sábado, 1 de maio de 2021

Brasil do trabalho


 

A cultura do cancelamento e os novos guetos sectários

Qualquer pessoa que, por estes dias, tenha uma voz pública na área social ou política já está habituada às barricadas intransponíveis que se ergueram nos últimos anos. Ou se está de um lado ou se está do outro, e quem não está connosco está com o inimigo. O fenómeno não é novo e não é só nosso, mas desde o início dos anos 80 que o País não vivia tamanho sectarismo. É apenas mais um dano colateral das redes sociais como sala de estar do mundo: o triste resultado das bolhas alavancadas por algoritmos, que nos mostram apenas versões – amigos e conteúdos –, e cada vez mais polarizadas do que são as nossas visões do mundo.

Cada trincheira tem os seus códigos de apresentação ou de linguagem e inúmeras linhas vermelhas (ou encarnadas, conforme a trincheira) consideradas intransponíveis. Uma vez ultrapassadas, é o caminho sem retorno. A pessoa é dada como perdida para as forças do mal do lado oposto.


Impôs-se cada vez mais a cultura do cancelamento – palavra do ano em 2019, para o dicionário Macquarie. É o pão nosso de cada dia nas redes sociais a prática de retirar o apoio (ou de cancelar) figuras públicas ou empresas após terem feito ou dito algo considerado questionável ou ofensivo para um determinado grupo. À primeira toada divergente, é a debandada geral em manada. Tanto maior quanto mais radicalizada for essa figura: pelo ferro se mata, pelo ferro se morre.

Antigamente, era preciso coragem para se ser radical. Hoje, neste caldo em que cresce a intolerância, tornou-se um exercício de imensa coragem ser-se moderado. Ousar saltar barricadas e falar com o “inimigo”. Cometer o arrojo de o ouvir e, imagine-se, tentar perceber o que o move. E optar por não se radicalizar nas tomadas de posição, tentando ver os vários lados da mesma questão, sendo certo que isso gera menos “buzz”, menos seguidores e menos likes. A moderação é um estado de alma e um modo de estar na vida cada vez mais em desuso, e isso diz muito sobre o tipo de sociedade em que nos transformámos.

Há vários tipos de sectaristas: 1. Alguns protofascistas emergentes, que veem um perigoso marxista em qualquer pessoa que defenda valores humanistas ou democráticos; 2. Certa extrema-esquerda, que se eleva no altar da sua superioridade moral e que vê facínoras capitalistas em todos os que não alinham pela sua bitola de valores e pelo dirigismo estatal da sociedade; 3. Vários ativistas radicalizados – sejam feministas, antirracistas, LGBTQIA+, ambientalistas ou negacionistas – que ostracizam quem não é igualmente ativo na defesa das suas causas. Os sectaristas podem, claro, misturar-se, adensando a atitude proselitista. E estão por todo o lado, como uma praga de gafanhotos a tomar conta da paisagem.

Os alvos da semana dos sectários de serviço foram Sérgio Sousa Pinto, da ala centro do PS, que ousou aceitar entrar numa mesa-redonda com várias figuras – Helena Matos, Francisco José Viegas e Pedro Boucherie Mendes –, organizada no âmbito da convenção do Movimento Europa e Liberdade, que visa alargar a discussão entre as direitas, e em que falará, de seguida, André Ventura. Levantou-se a esquerda em choque: como é possível “legitimar o branqueamento democrático” do Chega? Fogueira com Sérgio Sousa Pinto, que já tinha sido atacado no passado por ter assinado um manifesto contra a obrigatoriedade da disciplina de cidadania nas escolas. Qual é o crime agora? O terrível delito de aceitar debater democraticamente.

Vilipendiado foi também um grupo de jovens twitteiros – João Maria Jonet, Leonor Rosas, Maria Castello Branco e Adriana Cardoso – de orientações políticas diferentes (social-democrata, bloco de esquerda e liberais), que se fotografaram juntos a descer a avenida no desfile do 25 de Abril. O nojo, o arrojo!, gritou uma horda de gente que não concebe que pessoas de partidos diferentes possam ser amigos e tão-pouco caminhar pelo mesmo passeio.

Assim vai o mundo. Eu, com amigos de absolutamente todas as alas do espetro político, umas semanas atacada nas caixas de comentários por ser uma perigosa trotskista e noutras por ser uma bafienta reacionária, acho tudo isto muito triste. E, pior, muito perigoso para a democracia. E, agora, cancelem-me!

Crônica de uma nação descentrada

No quadro das ameaças de colapso da personalidade e também no das catástrofes sociais, recuperar o “centro”, seja só o de si próprio, seja o de toda uma comunidade, costuma ser o movimento que impede a descida aos infernos e a anomia generalizada. Não se trata de programa tímido ou moderado, embora a moderação, sem deixar de ir à raiz das coisas, esteja presente como um dos seus elementos constitutivos.

Em geral, a urgência de um movimento desse tipo sucede à percepção de um risco cuja natureza é, acima de tudo, existencial: vemo-nos, como indivíduos ou como coletividade, diante de forças que escapam ao nosso controle, com potencial de destruição que só podemos antever recorrendo às distopias mais contundentemente imaginadas. Em situações assim, podemos tocar Orwell com as mãos.

Como sociedade nacional, entramos num túnel alucinante com a mais grave crise sanitária em pelo menos um século. Uma crise verdadeiramente global, como é da natureza do nosso tempo de humanidade (contraditoriamente) unificada, mas que afeta cada uma das sociedades de maneira particular e quase única, a depender de fatores variadíssimos, como a demografia, a capacidade econômica ou a própria organização política.

“Escolhemos” enfrentar o grande drama abrindo mão, quase inteiramente, de vantagens preciosas, como a coesão social, a vontade democraticamente orientada para fins de saúde pública e defesa econômica, a mobilização consciente dos recursos científicos de que o País tradicionalmente dispunha e, certamente, ainda dispõe. Este, afinal, é o país de Oswaldo Cruz, de Carlos Chagas e da plêiade de médicos e gestores que ergueram, na redemocratização, o Sistema Único de Saúde.

Por decisão própria – e para espanto dos muitos amigos do Brasil em todo o mundo que nos percebiam, às vezes ingenuamente, como uma das possibilidades mais interessantes de criação de um soft power não só em escala regional, mas global – nos encerramos, desde 2018, numa aventura em que cotidianamente se conjugam, em doses colossais, atraso, fanatismo e irracionalismo.

Para alguma tentativa de explicação será preciso talvez recorrer a mais do que ao cansaço com a experiência do petismo no poder. Para remediar tal cansaço existiam, e existem, remédios políticos adequados, como a crítica severa, a tenaz construção de alternativas, a proposição de projetos concorrentes, mas certamente não a convocação de alguns dos piores traços recessivos da nossa formação como povo e como Estado nacional.

Uma parte das elites econômicas pretendeu que valia a pena difundir massivamente a mensagem do liberalismo extremado, associando-o ao fundamentalismo ideológico e religioso.


Um liberalismo assim entendido dificilmente se poderia associar a qualquer ideia de “sociedade aberta”, como alguns chegaram a encenar, soletrando um Karl Popper aprendido de orelha. Como era previsível, antes daria origem a uma realidade atravessada por formações meramente reativas, entre elas a do “politicamente incorreto”, que sustenta ações e palavras particularmente cruéis em relação aos sujeitos socialmente “fracos”, negros, indígenas, mulheres. E, horror dos horrores, em relação aos mortos da pandemia, o que faz de nós um caso único de desprezo à vida e à dor humana no seu sentido mais elementar.

De fato, desequilibramo-nos, passamos a conviver com uma realidade anomalamente povoada de sociopatas. Individual e coletivamente, ao perder o “centro”, nos empobrecemos.

Difunde-se em falas e documentos oficiais uma noção amputada de liberdade, só pela qual, segundo alguns, valeria sacrificar a vida.

A liberdade que se proclama, com grau poucas vezes visto de irresponsabilidade, é aquela destituída de impedimentos de qualquer natureza, dando a cada indivíduo a possibilidade de se movimentar selvagemente entre outros indivíduos igualmente livres de freios e obrigações.

Exercer tal liberdade seria rebelar-se, quem sabe com armas na mão, contra as limitações que nós mesmos livremente nos damos, a exemplo das que são indicadas consensualmente há séculos em situações de pestes e epidemias.

Paradoxalmente, no entanto, a imposição de tal liberdade anárquica e prepotente não dispensa a mão pesada do Estado nem a difusão de bandos e milícias no corpo da sociedade civil.

O preço do “descentramento” e mesmo das excentricidades a que assistimos, bestificados, é de conhecimento geral: internamente, rompe-se o tecido social; externamente, poucas vezes a imagem do País terá descido a níveis tão baixos.

Em meio a ruína ainda maior que a nossa, intelectuais italianos de peso quiseram saber, antes da retomada da democracia no pós-guerra, se os 20 anos de fascismo teriam sido um “breve parêntese” ou, na verdade, a “autobiografia da nação”. Nós também logo acordaremos do pesadelo, mas por muito tempo não escaparemos de análogo exame da nossa História, tão marcada por “parênteses” autoritários, que, caso tornem a se repetir, terminarão por definir a fisionomia de uma nação recorrentemente enredada em terrores noturnos e medos infantis.

Vade-retro, malévola trindade

Deveria escrever sobre a polícia fluminense ter multiplicado o número de operações e pessoas mortas em favelas em 2021, apesar de proibidas pelo Supremo Tribunal Federal. Desde o início do ano, segundo a plataforma Fogo Cruzado, a Região Metropolitana do Rio registrou 1.415 tiroteios, que deixaram 305 mortos e 313 feridos. Em 454 ocorrências havia agentes do estado, 22 morreram, 27 foram feridos. Houve 21 chacinas, quando uma só situação deixa pelo menos três vítimas fatais. A Rede de Observatórios de Segurança contabilizou 257 operações policiais com 69 mortes no primeiro trimestre deste ano, respectivamente, 55% e 33% a mais que no mesmo período de 2020.

Pensei em festejar o tombamento do terreiro de Joãozinho da Gomeia, espaço de memória e resistência dos cultos afro-brasieiros, agora preservado, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, epicentro da intolerância religiosa no estado. Ou a transformação do 27 de março, data de nascimento do pai de santo mais famoso do Rio, no Dia Estadual de Conscientização contra o Racismo Religioso. Ou o plano de investimentos do presidente Joe Biden, que pretende apresentar aos EUA o Estado de bem-estar social estabelecido na Constituição brasileira, mas nunca inteiramente aplicado.


Precisei expressar pesar e raiva pela marca nefasta de 400 mil vítimas da Covid-19 e também da necropolítica de um governo assentado na incompetência, na mentira, na indiferença, na brutalidade. Um mês e meio atrás, quando a pandemia completou um ano e 270 mil óbitos, enumerei neste espaço a quantidade de pessoas de meu círculo de convivência que tinham perdido seus queridos. Foram-se o neto do Luiz Sacopã, o avô e o padrasto do Felipe, a avó e o tio da Daiene, o pai da Fabricia, a mãe e o pai do Stanley, o pai da Fernanda, o sobrinho e a irmã da Ana Claudia, a mãe da Rachel, o pai da Telma, o pai da Juliana, o pai da Thux. De lá para cá, morreram o Sandro, o avô da Gabriela, o pai da Lucia Helena, a prima da Rita, o Aloy, a Najá, o padrasto da Georgia, o pai da Raquel, o irmão do Caíque, a irmã da Charlene.

Não há uma família no Brasil que não tenha sido alcançada pela doença, pela morte ou pelos efeitos socioeconômicos perversos do enfrentamento precário à pandemia. Jair Bolsonaro e seu entorno minimizaram a gravidade da crise sanitária. Desprezaram o protocolo de prevenção, recomendaram medicamentos comprovadamente ineficazes, negligenciaram a compra de vacinas, são incapazes de administrar a escassez de imunizantes.

Não por acaso, o presidente brasileiro ainda ontem foi criticado no Parlamento Europeu pelo negacionismo e acusado pelo eurodeputado espanhol Miguel Urbán de crime contra a Humanidade. Foi a mesma insinuação que fez o senador Renan Calheiros no severo discurso de posse na CPI da Covid:

—Não foi o acaso ou flagelo divino que nos trouxe a este quadro. Há responsáveis, há culpados, por ação, omissão, desídia ou incompetência, e eles serão responsabilizados. Essa será a resposta para nos reconectarmos com o planeta. Os crimes contra a Humanidade não prescrevem jamais e são transnacionais. Slobodan Milosevic e Augusto Pinochet são exemplos da História. Façamos nossa parte —declarou.

Eu me alongaria em cada um desses temas que me atravessaram na última semana, mas tenho de me ocupar de uma conquista civilizatória desprezada por uma autoridade brasileira. No rol de declarações infelizes que integram o currículo do ministro da Economia, nenhuma se compara a maldizer a medicina por ampliar a vida dos brasileiros, como fez esta semana:

—O Estado brasileiro é um Estado quebrado. Quebrou. E ele quebrou no exato momento em que o avanço da medicina... Não falo nem da pandemia, falo do direito à vida. Todo mundo quer viver 100 anos, 120, 130. Todo mundo vai procurar o serviço público. E não há capacidade do Estado.

À ciência, às vacinas, aos medicamentos, ao sanitarismo, à queda da mortalidade infantil, Paulo Guedes deve a longevidade que lhe permitiu chegar ao cargo. Nascido em 1949, quando a esperança de vida dos brasileiros não passava de 45 anos, chegou à cúpula da República aos 69. Viveu para maldizer a mais celebrada etapa das tendências populacionais, quando as famílias são preservadas pela sobrevivência das crianças e pela longevidade dos idosos. Desde os anos 1940, a esperança de vida no Brasil aumentou três décadas, batendo 76 anos em 2019 (73 para homens, 80 para mulheres).

Cresceu ininterruptamente até o ano passado. Por causa da pandemia, que abateu principalmente pessoas com 60 anos ou mais de idade, principal grupo de risco da doença, demógrafos estimam que, em 2020, os brasileiros tenham perdido um par de anos de vida. Neste 2021, ainda mais mortal, a diferença entre os registros de nascimentos e óbitos vem caindo, o que sugere que a população do país pode diminuir em termos absolutos entre 2035 e 2040, uma década antes do previsto. É difícil sobreviver à malévola trindade Covid-Bolsonaro-Guedes. Vade-retro.

Flávia Oliveira 

Estratégias para não repetir o maior erro da eleição de 2018

As principais políticas públicas do país estão no caminho errado. O desempenho do Ministério da Saúde no combate à covid-19 foi um dos piores do mundo. A área ambiental foi destruída pelo antiministro e, enquanto ele continuar no cargo, o mundo não vai acreditar nas promessas feitas pelo governo brasileiro. O MEC abandonou os governos subnacionais e as escolas na pandemia, o que vai aumentar a desigualdade entre os alunos, no curto e no longo prazo. A lista de equívocos é longa e assustadora, e sua origem inicial está no processo eleitoral de 2018. Como evitar a repetição desse erro é uma das tarefas fundamentais para sair das trevas atuais.

Várias razões explicam as origens desse erro eleitoral, mas uma delas foi estratégica: a campanha foi muito curta e, sobretudo, houve poucos debates públicos com os principais candidatos, o que ficou ainda pior por causa da ausência do vencedor da eleição na controvérsia direta contra seus oponentes. Em defesa do presidente eleito pode-se dizer que ele sofrera um terrível atentado, o que é verdade. Mas no segundo turno Bolsonaro foi a inúmeros eventos públicos e deu entrevistas ao “jornalismo-amigo”, de modo que poderia ter ido aos debates contra seu adversário, mas preferiu fugir.

Bolsonaro não foi aos debates porque estava despreparado para ocupar a Presidência da República. Há três provas cabais disso, vinculadas ao seu plano de governo, às qualidades técnicas e políticas dos apoiadores mais próximos e do próprio futuro presidente, bem como à visão de mundo mais geral do bolsonarismo, tanto em termos de projeção de futuro para o país, como também em seu comportamento político.

Em primeiro lugar, o programa de governo foi o pior feito por um presidente eleito desde a retomada da democracia. Reduzido no tamanho e com pouquíssimo aprofundamento das ideias propostas, o programa de governo bolsonarista espalhava slogans e mitos sem a devida comprovação. Com erros básicos no uso dos dados, que nem mesmo alunos do primeiro ano de faculdade cometeriam, o projeto bolsonarista era claramente anticientífico, pois as principais evidências em educação, meio ambiente, segurança pública e saúde foram completamente ignoradas.


Uma lição ficou dessa história: os programas de governo precisam ser mais discutidos pela sociedade e, particularmente, pela imprensa de massa, como a TV. Geralmente, a mídia faz umas poucas matérias sobre as propostas formalizadas dos candidatos, mas o melhor caminho seria chamar, num primeiro momento, os candidatos para discutirem os programas de todos, e, num segundo momento, chamar especialistas nacionais e até internacionais, nas várias áreas de políticas públicas, para discutir a pertinência das ideias de cada concorrente. Quanto mais houver escrutínio público dos programas de governo, mais chances haverá de se evitar que despreparados cheguem à Presidência da República.

O segundo fator que comprova o despreparo de Bolsonaro está na qualidade das pessoas que apoiaram mais diretamente sua candidatura. Como já disse em artigo recente, os piores nomes dominam hoje grande parte dos postos da Esplanada dos Ministérios. Quem não percebeu isso, procure lembrar o nome do ministro da Educação e compare suas ideias para a área com o que é feito pelos países com melhor desempenho educacional. E não para por aí. Por mais de um ano, o Ministério da Saúde foi ocupado por pessoas que desconheciam completamente o setor - o próprio ex-ministro Eduardo Pazuello disse que nem sabia o que era o SUS. A militarização da política sanitária provou que não se pode improvisar com problemas coletivos complexos, pois uma pessoa pode ser habilitada para uma função e ser completamente despreparada para outra.

O pior de tudo isso é que o Brasil tem grandes acadêmicos, especialistas e gestores governamentais reconhecidos internacionalmente. Uma procura em bons sites especializados traria uma lista de nomes qualificados. Quantos desses foram chamados pelo atual governo? Quase ninguém. Bolsonaro prometeu que só chamaria “técnicos” para compor o núcleo de seu governo. Promessa descumprida: colocar policiais militares no Ibama, gente com currículo acadêmico pífio na educação, pessoas que nunca trabalharam com a cultura na respectiva secretaria, para ficar só em alguns exemplos, demonstra como o governo Bolsonaro é formado por amadores despreparados para as várias funções, que só estão lá porque obedecem completamente ao chefe maior.

Os debates na campanha deveriam discutir os principais nomes que assessoram os candidatos e que podem se tornar peça-chave para a qualidade do futuro governo. Mas não só o time de assessores faz diferença. É necessário também analisar a trajetória e as características pessoais dos presidenciáveis. Olhando para a biografia de Bolsonaro, não só ele não tinha comprometimento com a democracia e não fizera nada de relevante em 30 anos de Congresso Nacional, como nunca aprendera nada com as mudanças no mundo. Como todo governante despreparado, não é capaz de admitir e aprender com suas falhas. Isso poderia ter sido mais colocado em questão durante a campanha.

Há um terceiro e último elemento que já antecipava o despreparo para o cargo presidencial. Trata-se da forma como Bolsonaro e seu grupo se colocam frente ao mundo, em termos de ideias sobre o futuro almejado para o Brasil, formas de reagir à adversidade e a disposição em dialogar e aprender com os outros. Desde a campanha, percebeu-se que o bolsonarismo tinha um modus operandi muito claro: queria a volta ao passado em termos de valores e políticas públicas, não tinha muito respeito pela democracia e incentivava o ódio aos adversários.

O que vigora no grupo governante é o que pode ser chamado de “Planeta Bolsonaro”. Neste lugar distópico, imperam ideias e propostas que não são adotadas e/ou implementadas por nenhum outro país bem-sucedido nas diversas políticas públicas. A proposta educacional bolsonarista contém o contrário dos cardápios utilizados por nações que melhoraram sua educação nos últimos anos. A visão sobre a questão ambiental do bolsonarismo é o inverso do que está se firmando como um consenso mundial. Na mesma linha, a luta contra a desigualdade, não só de renda, mas com ações de defesa de minorias e da diversidade, é um processo crescente no mundo, enquanto as políticas do governo brasileiro vão no sentido contrário.

A construção do “Planeta Bolsonaro”, como um “mindset” que organiza o atual governo, não dialoga com as ideias e grupos que procuram enfrentar os desafios do século XXI. O Brasil ficará ainda mais para trás com as políticas do governo do presidente Joe Biden, nos Estados Unidos, que vão inspirar boa parte do mundo. A fonte desse reacionarismo radical vem de uma parcela da sociedade brasileira, que pode ter de um quinto a um terço dos eleitores, que está preocupada em evitar que as transformações do mundo contemporâneo cheguem aos seus lares. Não detém a maioria da população, mas consegue emperrar as necessárias decisões que deveríamos tomar para não construirmos aqui um salazarismo do século XXI, para lembrar o ditador português que atrasou por décadas a modernização da sociedade portuguesa.

A campanha de 2022 não pode repetir a de 2018. Os programas de governo devem ser discutidos exaustivamente. Não importa quais serão os candidatos: eles precisam falar mais sobre suas ideias, definirem como lidarão com situações difíceis, debaterem com outros concorrentes e serem testados pelo contraditório de especialistas, jornalistas independentes e cidadãos. Afinal, bons governos baseiam-se em propostas consistentes que necessariamente têm de passar pelo debate público.

Além disso, os nomes dos assessores devem ser conhecidos e analisados profundamente. Uma prévia de boa parte da equipe governamental deveria ser apresentada por todos os concorrentes. Desse modo, seria possível confrontar o plano de governo com a biografia e qualidade de seus prováveis implementadores. Soma-se ainda a isso a necessária análise das trajetórias e características de cada um dos presidenciáveis, tomando como principais qualidades a habilidade de dialogar e de agregar, além da capacidade de aprender com seus próprios erros.

Tão importante quanto o programa de governo e o conhecimento dos membros que o implementarão é a análise do “mindset” de cada grupo que disputa a Presidência. Sugiro quatro questões orientadoras aos condutores dos debates que deveriam ser feitas para todo concorrente a presidente. Primeira: como o senhor imagina que deve ser o país daqui a 20 anos num conjunto amplo de áreas (educação, meio ambiente, saúde, economia, cultura)? Segunda: que medidas adotará para que esse cenário se realize? Terceira: em que ideias, experiências de países e líderes governamentais o senhor se inspira para propor mudanças ao Brasil? E, por fim, como reunirá as pessoas em torno de suas propostas?

Para que uma campanha melhor aconteça em 2022, o período eleitoral deve ser maior e as regras sobre os debates deveriam ser melhoradas, fortalecendo o contraditório baseado em conhecimento sobre as políticas públicas. É sobre isso que o Congresso Nacional e a sociedade deveriam estar debruçados agora se quiserem que o Brasil tenha futuro. Seria a melhor reforma política para enfrentar as barbaridades produzidas no “Planeta Bolsonaro”.