a situação mais de perto sabe que Bolsonaro se recusou a lutar contra a pandemia, que descreveu como "histeria". E pior ainda: ele se baseou na cloroquina, medicamento antimalárico comprovadamente ineficaz contra a covid-19, e colocou o Ministério da Saúde sob o comando de um general que havia organizado a logística dos Jogos Olímpicos do Rio.

Mas a negação de qualquer culpa ou responsabilidade faz parte da mentalidade populista de Bolsonaro. Assim como inflar a própria atuação sempre que algo está indo bem. De acordo com Bolsonaro, o auxílio emergencial pago a mais de 65 milhões de brasileiros para enfrentar a crise gerada pela pandemia protegeu a economia de um desastre ainda maior. Isso é verdade. No entanto, ele não disse ao público internacional que foi o Congresso quem pressionou o governo a liberar o auxílio. E ele simplesmente mentiu quando disse que as parcelas do auxílio somam 1.000 dólares por pessoa.


O negacionismo de Bolsonaro se torna ainda mais óbvio em relação à destruição ambiental em curso na Amazônia. As nuvens de fumaça podem ser percebidas até em grandes cidades do extremo sul do Brasil, e a sua gigante propagação também pode ser vista em imagens de satélite da Nasa. E o fato de que o governo Bolsonaro está impedindo as autoridades ambientais de proteger as florestas é evidenciado pelos cortes drásticos nos orçamentos ambientais. Até membros de seu próprio governo admitem abertamente a paralisia das autoridades de fiscalização ambiental.

Ainda assim, Bolsonaro também repetiu diante da plateia virtual da Assembleia Geral da ONU seu mantra de que ninguém protege mais a natureza do que o Brasil e que apenas a comunidade mundial malévola se recusa a reconhecer isso. "Somos vítimas de uma das mais brutais campanhas de desinformação sobre a Amazônia e o Pantanal", disse Bolsonaro. Instituições internacionais estariam envolvidas em maquinações sombrias para prejudicar o seu governo e o Brasil, com a participação de associações brasileiras "aproveitadoras e impatrióticas".

Com isso, o presidente se dirige não apenas a organizações como o Greenpeace e o WWF e a ativistas como o ator Leonardo DiCaprio, mas também contra a própria ONU. A Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a COP 25, deveria ter sido realizada no Brasil em 2019. Mas Bolsonaro se opôs. Reiteradamente, ele acusou a ONU de querer tirar a Amazônia do Brasil com a ajuda do acordo climático de Paris.

Mas é claro que Bolsonaro não se interessa pela imagem do Brasil no mundo. Em tempos de redes globais de informação e graças à cobertura vigilante da mídia, o mundo hoje sabe muito bem o que está acontecendo nas florestas brasileiras. Nesse ponto, Bolsonaro não tem nada a ganhar. O discurso dele se dirige à própria população, a quem tem que responder sobre as mortes provocadas pelo coronavírus, a crise econômica devido à pandemia e a destruição do meio ambiente. E a quem ele – ao contrário da opinião pública bem informada no exterior – ainda pode imputar sua distorção dos fatos.

Atribuir a culpa a poderes obscuros estrangeiros agrada a muitos brasileiros. As ameaças das fileiras da União Europeia de não ratificar o acordo comercial com o Mercosul vêm a calhar para que Bolsonaro se mostre vítima de intrigas internacionais.

Dois problemas movem o mundo atualmente: a pandemia da covid-19 e as mudanças climáticas. Ambas as crises têm dimensões globais e só podem ser resolvidas em nível global. Um estadista inteligente, portanto, usaria instituições globais como a ONU para encontrar soluções. Antes de mais nada, para interesse do seu próprio país. Mas Bolsonaro não pensa em soluções. Como populista profissional, ele aceita as crises com gratidão, para poder colocar a culpa em inimigos imaginários. Não se deve esperar nada de construtivo dele.
Thomas Milz

Chauvinismo e xenofobia

Nicolas Chauvin foi um soldado francês condecorado por Napoleão Bonaparte por sobreviver a vários combates, severamente mutilado, depois de ser ferido 17 vezes. Tornou-se uma lenda para os franceses, até que as comédias escrachadas de vaudeville começaram a ridicularizar sua ingenuidade e fanatismo, dando origem ao termo que hoje é muito utilizado para caracterizar o sentimento ultranacionalista que leva os indivíduos a odiar as minorias e perseguir os estrangeiros. Na década de 1970, as feministas dos Womens`s Lib deram uma conotação mais abrangente ao termo, ao chamar os machistas de “porcos chauvinistas”.

Por causa de seu discurso de ontem na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), o presidente Jair Bolsonaro entrou para o rol dos líderes políticos chauvinistas da atualidade, o que não é bom para nenhum chefe de Estado nem para o Brasil, em particular. Seu discurso nacionalista não chegou a ser histriônico, mas fugiu à verdade e ignorou a realidade, sendo muito contestado interna e externamente. Além do chauvinismo, Bolsonaro revelou certa xenofobia, ao culpar os caboclos e índios pelos incêndios na Amazônia e Pantanal.

Xenofobia é outra palavra muito feia. Refere-se ao sentimento de hostilidade e ódio manifestado contra pessoas por elas serem estrangeiras ou serem enxergadas como estrangeiras. Trata-se de um preconceito social muito comum no mundo por causa do fluxo de migrações. Árabes e muçulmanos sofrem com isso na Europa, mexicanos e latinos nos Estados Unidos. Geralmente, a xenofobia está associada ao racismo. A forma como Bolsonaro trata os índios no Brasil sempre teve essa conotação xenófoba; a novidade é o preconceito que revelou na ONU em relação aos caboclos brasileiros.

Certos fenômenos da vida brasileira não se explicam pela sociologia ou pela ciência política, somente podem ser compreendidos quando nos socorremos da antropologia. A eleição de Bolsonaro, por exemplo, sua capacidade de se amalgamar aos evangélicos e capturar o sentimento de preservação da família unicelular patriarcal nas camadas mais pobres da população, ameaçada pelas dificuldades econômicas e as mudanças de costumes. Em contrapartida, Bolsonaro não consegue entender o nosso sincretismo religioso e o peso da miscigenação na formação da identidade brasileira. Se entendesse, não trataria com tanto preconceito os indígenas e os caboclos da Amazônia.



O caboclo tem uma cultura de selva adquirida dos índios. Porém, manteve a língua, a religiosidade e certos costumes dos portugueses, ao longo de secular abandono. É um comportamento semelhante ao do moçambicano branco, mas muito diferente do bôer sul-africano, que renegou as origens, inventou uma nova língua e se considera a grande tribo branca da África. Todos ficaram insulados após a expulsão dos holandeses do Nordeste brasileiro. Explico: quando os holandeses chegaram ao Recife, em 1630, para controlar o açúcar, perceberam que o que dava dinheiro não era só plantar cana e produzir açúcar, mas também vender africanos para os senhores de engenho. Saíram do Recife em 1641 para atacar Angola e dominar o tráfico negreiro para o Brasil. Quando começou a guerra de guerrilhas em Pernambuco para expulsá-los, Salvador de Sá organizou uma expedição do Rio de Janeiro para expulsar os holandeses de Angola, em 1648. Cerca de 2 mil portugueses, porém, ficaram largados na Amazônia, para onde haviam sido enviados em 1637, para explorar o cacau e a castanha, produtos de grande valor comercial.

Apesar dos esforços portugueses para manter o controle da região, notadamente do Marquês de Pombal, após o Tratado de Madri (1750), por meio da fortificação de suas fronteiras — Belém, Gurupá, Manaus, Santarém, Almeirim, Óbidos, Tabatinga, São Gabriel da Cachoeira, Guaporé, Macapá e outros —, a integração à economia nacional somente veio a ocorrer no século XIX, com o Ciclo da Borracha (1870-1912), quando aproximadamente 300 mil nordestinos migraram para seus seringais. Mas a cultura amazônida do caboclo já estava dada.

Além do preconceito étnico, há um viés de intolerância religiosa muito forte na fala de Bolsonaro, porque o caboclo é uma “entidade” do sincretismo religioso entre africanos e índios. Nas religiões ou seitas afro-brasileiras, é a designação genérica dos espíritos de ancestrais indígenas brasileiros que supostamente surgem nas cerimônias rituais e que foram idealizados, já no século XX, segundo os modelos de orixás da teogonia jeje-nagô e do indianismo literário romântico. Na Umbanda, são guerreiros enérgicos, procurados pelos conselhos sensatos e passes poderosos. Bolsonaro mexeu com Ubirajara, Tupiara, Cobra Coral, Pena Branca, Sete Flechas, Águia Dourada, Sete Espadas, Espada Flamejante, Sete Lanças, Tabajara, Tamoio, Sete Ondas, Sete Matas, Caboclo Pantera Negra, Tupuruplata, Rompe-Mato, Caboclo Apeiara, Araribóia, Rompe-Ferro, Pena Vermelha, Beira Mar, Caiçara e Sete Caminhos.

Discurso de caçamba de caminhão

Jair Bolsonaro abriu os debates da Assembleia Geral da ONU com um discurso de vereador em caçamba de caminhão. Defensivo, com momentos de delírio, viu-se “vítima de uma das mais brutais campanhas de desinformação sobre a Amazônia e o Pantanal”.

Faz tempo, quando um oficial brasileiro perguntou ao general americano Vernon Walters quais eram os interesses dos Estados Unidos na Amazônia, ele respondeu: “A Amazônia é de vocês, cuidem dela”. Walters conhecia o Brasil como poucos, chegou a percorrer de carro a Rodovia Belém-Brasília.

As imagens de satélites e as fotografias da floresta mostram que não se está cuidando direito da Amazônia. Bolsonaro, contudo, estava na sua realidade paralela. Falou mal dos outros, bem de si, de seu governo e reclamou do preço da cloroquina. 

A retórica dos agrotrogloditas encurralou Bolsonaro, e hoje o setor moderno do agronegócio faz o possível para se afastar dele. Afinal, já houve épocas em que o governo brasileiro viu-se em posições canhestras no cenário internacional, mas D. Pedro II nunca saiu pela Europa defendendo a escravidão. Astuto, enquanto pôde, fechou o acesso dos estrangeiros à navegação na Amazônia. Fez muito bem, pois alguns burocratas americanos pensaram na possibilidade de mandar para lá seus negros. Esse foi um tempo em que o andar de cima nacional mamava no atraso, mas fingia que era inglês. Pela primeira vez, desde a chegada das caravelas portuguesas, o governo brasileiro está orgulhosamente apenso à agenda do atraso.


A fala de Bolsonaro foi antecedida por um pronunciamento do ministro-general Augusto Heleno que denunciou “nações, entidades e personalidades estrangeiras” com um “interesse oculto mas evidente” de “derrubar o governo Bolsonaro”.

A retórica defensiva de Bolsonaro para a ONU e a denúncia de Heleno indicam que houve uma mudança de ares no Planalto. Em maio, o capitão via-se desafiado pelo Judiciário e dizia “vou intervir”. Como e onde, nunca se soube, mas, na mesma linha, o general havia condenado uma iniciativa que “poderá ter consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”. No “vou intervir” estava implícita a ideia de que Bolsonaro dispunha de uma retaguarda, mas ela lhe faltou, e as “consequências imprevisíveis” ficaram momentaneamente no campo da fantasia. Naqueles dias os mortos pela Covid eram 18 mil. Hoje são mais de 130 mil.

Ao contrário do que pensam o general Heleno e almas inquietas do Planalto, não há ninguém querendo “derrubar o governo Bolsonaro”. O presidente tem contas a ajustar com o Judiciário por coisas que aconteceram antes de sua investidura e, ainda assim, seria exagero acreditar que desemboquem num impedimento. O verdadeiro jogo está na busca obsessiva pela reeleição, e nisso pouco influirão “nações, entidades e personalidades estrangeiras”. Tudo dependerá do desempenho do governo. Bolsonaro viu esse risco nos primeiros momentos da pandemia. Em março ele dizia: “Se a economia afundar, afunda o Brasil. E qual o interesse dessas lideranças políticas? Se acabar a economia, acaba qualquer governo. Acaba o meu governo. É uma luta de poder”.

Luta-se pelo poder. Em maio, no ataque. Em setembro, na defesa.