domingo, 25 de agosto de 2024

Pensamento do Dia

 


A história humana

Há momentos da história mundial que são singelos, mesmo quando a violência grassa, no fortalecimento da identidade do homem no que ele tem de melhor, na força da determinação e do bem-querer, contra tudo e contra todos, no desafio ao incabível e ao autoritário.

Às vezes, o artista supera o teórico. Três filmes simbolizam a força do que há de ser. Em Spartacus, de Kubrick, Kirk Douglas morre na cruz ao olhar para o seu filho, na injúria dos crucificados da Via Ápia pelo ideal da igualdade que tanto havia propagado a Lei Romana. Em Gladiator, de Ridley Scott, com Russell Crowe, o homem morre por seus ideais, ditando à beira da morte a receita para a sequência digna de Roma, o que não decorreu. Em “O resgate do soldado Ryan”, de Spielberg, a tentativa obstinada e bem sucedida do esforço supra humano pelo simbólico, em uma mensagem de bem-querer de muitos para poucos, para as futuras gerações.

Na “A insustentável leveza do ser” de Kundera, o homem se alterna nas dificuldades e esperança do ser.

Os pensadores sociais tinham sonhos para todos nós. Adam Smith achava que a ação individual levaria à prosperidade social, o que não ocorreu. Marx achava que iríamos para o paraíso socialista, o que não ocorreu. O positivismo e funcionalismo francês, com Comte e Durkheim, prescreviam o aprimoramento das sociedades, o que não ocorreu. Onde estamos? Na beira do abismo, com a indeterminação do amanhã.

Este é um choro humanista, no melhor de Proust, Montesquieu, Dostoievski e Tolstoi, para aqueles que mesmo sacrificaram a vida em prol de algo quem sabe por acontecer.

Os incêndios previnem-se, porque está difícil combatê-los

Podemos passar horas e dias a discutir se foi fogo posto ou provocado por causas naturais, se os meios de combate aéreo foram acionados a tempo ou se a estratégia para conter as chamas não foi a mais adequada e até discorrer, longamente, sobre a necessidade de os responsáveis políticos, do País ou da região, se deslocarem ao local do sinistro, como se fossem chefes militares num campo de batalha.

Podemos fazer isso, mas temos de ter a certeza de que nenhum desses pontos de discussão terá consequências em relação aos incêndios florestais se continuarmos a pensar que o foco tem de estar no combate e não na prevenção.

Os incêndios florestais não ocorrem apenas por desleixo ou por falta de meios, como sugerem tantos debates intermináveis. Eles existem porque, em primeiro lugar, são naturais e até necessários para a regeneração das florestas. E ocorrem por influência de fatores climáticos, que determinam as características do combustível a longo prazo, e em consequência das condições meteorológicas, que afetam o comportamento do fogo a curto prazo. Dias de calor extremo, com vento, são mais propícios à deflagração de grandes incêndios, especialmente quando, ao longo dos últimos anos, se foi acumulando combustível nas matas e florestas, e se multiplicaram os meses com tempo quente e seco.


Não é preciso ter dotes de adivinho para perceber que há um cada vez maior risco de incêndio, especialmente nas regiões mais vulneráveis à sua ocorrência. Um estudo científico recente, publicado na Nature Ecology & Evolution, não deixa grande margem para dúvidas numa das suas conclusões: o ano mais quente jamais registado, o de 2023, foi também o mais extremo em termos de incêndios florestais. Tudo em consequência de um clima mais quente e seco, que fez soar os alarmes em várias latitudes: tanto nos países pobres como nos mais ricos e poderosos. Como, por aquilo que se tem observado, este 2024 caminha para ser considerado ainda mais quente do que o ano anterior, ninguém pode admirar-se com a ocorrência de mais e mais incêndios florestais.

Na Madeira, um incêndio como o que atingiu o território nos últimos dias já não pode ser considerado um fenómeno anormal nem sequer absolutamente excecional. Nos últimos 14 anos, segundo os registos mais fiáveis, a ilha foi afetada por, pelo menos, quatro grandes incêndios (nos anos de 2010, 2012, 2016 e agora o de 2024), que deixaram uma área ardida, de floresta e de mato, claramente superior aos dos outros anos “normais” do mesmo período.

Uma publicação oficial do Observatório Clima Madeira, com a chancela da Secretaria Regional da Agricultura, Pescas e Ambiente, é absolutamente clara e definitiva acerca da ameaça que paira sobre a ilha. Vale a pena reproduzir o primeiro parágrafo do capítulo dedicado às florestas: “O principal risco para a floresta na Região Autónoma da Madeira são os incêndios florestais que, nos últimos anos, têm atingido proporções catastróficas. O histórico recente é tão preocupante que, mesmo num cenário onde a vulnerabilidade futura não aumentasse, a necessidade de adotar medidas para a redução dos incêndios florestais continuaria a ser urgente, já que representam elevados danos.”

O mesmo documento sublinha ainda que o risco de incêndio é potenciado, no caso da Madeira, não só pela persistência de altas temperaturas e de ventos fortes, mas também pelas condições estruturais das áreas florestais, em particular, o declive do terreno.

“Tanto a floresta Laurissilva como a floresta plantada encontram-se em áreas de acentuados declives, o que favorece a propagação do fogo, dificultando o seu combate”, lê-se ainda na mesma publicação.

A experiência recente de incêndios nos EUA, no Canadá e na Austrália, todos países do G20, demonstra que os grandes incêndios são quase impossíveis de ser controlados – mesmo quando se têm dezenas de aviões ao serviço e os bombeiros mais bem treinados. Por isso, é cada vez mais importante apostar na prevenção, na identificação dos sinais de alarme e, em último caso, na eficácia dos serviços de proteção civil para evitar vítimas mortais ou grandes prejuízos materiais. É na ótica da preparação e da prevenção que o debate sobre os incêndios precisa de ser centrado. Até porque, não tenhamos dúvidas, há sempre um dia em que as florestas acabam por arder. Temos é de estar preparados para evitar que o incêndio fique incontrolável.
Rui Tavares Guedes

Não é natural. É método

Ao longo do tempo, sempre tivemos candidatos que procuravam se destacar usando apelidos estranhos, adotando nomes de personagens de história em quadrinhos ou slogans peculiares. Um dos exemplos mais recentes é do deputado federal Tiririca, eleito sucessivamente para três mandatos desde 2010. Na ocasião, criou o bordão "Vote no Tiririca. Pior do que tá não fica", tendo a maior votação do país, com mais de 1,65 milhão de votos.

Também houve as chamadas candidaturas de protesto, como a do rinoceronte Cacareco, que obteve 100 mil votos para a Câmara de Vereadores de São Paulo em 1959, ou a do Macaco Tião, lançado pela turma do Casseta & Planeta como candidato à Prefeitura do Rio de Janeiro em 1988, alcançando cerca de 400 mil votos. É importante registrar que só foi possível saber o total de votos desses mamíferos porque o eleitor escrevia o nome de seu candidato na cédula de papel.

Em 2008, tivemos uma mudança importante, que foi a utilização eficaz das redes sociais como instrumento de mobilização e adesão que marcou a vitória de Barack Obama. Seu exemplo passou a ser seguido, com maior ou menor competência, em diversos países. Porém, a mudança mais impactante tem seu marco inicial no ano de 2016. Primeiramente, pelos grupos e partidos que defendiam a saída do Reino Unido da União Europeia. E, logo em seguida, na campanha presidencial de Donald Trump.

Nesses dois exemplos, os estrategistas foram os primeiros a perceber que os algoritmos das redes sociais são baseados na cultura do engajamento e não da intermediação — ou seja, valem mais as publicações que têm maior número de curtidas e compartilhamentos. Também souberam combinar diferentes formas de comunicação, explorando as emoções negativas de pessoas e grupos, além de mostrar seu lado festivo e libertário por meio do escárnio.

E, não menos importante, a compreensão de que, a partir da ação em massa nas redes sociais, a política deixa de ser centrípeta para ser centrífuga, substituindo a lógica direita x esquerda pela lógica povo x elites, trabalhando os extremos a partir da revolta e da frustração latentes nas sociedades.

Essa lógica prevaleceu nas disputas eleitorais em diversos países, inclusive no Brasil, mas, nos últimos dois anos, surgiram algumas novidades. Há oito dias, começou a campanha eleitoral em que serão definidos os futuros prefeitos e prefeitas de 5.569 municípios, além de quase 60 mil vereadores.

O presidente eleito em 2018 fez e faz a alegria de seus milhões de seguidores ao adotar o estilo agressivo, popularesco, sem erudição, desprezando as convenções. Porém, após deixar o cargo em 2023, pressionado pela decisão judicial que o tornou inelegível e com a sombra de uma possível prisão, foi obrigado a mitigar esse comportamento.

Só que o gênio saiu da garrafa e aquilo que poderia ser considerado um comportamento naturalmente tosco passou a ser uma estratégia. Pode-se afirmar que a "tosquice" tornou-se um método estudado. No ano passado, Javier Milei foi seu maior representante no nosso continente com sua famosa motosserra.

Agredir adversários, se apresentar como antissistema e não se incomodar em divulgar mentiras é o novo normal para esse perfil de candidaturas. É o caso de um candidato à prefeitura de São Paulo cuja participação nos debates tem sido marcada pelo desrespeito às regras e pela falta de compostura. Tudo absolutamente estudado de modo a fazer as edições nos vídeos que gerem conteúdo para suas redes sociais que obtiveram um nível de engajamento tão gigantesco quanto entusiasmado.

Posto isso, a pergunta que precisa ser feita é: como há tanta gente que defende, segue e admira tal comportamento? É possível enfrentar esse movimento? Bem, nesta terça-feira, tivemos a oportunidade de ver como lideranças relevantes conseguem apontar caminhos. Refiro-me ao casal Obama, que, em seus discursos na convenção nacional do Partido Democrata, conseguiu pontuar as fragilidades de Trump ao mesmo tempo em que resgatou os valores dos chamados pais fundadores, indicando para os militantes como devem se conduzir para conseguir levar Kamala Harris à presidência. A própria Kamala tem seguido uma linha de ironizar o adversário, criando apelidos que têm deixado os trumpistas sem resposta.

Entretanto, estamos longe de superar essa situação. O ressentimento contra a política e os políticos, a concentração de renda e as mudanças tecnológicas que eliminam empregos compõem um caldo de cultura fértil para esse tipo de liderança desagregadora que solapa a democracia. O desafio é enorme e não se pode minimizar o risco.

A pipa da TV não sobe mais?

Eis que a vontade de matar a televisão aberta veio quase instantaneamente nos comentários sobre a morte de Silvio Santos. Do presidente Lula a Pedro Bial, passando por várias pessoas do ramo das influências nas redes sociais. O presidente Lula disse que este acontecimento “marca o fim de uma era na comunicação do país”. Pedro Bial sentenciou: “ele sai de cena num momento em que aquele meio de comunicação que ele inventou, que ele criou, ele não se reconhece mais na modernidade. Hoje estamos vivendo um outro momento e ele tem o ‘timing’ perfeito de sair de cena e deixar esse legado para que nós sigamos adiante”.


Essas duas falas são muito importantes e merecem o destaque. Como pessoas que pesquisam o setor das comunicações, perguntamos: o que Lula chama de “era na comunicação” mesmo? Quem somos o “nós” cujo lugar genuíno é seguir adiante a que se refere o apresentador e produtor de presença diária na TV aberta e nas plataformas da emissora concorrente? Fazemos essas perguntas, que entendemos necessárias, porque Lula e Bial não são as milhares de pessoas enlutadas, que usam seus celulares para ver TV ao meio-dia no intervalo do trabalho ou se sentam à frente dela nos parcos horários livres, e que tinham o Silvio Santos quase que como um integrante da família. Lula é, pela terceira vez, o presidente do país. Tem, portanto, responsabilidades quando o assunto é serviço público. Não devemos esquecer, é assim que a Constituição de 1988 define as comunicações. Bial, além de autor da biografia mais chapa branca do seu patrão, Roberto Marinho, é “a” imagem do homem branco, culto, urbano, um típico representante da sociedade lebloner-faria limer. Tem, portanto, lugar de fala muito claro, identidade facilmente atribuível.

Antes que as respostas aos questionamentos aqui feitos não surjam de lugar nenhum, queremos também dar alguns pitacos sobre uma tal “era na comunicação”. Primeiro, mais do que um apresentador, Silvio Santos era um empresário da radiodifusão. Não qualquer empresário, mas um que, por sua trajetória de articulações políticas e econômicas, expressa bem a histórica relação promíscua entre Estado e comunicações.

Vejamos…

Em 1975, durante a Ditadura Militar, Silvio Santos obteve a concessão para um canal de televisão no Rio de Janeiro, constituindo, assim, a TVS. Vale lembrar que, naquele momento, ele também já detinha 50% das ações da TV Record de São Paulo. Além disso, enquanto já controlava totalmente uma emissora de TV e metade de outra, Silvio Santos mantinha o seu “Programa Sílvio Santos” nas TVs Record e Tupi, em São Paulo, e na TV Tupi do Rio de Janeiro, por meio de aluguel da grade de programação, uma prática que é ilegal.

Anos depois, em 1980, ainda durante a Ditadura, Silvio Santos obteve as concessões da Tupi (São Paulo), TV Continental (Rio de Janeiro), TV Piratini (Porto Alegre), TV Marajoara (Belém). Ou seja, ainda antes do país reconquistar a democracia, Silvio Santos já estava consolidado como um dos principais radiodifusores do Brasil.

À época, o Sindicato dos Radialistas de São Paulo, em nota publicada no Jornal do Brasil, fez uma forte crítica: “a rigor, um dos dois ganhadores [das concessões] nem deveria estar participando da licitação, porque era impedido por lei. Mas o Sr. Sílvio Santos burlou a lei e entrou na concorrência com testas de ferro”. O questionamento do sindicato foi ao fato da legislação então vigente proibir que um proprietário tivesse duas concessões em um mesmo estado. Como descrito pela pesquisa Monitoramento da Propriedade da Mídia (MOM-Brasil), “de fato, em termos formais, Sílvio Santos não aparecia entre os proprietários da sociedade, e sim sua cunhada, Carmen Torres Abravanel, além de outras pessoas vinculadas às demais empresas de Sílvio e do filho do empresário Paulo Machado de Carvalho, Carlos Marcelino Machado de Carvalho”.

Feito esse breve histórico, que poderia aqui ser estendido por linhas e linhas, voltamos à pergunta: o que Lula e Bial querem dizer com “fim de uma era na comunicação”?

Estamos em 2024 e, em verdade, a “era” que possibilitou a ascensão de Silvio Santos como radiodifusor se mantém. Um mito é mais importante pelo que ele esconde do que pelo que ele revela. É muito interessante observar o que se descortina de continuidade para uma pretensa morte do modelo de radiodifusão nacional massiva forjado na ditadura civil-militar.

Vejamos…

Se o assunto for concentração da propriedade na radiodifusão, um indício da permanência desta tal “era” é a sanção, justamente pelo presidente Lula, da Lei 14.812/24, em 15 de janeiro deste ano. Foi essa lei que ampliou os limites de concessões de rádio e TV por grupo. No caso das rádios, de seis para 20 (independente da modalidade de frequência). No caso das emissoras de televisão, de dez para 20. Vai-se Silvio Santos, que conseguiu emplacar seu genro, Fábio Faria, como Ministro das Comunicações do governo Bolsonaro. Ficam os interesses do grupo a que se filia Pedro Bial, a Globo, em discutir apenas regulação das plataformas de Internet, como o que há de novo para que “nós” sigamos adiante não tão distantes dos interesses das gigantes corporações internacionais, cada vez mais enfronhadas na exclusão social.

Se o assunto for a prática de atos ilegais, o controle de propriedade de radiodifusão por políticos com mandato eletivo, em flagrante desrespeito ao artigo 54 da Constituição de 1988, apenas cresce eleição após eleição. Cerca de 1/3 do Congresso Nacional é formado por pessoas com vínculos com emissoras de TV, assim como cerca de 1/3 das outorgas de rádio e TV no Brasil têm vínculos com lideranças políticas locais, regionais ou nacionais. As eleições municipais, que estarão na pauta dos próximos meses, são sempre “eleições de rádio” no interior e “da TV” nas capitais. Aliás, para sermos justos, Silvio Santos foi-se sem jamais ter conseguido ser candidato. Já para prefeito em 2024 ficam Datena, da Band em São Paulo; Jorge Wilson Xerife do Consumidor, da RecordTV em Guarulhos-SP; Paulo Martins, da Rede Massa, e Cristina Graeml, da Gazeta do Povo, em Curitiba; Alvaro Damião, da TV Alterosa, em Belo Horizonte; Jefferson Lima da TV Grão Pará, em Belém; Airton José e Ricardinho, da Rede Massa, em Foz do Iguaçu; Fernando Veloso, da TV Correio, e Matheus Ribeiro, da Record em Goiânia, e mais centenas de outras pessoas candidatas vinculadas ao rádio e à TV.

Se o assunto for o alinhamento dos proprietários de mídia ao que há de mais nefasto para a democracia brasileira, como fez Silvio Santos com o uso propagandista do SBT para a defesa da reforma da previdência de Bolsonaro, não faltam exemplos do compromisso político e econômico da mídia privado-comercial com a retirada de direitos trabalhistas. Vai-se Silvio Santos, ficam a Rede Massa, a Rede TV, a Jovem Pan.

Se o assunto for a naturalização da televisão e do rádio como palanque para a difusão de discursos racistas, misóginos e sexistas, como sempre fez Silvio Santos em seus programas dominicais, precisamos olhar o que se diz, o que se fala, o que dança, canta e representa na hora do almoço, nos fins de tarde, nos shows noturnos, nos realities, nos talk shows, nas novelas, nas canções populares, no cinema. O apelo popular, a Comunicação do Grotesco, tão bem compreendida por Muniz Sodré em 1973, quando Silvio Santos era ainda um jovem galã, há 51 anos, sempre causou grande aversão nas “pessoas da sala de jantar”, como cantariam os Mutantes em Panis et Circenses. O caricato, que se presta ao riso, bizarro, foi rapidamente associado ao brega e aos pobres. Se Odair José não podia cantar com Caetano Veloso por ser o cantor das empregadas domésticas, Silvio Santos também não podia ser levado a sério como empresário de comunicação. Roberto Marinho, do grupo Globo, e os Saad, da Band, cumpriam melhor esse papel.

Na morte de Silvio Santos, logo depois de passarmos pela Revolução do Baixo Clero que foi o golpe de 2016, e dos quatro anos de desmandos de um Tiozão do WhatsApp na presidência, é compreensível o desejo da morte de um padrão que rapidamente associamos à falta de modos, decência talvez. Mas essa associação esconde um traço muito importante do desejo de morte à televisão. Há uma armadilha: o ódio aos pobres. Silvio Santos sabia muito bem comunicar-se com os pobres. Assim como sabia também ser servil aos ricos para a conivência com os seus interesses econômicos. Mas o SBT não tinha uma rede constituída de senadores e deputados federais como afiliados, não foi a figura central no combate à democratização da comunicação, bem como, um olhar mais cuidadoso à programação, verá pontos importantes de inclusão social na história da sua programação. Enquanto Chacrinha, na Globo, cantava “olha a cabeleira do Zezé”, terminando com uma exaltação à violência física, “corta o cabelo dele! Corta o cabelo dele!”, o Concurso de Transformistas invadia a sala das famílias com cor, brilhos e alguma representatividade. Podemos dizer o mesmo sobre as “colegas de auditório”, mulheres pobres que se sentiam representadas naquelas brincadeiras das tardes de domingo e não nas empregadas domésticas com uniforme branco dando conta de todas as vontades das Helenas do Leblon de Manoel Carlos.

Não se trata aqui de “passar pano” para a criatura que expunha crianças à sexualização precoce tanto quanto Raul Gil, também da grade do SBT. Trata-se de perceber que há um incômodo seletivo no rápido asco a Silvio Santos, assim como à TV aberta em geral, que está entranhado no asco aos pobres e ao que é popular. Daí confundir o repúdio ao discurso de ódio com o ódio à televisão e ao rádio. A precarização da TV aberta em todo o mundo tornou o discurso de ódio uma ferramenta imprescindível para a sua sobrevivência. O que havia de mídia estatal no mundo foi minguando e, por outro lado, o financiamento por publicidade se mostrou inviável nos contextos locais. O que sustenta uma TV aberta ou uma rádio em pequenas cidades? O minguado comércio local? Não! O dinheiro da política, essencialmente. Se o discurso de ódio midiático tem berço nos traços socioeconômicos hereditários da formação da nossa sociedade, não podemos deixar de mencionar que os mesmos senhores que são donos de terras no Brasil, são também donos de mídia. Vai-se o Silvio Santos, ficam as outorgas e todas as outras posses de gente que um dia foi dona de gente e de gente que costuma achar que muita gente não é gente.

Se o assunto for visibilidade, sempre vêm à tona dados de audiência que dizem que temos mais celulares que TV, que as novas gerações não consomem televisão e rádio, que esta mídia de massa, assim como Silvio Santos, “não se reconhece mais na modernidade”. Calma, Calabreso!!!!

A audiência e o financiamento do Big Brother Brasil não são suficientes para pensarmos em como os índices de TV aberta e rádio, nacional, local e regional são subregistrados e invisibilizados. Mas o que há de racional em creditar à Internet as figuras televisivas assumindo cargos proeminentes e à extrema direita em todo o mundo? Bolsonaro e Milei se fizeram personas “polêmicas, diferentes de tudo o que está aí, defensores dos homens de bem” como personagens e comentaristas em shows populares. Trump, Zelensky, Duterte, Jimmy Morales chegaram ao centro do poder principalmente a partir da visibilidade da TV aberta como plataforma. Não das redes sociais. As TVs locais se tornaram economicamente frágeis pelo abandono do Estado e também das classes médias que migraram alegremente para os competidores internacionais. Rádio e TV se tornaram plataformas políticas baratas e livres de barreiras. Em simultaneidade, as grandes plataformas digitais, de Youtube aos vídeos dos grupos de família no WhatsApp, têm funcionado em grande medida como retransmissoras de TV. Mas sem outorgas nem escrutínio público. O Estado abriu mão da comunicação pública e gratuita enquanto o discurso fascista como mecanismo de falseamento da representação tem sido a principal forma de sustento do rádio e da televisão mundo afora. Façamos um exercício: olhe o que ouve o taxista ou motorista de Uber; ao passar por uma portaria, dê uma olhadinha em qual canal está a TV na frente do porteiro; chegue para os seus filhos que não assistem TV e pergunte se eles sabem quem é o Xaropinho. Vai-se Silvio Santos, ficam os memes, áudios, vídeo-denúncias… tudo TV aberta distribuída em plataformas sem regulação, sem responsabilidade social ou direcionamentos de incentivo. Mas, ainda, comunicação social.

Mas e se o assunto for regulação? E se tanto Lula quanto Bial se referirem ao fim da noção de comunicação como um serviço público essencial à democracia? Morre o Silvio Santos, que tantos favores prestou ao sistema político, mas não está morto o troca-troca de favores clientelistas que une sistema político e sistema midiático no país. E se morrem também as parcas e nunca reguladas premissas do capítulo de comunicação da Constituição Federal? A capilaridade e a estrutura das emissoras de rádio e TV espalhadas por todo o país, bem como toda a expertise na produção de conteúdos audiovisuais, com muitos ou com parcos recursos, permite que tenhamos em mãos um instrumento muito poderoso de combate à desinformação e de avanço social.

Recentemente, na UFRJ, tivemos a defesa da primeira dissertação de estudante indígena no Programa de Pós-Graduação em Comunicação. E o tema? Rede de Radiofonia Indígena e a importância da radiofonia para a existência (e resistência) dos povos durante a pandemia na região do Rio Negro-AM. Sabemos, por tantas notícias, dos esforços de Elon Musk para espalhar a comunicação privada da Starlink como rede central de comunicação em todo o Brasil. No caso da Amazônia, sabemos também quem são os parceiros dele nessa empreitada. Gente que mata gente. De novo: gente que se esforça por animalizar muita gente. Vimos, há pouco tempo, no RS, os velhos radinhos de pilha e a rede pública da EBC sendo rota de emergência para saída de uma das maiores crises climáticas que tivemos notícia. Um lindo trabalho da Secretaria de Comunicação e da rede de emissoras de rádio. É esta era que se vai com Silvio Santos? E o que fica? Fica um Ministério das Comunicações fraco, vexatório e entregue ao jogo político enquanto o esforço do que temos de mais programático, capacitado e democrático fica concentrado na frágil figura institucional de uma secretaria vinculada à presidência. Precisamos de política pública coesa e socialmente orientada, precisamos de ministério, não da gambiarra do status de ministério sem ser ministério.

Na verdade, a “era” que Lula, Bial e tantos outros profetas do futuro sem TV dizem ter fim com a morte de Silvio Santos, parece uma figura mitológica que se quer imortal, mas se finge de morta. A regulação principal do sistema de rádio e televisão brasileira ainda é uma Lei de 1962! O capítulo de Comunicação da Constituição de 1988 ainda aguarda. Esta era só poderia (ou ainda poderá?) ter fim com a regulação democrática dos meios de comunicação, garantindo um ambiente comunicacional sem controle oligopólico, sem dinastias, e nos apropriando da imensa estrutura e conhecimento que já temos para serviço da sociedade, com diversidade e pluralismo. Não temos que matar a TV, temos que resgatar suas funções sociais genuínas e cantarmos, a la SS, “TV aberta, é coisa nossa. E o rádio todo, é coisa nossa!”