quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Mendacidade na ONU

Como se estivesse em uma de suas corriqueiras “lives” nas redes sociais, nas quais fala o que lhe dá na telha e dá livre curso às mais delirantes teorias conspirativas, o presidente Jair Bolsonaro usou os holofotes da abertura da Assembleia-Geral da ONU para reiterar suas irresponsáveis imposturas acerca de graves temas.

A vergonha só não foi maior porque depois de Bolsonaro quem discursou foi seu guia, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que estava mais afiado do que nunca – entre outras barbaridades, ele defendeu que a ONU responsabilize a China pela pandemia.


Como sempre colocando seus estreitos objetivos eleitoreiros acima dos interesses do País, Bolsonaro começou seu discurso reiterando pela enésima vez a farsa segundo a qual, “por decisão judicial”, todas as medidas de isolamento para combater a pandemia de covid-19 “foram delegadas a cada um dos 27 governadores das unidades da Federação”. Todos sabem, contudo, que não houve nenhuma decisão judicial com esse teor.

Há tempos o Supremo Tribunal Federal (STF) esclareceu que, conforme o princípio federativo expresso na Constituição, o governo federal não podia anular unilateralmente decisões de governos estaduais e municipais para combater a pandemia, como pretendia Bolsonaro, mas isso não o eximiu de cumprir as responsabilidades próprias da União.

Sem nenhum compromisso com os fatos, contudo, o presidente Bolsonaro reafirmou a patranha segundo a qual seu governo foi dispensado judicialmente de responsabilidade sobre a múltipla tragédia. Acrescentou, como se isso não bastasse, que grande parte da crise foi causada pela imprensa, que “politizou o vírus, disseminando o pânico entre a população”. “Sob o lema ‘fique em casa’ e ‘a economia a gente vê depois’, quase trouxeram o caos ao país”, acrescentou o presidente, repetindo para uma audiência internacional o discurso falaz que costuma fazer em seus rompantes mitingueiros.

E tudo isso resume apenas os cinco primeiros parágrafos do pronunciamento, obviamente destinado não a mudar a imagem do Brasil, visto hoje como pária em muitos círculos internacionais, mas sim a reafirmar aos bolsonaristas fanáticos a disposição do presidente de continuar a ser o Bolsonaro de sempre.

Assim, Bolsonaro pintou na ONU o quadro de um Brasil glorioso, que “alimenta o mundo” e que avança a despeito dos muitos inimigos – nunca nomeados e desde sempre interessados apenas em obstar o sucesso do País. O Brasil, disse Bolsonaro, “desponta como o maior produtor mundial de alimentos” e, por isso, segundo seu raciocínio, “há tanto interesse em propagar desinformações sobre nosso meio ambiente”.

“Somos vítimas de uma das mais brutais campanhas de desinformação sobre a Amazônia e o Pantanal”, disse Bolsonaro, negando o que todos são capazes de ver, isto é, o aumento substancial da destruição daqueles biomas sob seu governo – que sustenta um discurso irresponsável de desenvolvimento baseado no relaxamento da legislação ambiental.

“A Amazônia brasileira é sabidamente riquíssima. Isso explica o apoio de instituições internacionais a essa campanha escorada em interesses escusos que se unem a associações brasileiras, aproveitadoras e impatrióticas, com o objetivo de prejudicar o governo e o próprio Brasil”, declarou Bolsonaro. Na mesma linha da conspiração, em audiência no STF acerca da questão ambiental, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, havia dito que “não podemos admitir e incentivar que nações, entidades e personalidades estrangeiras, sem passado que lhes dê autoridade moral para nos criticar, tenham sucesso em seu objetivo, obviamente oculto, mas evidente, que é prejudicar o Brasil e derrubar o governo Bolsonaro”.

Assim, os próceres do governo Bolsonaro não se envergonham de levar às mais altas tribunas as teses mais doidivanas acerca de temas de enorme relevância para o Brasil e o mundo, apostando na confusão. Debalde: como mostra a crescente fuga de investidores estrangeiros, cada vez menos gente cai nessa conversa, que só prejudica a nação brasileira.

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