sexta-feira, 23 de maio de 2025
A marcha solitária do Estado sem controle
Nos últimos tempos, tenho a impressão de que o Estado brasileiro se liberou completamente das amarras sociais e navega livremente pelo oceano de seus próprios interesses.
O Congresso é o lugar onde a liberdade de cuidar de si passou ater maior dimensão. Para começar, temos ocaso não resolvido das emendas. Não há controle social sobre ela se, em alguns casos, apenas a esperança de que, no sistema de pesos e contrapesos, o Supremo Tribunal Federal (STF) consiga frear o avanço dos congressistas. Rosa Weber tentou deter o orçamento secreto. Houve inúmeras escaramuças, masa Constituição não prevaleceu.
Da mesma forma, as tentativas do ministro Flávio Dino para determinara transparência esbarram em grandes obstáculos. Como foi um ministro indicado por Lula, o esforço para conter o Congresso acaba repercutindo nos municípios. Deve estar aí a causa das vaias que o presidente recebeu na marcha dos prefeitos em Brasília. Se foi esse o motivo, é sinal de que o corpo político brasileiro não aceita mais a ideia de um Orçamento nacional controlado pelo Executivo para realizar as promessas de uma campanha presidencial.
Os resultados são conhecidos hoje: fragmentação no uso dos recursos, irracionalidade, assim como uma corrupção difusa e incontrolável.
Mas o barco navega por outras ondas. Na semana passada, a Câmara aumentou o número de deputados, de 513 para 531, com um impacto estimado, por baixo, de R$ 65 milhões ao ano. Não houve repercussão social. Se fizermos uma pesquisa, certamente a maioria reprovaria este aumento. Mas ela já não se dá mais ao trabalho de protestar, por cansaço.
Resta a esperança de que o Supremo detenha esta manobra. Afinal, o que foi autorizado é apenas um reajuste nas bancadas, proporcional ao número de habitantes por Estado. Alguns perderiam, outros ganhariam, mas o número final não seria alterado.
Mas será que o STF vai enfrentar mais essa? Há outras frentes no litígio entre as instituições. Uma delas foi aberta com a suspensão do processo contra o deputado Alexandre Ramagem. O STF aceita não processá-lo por crimes realizados depois da diplomação, mas os cometidos antes estão de pé.
O caso é apenas um balão de ensaio destinado a criar uma espécie de blindagem para os deputados. Fala-se em anular, da mesma forma, o processo contra o ex-ministro das Comunicações Juscelino Filho, e a própria Carla Zambelli deposita suas esperanças, depois de uma condenação a dez anos de prisão.
Tudo isso enfraquece a democracia, como se ela estivesse morrendo ao longo desses anos, com pequenos espasmos de resistência.
O próprio Judiciário, em certos momentos, também navega em águas turvas. É muito grande o número de altos funcionários da Justiça que ganham salários acima do teto. Há investigações sobre venda de sentenças no Superior Tribunal de Justiça e nos tribunais de Tocantins e Mato Grosso.
Não se pode projetar no STF o papel de salvador. Sua atuação contra o golpe de Estado foi elogiada de um modo geral, mas logo alguns excessos surgiram a ponto de motivarem reportagens de veículos internacionais como The Economist e The New York Times. O contraargumento é o de que esses órgãos compraram as versões da extrema direita, mas não são precisamente simpáticos a essa corrente política.
Resta o Executivo, sem condições de estabelecer um equilíbrio.
Também se debate com notícias de corrupção no INSS, embora estejamos tratando de um processo antigo, fraco demais para confrontar o Congresso e dependente do STF.
No meu entender, está criada uma situação semelhante à anterior a 2013, com a diferença de que as revoltas daquele ano se desdobraram numa experiência que terminou com a vitória de um suposto outsider, em 2018. Bolsonaro se dizia contra tudo o que está aí.
Apesar dessa experiência traumática, a possibilidade do aparecimento de outsiders nas campanhas eleitorais continua de pé, sobretudo porque eles podem tomar outras formas, criar novos discursos, como aconteceu com Pablo Marçal na eleição municipal de São Paulo. Excluído do processo por sua própria inexperiência e fragilidade política, ele acabou revelando que uma parte da juventude buscava novos rumos, mais próximos do universo cotidiano.
A realidade é que marchamos para uma nova eleição presidencial num contexto de distância entre a sociedade e seus representantes.
Grande parte dos deputados considera sua reeleição tranquila com uma grande fatia do Orçamento para garantir sua volta. No longo prazo, é apenas um sintoma da crise, porque isso anuncia que no nível do Congresso não teremos novidade e o barco continuará seguindo suas rotas.
E o presidente que surgir do processo? Terá força para impor sua posição, vai remar a favor da corrente, na esperança modesta de preservar o poder?
O único problema nesta aprazível viagem é o fato de que a sociedade é dinâmica e dificilmente vai aceitar essa pasmaceira ao longo dos anos. Em algum momento, um iceberg vai se colocar no caminho deste incontrolável barco estatal.
Por enquanto, é difícil definir os contornos do desastre. Mas a possibilidade de que aconteça aumenta na medida em que o barco se distancia da costa, onde vivem as pessoas com seus problemas e sonhos.
O Congresso é o lugar onde a liberdade de cuidar de si passou ater maior dimensão. Para começar, temos ocaso não resolvido das emendas. Não há controle social sobre ela se, em alguns casos, apenas a esperança de que, no sistema de pesos e contrapesos, o Supremo Tribunal Federal (STF) consiga frear o avanço dos congressistas. Rosa Weber tentou deter o orçamento secreto. Houve inúmeras escaramuças, masa Constituição não prevaleceu.
Da mesma forma, as tentativas do ministro Flávio Dino para determinara transparência esbarram em grandes obstáculos. Como foi um ministro indicado por Lula, o esforço para conter o Congresso acaba repercutindo nos municípios. Deve estar aí a causa das vaias que o presidente recebeu na marcha dos prefeitos em Brasília. Se foi esse o motivo, é sinal de que o corpo político brasileiro não aceita mais a ideia de um Orçamento nacional controlado pelo Executivo para realizar as promessas de uma campanha presidencial.
Os resultados são conhecidos hoje: fragmentação no uso dos recursos, irracionalidade, assim como uma corrupção difusa e incontrolável.
Mas o barco navega por outras ondas. Na semana passada, a Câmara aumentou o número de deputados, de 513 para 531, com um impacto estimado, por baixo, de R$ 65 milhões ao ano. Não houve repercussão social. Se fizermos uma pesquisa, certamente a maioria reprovaria este aumento. Mas ela já não se dá mais ao trabalho de protestar, por cansaço.
Resta a esperança de que o Supremo detenha esta manobra. Afinal, o que foi autorizado é apenas um reajuste nas bancadas, proporcional ao número de habitantes por Estado. Alguns perderiam, outros ganhariam, mas o número final não seria alterado.
Mas será que o STF vai enfrentar mais essa? Há outras frentes no litígio entre as instituições. Uma delas foi aberta com a suspensão do processo contra o deputado Alexandre Ramagem. O STF aceita não processá-lo por crimes realizados depois da diplomação, mas os cometidos antes estão de pé.
O caso é apenas um balão de ensaio destinado a criar uma espécie de blindagem para os deputados. Fala-se em anular, da mesma forma, o processo contra o ex-ministro das Comunicações Juscelino Filho, e a própria Carla Zambelli deposita suas esperanças, depois de uma condenação a dez anos de prisão.
Tudo isso enfraquece a democracia, como se ela estivesse morrendo ao longo desses anos, com pequenos espasmos de resistência.
O próprio Judiciário, em certos momentos, também navega em águas turvas. É muito grande o número de altos funcionários da Justiça que ganham salários acima do teto. Há investigações sobre venda de sentenças no Superior Tribunal de Justiça e nos tribunais de Tocantins e Mato Grosso.
Não se pode projetar no STF o papel de salvador. Sua atuação contra o golpe de Estado foi elogiada de um modo geral, mas logo alguns excessos surgiram a ponto de motivarem reportagens de veículos internacionais como The Economist e The New York Times. O contraargumento é o de que esses órgãos compraram as versões da extrema direita, mas não são precisamente simpáticos a essa corrente política.
Resta o Executivo, sem condições de estabelecer um equilíbrio.
Também se debate com notícias de corrupção no INSS, embora estejamos tratando de um processo antigo, fraco demais para confrontar o Congresso e dependente do STF.
No meu entender, está criada uma situação semelhante à anterior a 2013, com a diferença de que as revoltas daquele ano se desdobraram numa experiência que terminou com a vitória de um suposto outsider, em 2018. Bolsonaro se dizia contra tudo o que está aí.
Apesar dessa experiência traumática, a possibilidade do aparecimento de outsiders nas campanhas eleitorais continua de pé, sobretudo porque eles podem tomar outras formas, criar novos discursos, como aconteceu com Pablo Marçal na eleição municipal de São Paulo. Excluído do processo por sua própria inexperiência e fragilidade política, ele acabou revelando que uma parte da juventude buscava novos rumos, mais próximos do universo cotidiano.
A realidade é que marchamos para uma nova eleição presidencial num contexto de distância entre a sociedade e seus representantes.
Grande parte dos deputados considera sua reeleição tranquila com uma grande fatia do Orçamento para garantir sua volta. No longo prazo, é apenas um sintoma da crise, porque isso anuncia que no nível do Congresso não teremos novidade e o barco continuará seguindo suas rotas.
E o presidente que surgir do processo? Terá força para impor sua posição, vai remar a favor da corrente, na esperança modesta de preservar o poder?
O único problema nesta aprazível viagem é o fato de que a sociedade é dinâmica e dificilmente vai aceitar essa pasmaceira ao longo dos anos. Em algum momento, um iceberg vai se colocar no caminho deste incontrolável barco estatal.
Por enquanto, é difícil definir os contornos do desastre. Mas a possibilidade de que aconteça aumenta na medida em que o barco se distancia da costa, onde vivem as pessoas com seus problemas e sonhos.
O ar que nos alimenta
Décadas atrás, quando pela primeira vez se cogitou que o ar pudesse nos alimentar, a informação gerou, principalmente, dúvida e desprezo. Houve um casal que ganhou fama por dizer que se alimentava apenas com ar e a energia do universo. Falso! Mas, se não podemos sobreviver unicamente respirando nutrientes, pesquisas recentes – conforme a revista New Scientist – demonstraram que sim, há nutrientes importantes no ar que respiramos e deles nos beneficiamos. Mostraram, também, que a quantidade e o tipo de nutrientes variam conforme a região onde se vive, com impactos diferentes sobre o corpo humano.
Para muitos, a primeira reação à ideia de nos nutrirmos pelo ar é ridicularizá-la. Indagariam: como pode? Essas mesmas pessoas incrédulas deveriam antes ponderar que há exemplos claros que a composição do ar que respiramos interfere em nosso corpo: a começar pela inalação de drogas como a cocaína e outras. Estas, sem dúvida, não nutrem o usuário, mas causam tantos impactos em nossos corpos que a possibilidade de estes serem afetados por componentes do ar que se respira fica demonstrada. É crescente o uso medicinal de drogas inaláveis para sedação, analgésicos e contra dor de cabeça, reforçando a evidência da rota nariz-cérebro para impactar o corpo humano. A insulina, a vitamina B-12 e outras podem entrar na corrente sanguínea através dos pulmões.
Há ainda exemplos de diversos outros elementos, como o ferro e o zinco, partículas dos quais são transportadas pelo ar e nos nutrem. Até aqui, a boa notícia da alimentação por via pulmonar. Mas, como tudo neste mundo, há também o outro lado da moeda.
Se há nutrientes no ar, nele também há poluentes graves. Além das sete milhões de mortes anuais causadas pelos combustíveis fósseis, há a ingestão e a inalação de outros componentes cujos efeitos são pouco conhecidos. Estudos recentes sobre os microplásticos mostram que diversos animais desenvolvem comportamentos estranhos em razão do microplástico ingerido e inalado.
Por que não também os animais humanos? Estima-se que cada um destes ingira 52.000 partículas desse subproduto do lucro de algumas empresas por ano, além de inalar outras 70.000 no mesmo período! Ratos expostos a essas partículas mostram-se propensos ao esquecimento e a comportamentos antissociais.
Estará também na alta ingestão e inalação de microplásticos uma das razões do comportamento estranho, embora frequente, e antissocial de tantos governantes atuais?
Para muitos, a primeira reação à ideia de nos nutrirmos pelo ar é ridicularizá-la. Indagariam: como pode? Essas mesmas pessoas incrédulas deveriam antes ponderar que há exemplos claros que a composição do ar que respiramos interfere em nosso corpo: a começar pela inalação de drogas como a cocaína e outras. Estas, sem dúvida, não nutrem o usuário, mas causam tantos impactos em nossos corpos que a possibilidade de estes serem afetados por componentes do ar que se respira fica demonstrada. É crescente o uso medicinal de drogas inaláveis para sedação, analgésicos e contra dor de cabeça, reforçando a evidência da rota nariz-cérebro para impactar o corpo humano. A insulina, a vitamina B-12 e outras podem entrar na corrente sanguínea através dos pulmões.
Cada animal humano respira cerca de 7.000 a 8.000 litros de ar por dia. A pergunta seguinte é: há, no ar, nutrientes favoráveis à nossa saúde? Sim, diversos deles. Próximo ao mar, a quantidade de iodo no ar é bem maior que longe dele. Pesquisas mostraram que soldadores expostos a grandes quantidades de partículas de manganês no ar correm o risco de acumular quantias neurotóxicas por meio da rota nariz-cérebro, por vezes resultando em comprometimento cognitivo e sintomas do Parkinson.
Há ainda exemplos de diversos outros elementos, como o ferro e o zinco, partículas dos quais são transportadas pelo ar e nos nutrem. Até aqui, a boa notícia da alimentação por via pulmonar. Mas, como tudo neste mundo, há também o outro lado da moeda.
Se há nutrientes no ar, nele também há poluentes graves. Além das sete milhões de mortes anuais causadas pelos combustíveis fósseis, há a ingestão e a inalação de outros componentes cujos efeitos são pouco conhecidos. Estudos recentes sobre os microplásticos mostram que diversos animais desenvolvem comportamentos estranhos em razão do microplástico ingerido e inalado.
Por que não também os animais humanos? Estima-se que cada um destes ingira 52.000 partículas desse subproduto do lucro de algumas empresas por ano, além de inalar outras 70.000 no mesmo período! Ratos expostos a essas partículas mostram-se propensos ao esquecimento e a comportamentos antissociais.
Estará também na alta ingestão e inalação de microplásticos uma das razões do comportamento estranho, embora frequente, e antissocial de tantos governantes atuais?
Os outros não têm medo
Não vivo num condomínio fechado. Ando todos os dias a pé, muitas vezes de metro. Vou às compras no supermercado do bairro ou na mercearia, que fica mesmo ao pé de casa. Falo muitas vezes com pessoas que não conheço, de todas as classes sociais. Meto conversa com taxistas e motoristas de Uber. Dou-me com pessoas que vivem em bairros sociais e com quem mora nas periferias e vou muitas vezes ao interior. Já corri Portugal de norte a sul, em férias e em trabalho. Converso muitas vezes com militantes de todos os partidos que se sentam no Parlamento. Mas não conheço o meu país.
Esta ideia atingiu-me com estrondo numa tarde de domingo em que, contra todas as minhas rotinas e por motivos que agora não vêm ao caso, tive de entrar num grande centro comercial, mesmo nas franjas de Lisboa. Olhei em volta e percebi o quão longe estava de casa. Não tinha sequer passado as fronteiras do concelho e o que via era um país estrangeiro, longe do café de especialidade onde vendem matchas latte a cinco euros, mas também da tasca onde se come um almoço por pouco mais que isso.
Nunca tive grandes dúvidas de que a classe média é uma espécie de animal político mitológico. É mais um sítio onde se quer estar do que onde se está realmente. Sobretudo, quando o salário médio líquido fica pouco acima dos mil euros, exatamente o preço que me aparece primeiro quando faço no Idealista uma pesquisa por um T2 para arrendar na Amadora.
Naquela tarde de domingo tive, contudo, a sensação de estar a ver à minha frente esse unicórnio económico que é a classe média. Pessoas com capacidade de consumo, mas não tanto que nos pareçam abastadas. Pessoas a quem provavelmente parece absurdo pagar 1,60 euros por café – como já se cobra no meu bairro – mas que parecem ter o suficiente para ter aquilo a que se chama uma vida confortável: uma casa paga sem grandes sobressaltos, férias fora de casa pelo menos uma vez por ano e um automóvel.
Suponho que seja isto a que se chama classe média. E o motivo por que me pareceram tão estranhos é que, nos lugares por onde ando no centro da cidade, estou mais habituada a ver os extremos da escala social, mesmo que os de baixo não sejam sempre indigentes, mas muitas vezes profissionais intelectuais, cada vez mais espremidos pelo custo de vida crescente, que se vão aguentando em Lisboa por já terem casa paga ou ajudas familiares.
As pessoas que enchiam o centro comercial naquela tarde de domingo são as mesmas que todos os dias perdem horas de vida no trânsito. E talvez isso explique o ar impaciente, fechado, irritadiço com que se moviam pelo espaço apinhado, debaixo das luzes fluorescentes.
Saem de casa de manhã cedo. Trabalham o dia todo, muitas vezes com uma pausa rápida para comer em frente ao computador ou de pé num balcão. Trabalham muito. Procuram creche para os filhos e não a encontram. Acabam por pôr os miúdos num colégio, porque acreditam que é um investimento no futuro. Quando estão doentes, não têm médico de família e veem-se obrigados a ir ao privado. E pagam. Pagam sempre. Têm a sensação de que estão sempre a pagar. Ao final do dia, vão outra vez para a fila do trânsito. Chegam tarde e cansados, sem energia para ler ou brincar com as crianças. É preciso fazer o jantar, os TPC a correr e aos berros, os banhos, a lancheira do dia seguinte. E o dia seguinte será igual. Tudo lhes parece igual, a não ser talvez aquelas férias que lá vão conseguindo pagar, mas que também acabam por lhes saber ao mesmo, porque são curtas. E a vida não avança nem muda. E, tal como todas as outras pessoas de todas as outras classes, estão esgotados, sugados pelos ecrãs, pelas solicitações constantes, pelas mensagens e notificações, pela vida dos outros que lhes aparece pelas redes sociais e parece sempre tão melhor.
Pensei muito nestas pessoas desde domingo. Não porque as veja como um bando de ressentidos, zangados. Embora acredite que muitos deles o estão. Fartos de serem olhados de alto por quem está por cima e os desdenha. E cansados de sentirem que os que estão abaixo competem consigo pelos escassos recursos públicos e que muitas vezes (pelo menos é isso que acham) acabam por ficar com uma parte maior do bolo do aquela que lhes cabe a eles, que até o estão a pagar.
Pensei muito nestas pessoas, enquanto me fui cruzando com gente cabisbaixa, de um centrão que se acha moderado e razoável, atarantado com a ideia de que o país se radicalizou. Pensei muito nestas pessoas, enquanto me fui cruzando com gente amedrontada, de uma esquerda que desce as avenidas com cravos no peito e teme uma regressão revanchista, que vê como uma ameaça existencial.
Por onde ando, há muita gente cabisbaixa e amedrontada. E o que os cabisbaixos e amedrontados têm em comum é a sensação de incompreensão. Acordaram e não reconhecem o país em que vivem.
Os outros, aqueles com quem não se cruzam, não estão cabisbaixos nem amedrontados. Estão exultantes com o murro na mesa que deram, mesmo que nem sempre calculem bem até onde podem ser abalados por esse abanão. E, acima de tudo, sentem que não têm nada de que ter medo.
E é aí que quero pôr o dedo nesta reflexão. Eles não têm medo, porque a liberdade, a fraternidade e a igualdade não lhes dizem nada. Nas suas vidas repetidas e sem horizonte, não há nenhuma liberdade que vejam como ameaçada. Sobretudo, se são homens, brancos e heterossexuais. Quem poderá vir atrás deles? Não há nenhuma fraternidade que ultrapasse as fronteiras dos seus laços familiares. Nas vidas feitas dentro de carros, não há uma comunidade que os faça sentir irmãos de estranhos, que lhes parece pesado e injusto ajudarem quando precisam. Não há nenhuma igualdade, porque a vida os levou a acreditar que só se safa quem se esforça ou é esperto e se estão a falhar é porque não se esforçam ou há bandidos que lhes passam a perna. É o velho “quem não deve não teme”. E eles acham que não devem e, por isso, não temem.
Esta incompreensão mútua é como um buraco que se abriu debaixo dos nossos pés. O país não mudou. Só tem agora um espelho que o reflete de forma mais fiel. Vamos ter de nos habituar ao que vemos, primeiro. Só depois poderemos começar a pensar numa maneira de mudar as coisas. Porque sim, há sempre uma maneira de mudar as coisas.
Esta ideia atingiu-me com estrondo numa tarde de domingo em que, contra todas as minhas rotinas e por motivos que agora não vêm ao caso, tive de entrar num grande centro comercial, mesmo nas franjas de Lisboa. Olhei em volta e percebi o quão longe estava de casa. Não tinha sequer passado as fronteiras do concelho e o que via era um país estrangeiro, longe do café de especialidade onde vendem matchas latte a cinco euros, mas também da tasca onde se come um almoço por pouco mais que isso.
Nunca tive grandes dúvidas de que a classe média é uma espécie de animal político mitológico. É mais um sítio onde se quer estar do que onde se está realmente. Sobretudo, quando o salário médio líquido fica pouco acima dos mil euros, exatamente o preço que me aparece primeiro quando faço no Idealista uma pesquisa por um T2 para arrendar na Amadora.
Naquela tarde de domingo tive, contudo, a sensação de estar a ver à minha frente esse unicórnio económico que é a classe média. Pessoas com capacidade de consumo, mas não tanto que nos pareçam abastadas. Pessoas a quem provavelmente parece absurdo pagar 1,60 euros por café – como já se cobra no meu bairro – mas que parecem ter o suficiente para ter aquilo a que se chama uma vida confortável: uma casa paga sem grandes sobressaltos, férias fora de casa pelo menos uma vez por ano e um automóvel.
Suponho que seja isto a que se chama classe média. E o motivo por que me pareceram tão estranhos é que, nos lugares por onde ando no centro da cidade, estou mais habituada a ver os extremos da escala social, mesmo que os de baixo não sejam sempre indigentes, mas muitas vezes profissionais intelectuais, cada vez mais espremidos pelo custo de vida crescente, que se vão aguentando em Lisboa por já terem casa paga ou ajudas familiares.
As pessoas que enchiam o centro comercial naquela tarde de domingo são as mesmas que todos os dias perdem horas de vida no trânsito. E talvez isso explique o ar impaciente, fechado, irritadiço com que se moviam pelo espaço apinhado, debaixo das luzes fluorescentes.
Saem de casa de manhã cedo. Trabalham o dia todo, muitas vezes com uma pausa rápida para comer em frente ao computador ou de pé num balcão. Trabalham muito. Procuram creche para os filhos e não a encontram. Acabam por pôr os miúdos num colégio, porque acreditam que é um investimento no futuro. Quando estão doentes, não têm médico de família e veem-se obrigados a ir ao privado. E pagam. Pagam sempre. Têm a sensação de que estão sempre a pagar. Ao final do dia, vão outra vez para a fila do trânsito. Chegam tarde e cansados, sem energia para ler ou brincar com as crianças. É preciso fazer o jantar, os TPC a correr e aos berros, os banhos, a lancheira do dia seguinte. E o dia seguinte será igual. Tudo lhes parece igual, a não ser talvez aquelas férias que lá vão conseguindo pagar, mas que também acabam por lhes saber ao mesmo, porque são curtas. E a vida não avança nem muda. E, tal como todas as outras pessoas de todas as outras classes, estão esgotados, sugados pelos ecrãs, pelas solicitações constantes, pelas mensagens e notificações, pela vida dos outros que lhes aparece pelas redes sociais e parece sempre tão melhor.
Pensei muito nestas pessoas desde domingo. Não porque as veja como um bando de ressentidos, zangados. Embora acredite que muitos deles o estão. Fartos de serem olhados de alto por quem está por cima e os desdenha. E cansados de sentirem que os que estão abaixo competem consigo pelos escassos recursos públicos e que muitas vezes (pelo menos é isso que acham) acabam por ficar com uma parte maior do bolo do aquela que lhes cabe a eles, que até o estão a pagar.
Pensei muito nestas pessoas, enquanto me fui cruzando com gente cabisbaixa, de um centrão que se acha moderado e razoável, atarantado com a ideia de que o país se radicalizou. Pensei muito nestas pessoas, enquanto me fui cruzando com gente amedrontada, de uma esquerda que desce as avenidas com cravos no peito e teme uma regressão revanchista, que vê como uma ameaça existencial.
Por onde ando, há muita gente cabisbaixa e amedrontada. E o que os cabisbaixos e amedrontados têm em comum é a sensação de incompreensão. Acordaram e não reconhecem o país em que vivem.
Os outros, aqueles com quem não se cruzam, não estão cabisbaixos nem amedrontados. Estão exultantes com o murro na mesa que deram, mesmo que nem sempre calculem bem até onde podem ser abalados por esse abanão. E, acima de tudo, sentem que não têm nada de que ter medo.
E é aí que quero pôr o dedo nesta reflexão. Eles não têm medo, porque a liberdade, a fraternidade e a igualdade não lhes dizem nada. Nas suas vidas repetidas e sem horizonte, não há nenhuma liberdade que vejam como ameaçada. Sobretudo, se são homens, brancos e heterossexuais. Quem poderá vir atrás deles? Não há nenhuma fraternidade que ultrapasse as fronteiras dos seus laços familiares. Nas vidas feitas dentro de carros, não há uma comunidade que os faça sentir irmãos de estranhos, que lhes parece pesado e injusto ajudarem quando precisam. Não há nenhuma igualdade, porque a vida os levou a acreditar que só se safa quem se esforça ou é esperto e se estão a falhar é porque não se esforçam ou há bandidos que lhes passam a perna. É o velho “quem não deve não teme”. E eles acham que não devem e, por isso, não temem.
Esta incompreensão mútua é como um buraco que se abriu debaixo dos nossos pés. O país não mudou. Só tem agora um espelho que o reflete de forma mais fiel. Vamos ter de nos habituar ao que vemos, primeiro. Só depois poderemos começar a pensar numa maneira de mudar as coisas. Porque sim, há sempre uma maneira de mudar as coisas.
Degradação ambiental e violação de direitos devem se agravar
De um lado, povos indígenas, quilombolas, extrativistas, camponeses, agricultores familiares e outras comunidades tradicionais resistem e cultivam seus modos de vida com base em práticas e saberes que preservam o meio ambiente. Do outro lado, estão empresas – nacionais e multinacionais – que, em nome do desenvolvimento, planejam e instalam obras e empreendimentos às custas da devastação ambiental e da violação de direitos territoriais e humanos. A esse último bloco somam-se mais alguns atores: o Governo, o poder Judiciário e o Legislativo que, muitas vezes, legitimam a violação de direitos agindo mais em defesa desses interesses econômicos do que das populações tradicionais – ou mesmo do meio ambiente, que atualmente está no centro dos debates de proteção por conta da crise climática global.
Esse cenário não é novo. Os embates não são de agora. No entanto, a recente a aprovação da Lei Geral do Licenciamento Ambiental (nº 2.159/2021) no Senado na última quarta-feira, dia 21 de maio, acende um alerta urgente.
No oeste do Pará – estado que irá sediar a Conferência do Clima da ONU em novembro – povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais já conhecem de perto a fragilidade na aplicação e fiscalização dos processos de licenciamento ambiental. Ainda assim, é esse instrumento que, até agora, tem funcionado como uma barreira mínima contra a devastação de seus territórios e a natureza. Com flexibilização das regras, o cenário do futuro é de ainda mais destruição, avanço de empreendimentos sob territórios tradicionais, intensificação de conflitos territoriais e violação de direitos.
Na região banhada pelo Rio Tapajós, povos originários, comunidades tradicionais e movimentos sociais denunciam há décadas os impactos de grandes empreendimentos para o meio ambiente e para seus modos vida. Eles enfrentam tanto posturas omissas de órgãos que deveriam ser responsáveis por proteger o meio ambiente, quanto decisões judiciais que, em vez de proteger seus direitos, acabam por acentuar desigualdades e perpetuar o racismo ambiental nos territórios.
Em março deste ano, indígenas e comunidades tradicionais da Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns denunciaram, por meio nas redes sociais, a dragagem irregular no Rio Tapajós, autorizada pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas) e pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit). A atividade foi iniciada sem um processo regular de licenciamento, sem aviso prévio – com as comunidades sendo surpreendidas pelas máquinas em funcionamento no meio do rio -, sem estudos de impacto ambiental e sem consulta e consentimento prévios, ambos garantidos por normas legais nacionais e internacionais como a Constituição Federal, resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.
Embora o Ministério Público Federal tenha atuado e as comunidades tenham se mobilizado para barrar, a mais recente – e preocupante – decisão do Poder Judiciário foi que, diante da suposta emergência para retirada de bancos de areia do rio, o devido processo de licenciamento ambiental poderia ser dispensado. No entanto, a região não enfrenta seca ou estiagem neste período. A “emergência”, neste caso, parece ser mais uma justificativa para colocar os interesses do agronegócio – que depende da dragagem para o escoamento de grãos pelo Rio Tapajós até o mercado internacional – acima dos direitos dos direitos dos povos. Isso sem mencionar os impactos ambientais permanentes provocados por esse tipo de intervenção no rio.
Outro caso que exemplifica a falha do sistema de justiça e a postura irregular da Secretaria de Meio Ambiente é o caso do Porto da Petróleo Sabbá S.A, localizado em Itaituba. Em abril deste ano, o porto teve sua licença de operação suspensa por decisão judicial, atendendo a um pedido da Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal contra a empresa e a Semas. O MPF pediu a suspensão das licenças pela ausência de consulta prévia, livre e informada aos povos indígenas Munduruku, especialmente da Aldeia Praia do Índio, localizada a apenas 11 quilômetros do empreendimento. Além da violação do direito à consulta, a ausência de estudos ambientais também foi destacada na Ação.
No entanto, em menos de um mês, a decisão foi revertida. O Tribunal Regional Federal da 1º Região (TRF1) acatou o argumento de que a paralisação das atividades do porto poderia comprometer o abastecimento de combustíveis em toda região Norte, considerou esse um risco concreto e imediato, capaz de causar grave prejuízo ao “interesse público”. A suspensão da licença representaria uma importante conquista para os povos indígenas e abriria caminho para a urgente revisão do licenciamento ambiental da empresa, que há anos opera sem considerar adequadamente seus impactos sobre o meio ambiente e povo Munduruku.
A questão é: como um porto de combustíveis (considerado carga perigosa com alto potencial de degradação ambiental) é licenciado sem estudos de impacto ambiental? Mais uma vez, a vida e os direitos de povos indígenas e o meio ambiente foram deixados de lado pelo sistema de Justiça.
Se em 2025, o “interesse público” continua a ser utilizado para justificar a sobreposição de projetos econômicos ao cumprimento de normas que garantem a preservação ou recuperação do meio ambiente, é preciso perguntar: de qual interesse público estamos falando? E a quem ele realmente serve? Porque se hoje, a Justiça não considera suspender atividades que não seguiram o devido processo de licenciamento ambiental – mesmo com alto potencial de degradação e impacto direto nos modos de vida de povos indígenas -, é urgente rever a responsabilização do órgão licenciador, nesse caso, a Semas do Governo do Pará.
Tanto no caso do porto em Itaituba, quanto da dragagem na hidrovia do Tapajós e dos 41 portos do agronegócio mapeados pelo estudo Portos e Licenciamento Ambiental do Tapajós, a conduta da Semas revela uma postura sistemática de omissão. O estudo elaborado por Terra de Direitos com base na análise de documentos de licenciamento ambiental obtidos junto aos órgãos competentes aponta uma série de falhas e irregularidades; portos em operação sem todas as licenças exigidas, ausência de estudos ambiental, licenças vencidas que continuam válidas com base no princípio da renovação automática – prática proposta no novo marco legal do licenciamento – proposta contemplada no novo marco do licenciamento -, além da ausência de consulta prévia aos povos tradicionais.
Ou seja, em vez de atuar com base no princípio da prevenção e precaução de danos ao meio ambiente, o Governo do Pará tem reiteradamente autorizado ou permitido atividades sem o devido rigor ambiental, ignorando os riscos e as consequências para os povos e os ecossistemas afetados. O que se desenha para o futuro com a nova Lei Geral do Licenciamento Ambiental parece ser a manutenção da sistemática violação de direitos humanos e ambientais no Pará e em todo Brasil.
Uma das mudanças do Projeto de Lei diz sobre a necessidade de consulta a povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. Na nova lei, esses povos só deverão ser ouvidos sobre a instalação dos empreendimentos se seus territórios estiverem 100% titulados ou demarcados. Ocorre que a maioria dos territórios tradicionais não estão titulados ou demarcados.
No caso dos povos quilombolas, por exemplo, somente 24 territórios de todo o Brasil estariam aptos a serem consultados de acordo com a nota técnica, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e a Terra de Direitos. Isso representa apenas 2% do total de comunidades. Em Santarém – oeste do Pará -, nenhuma comunidade quilombola seria consultada, já que atualmente somente uma das mais de 12 comunidades tem o território titulado, mas de forma parcial.
A nota técnica aponta que a nova lei deve promover e acelerar a degradação ambiental nos territórios quilombolas, intensificar o racismo ambiental e violar direitos fundamentais já garantidos pelas comunidades tradicionais do Brasil.
Paralelo a isso, estudos mostram que essas mesmas comunidades tem um papel central no enfrentamento aos efeitos das mudanças climáticas, com suas práticas e saberes tradicionais. De acordo com o MapBiomas, entre 1985 e 2022, os territórios quilombolas apresentaram as menores taxas de desmatamento: 4,7% contra 17% de áreas privadas.
Em um mundo em colapso ambiental, onde a manutenção das florestas, das águas e a preservação ambiental são o caminho para reverter a crise do clima, o Brasil vai permitir que empresas desenvolvam atividades, obras, projetos e empreendimentos sem licenciamento, estudos ambientais, relatórios de diminuição dos efeitos de degradação ao meio ambiente, se valendo somente da autodeclaração de compromisso.
Se com um licenciamento ambiental regulado, temos casos como os do Tapajós, Brumadinho, Mariana, Belo Monte, e tantos outros, como é possível garantir um compromisso com o meio ambiente de empresas privadas que se valem da omissão de órgãos do meio ambiente e do sistema de justiça para continuar suas atividades poluidoras sem consequências?
Diante de tudo isso e em um momento crucial como o da COP 30, o Brasil tem a responsabilidade de liderar o enfrentamento a crise climática pelo exemplo. A verdadeira justiça social e ambiental não será alcançada enquanto os interesses econômicos se sobrepuserem aos direitos fundamentais das populações que preservam nosso maior patrimônio: a natureza.
Esse cenário não é novo. Os embates não são de agora. No entanto, a recente a aprovação da Lei Geral do Licenciamento Ambiental (nº 2.159/2021) no Senado na última quarta-feira, dia 21 de maio, acende um alerta urgente.
No oeste do Pará – estado que irá sediar a Conferência do Clima da ONU em novembro – povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais já conhecem de perto a fragilidade na aplicação e fiscalização dos processos de licenciamento ambiental. Ainda assim, é esse instrumento que, até agora, tem funcionado como uma barreira mínima contra a devastação de seus territórios e a natureza. Com flexibilização das regras, o cenário do futuro é de ainda mais destruição, avanço de empreendimentos sob territórios tradicionais, intensificação de conflitos territoriais e violação de direitos.
Na região banhada pelo Rio Tapajós, povos originários, comunidades tradicionais e movimentos sociais denunciam há décadas os impactos de grandes empreendimentos para o meio ambiente e para seus modos vida. Eles enfrentam tanto posturas omissas de órgãos que deveriam ser responsáveis por proteger o meio ambiente, quanto decisões judiciais que, em vez de proteger seus direitos, acabam por acentuar desigualdades e perpetuar o racismo ambiental nos territórios.
Em março deste ano, indígenas e comunidades tradicionais da Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns denunciaram, por meio nas redes sociais, a dragagem irregular no Rio Tapajós, autorizada pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas) e pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit). A atividade foi iniciada sem um processo regular de licenciamento, sem aviso prévio – com as comunidades sendo surpreendidas pelas máquinas em funcionamento no meio do rio -, sem estudos de impacto ambiental e sem consulta e consentimento prévios, ambos garantidos por normas legais nacionais e internacionais como a Constituição Federal, resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.
Embora o Ministério Público Federal tenha atuado e as comunidades tenham se mobilizado para barrar, a mais recente – e preocupante – decisão do Poder Judiciário foi que, diante da suposta emergência para retirada de bancos de areia do rio, o devido processo de licenciamento ambiental poderia ser dispensado. No entanto, a região não enfrenta seca ou estiagem neste período. A “emergência”, neste caso, parece ser mais uma justificativa para colocar os interesses do agronegócio – que depende da dragagem para o escoamento de grãos pelo Rio Tapajós até o mercado internacional – acima dos direitos dos direitos dos povos. Isso sem mencionar os impactos ambientais permanentes provocados por esse tipo de intervenção no rio.
Outro caso que exemplifica a falha do sistema de justiça e a postura irregular da Secretaria de Meio Ambiente é o caso do Porto da Petróleo Sabbá S.A, localizado em Itaituba. Em abril deste ano, o porto teve sua licença de operação suspensa por decisão judicial, atendendo a um pedido da Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal contra a empresa e a Semas. O MPF pediu a suspensão das licenças pela ausência de consulta prévia, livre e informada aos povos indígenas Munduruku, especialmente da Aldeia Praia do Índio, localizada a apenas 11 quilômetros do empreendimento. Além da violação do direito à consulta, a ausência de estudos ambientais também foi destacada na Ação.
No entanto, em menos de um mês, a decisão foi revertida. O Tribunal Regional Federal da 1º Região (TRF1) acatou o argumento de que a paralisação das atividades do porto poderia comprometer o abastecimento de combustíveis em toda região Norte, considerou esse um risco concreto e imediato, capaz de causar grave prejuízo ao “interesse público”. A suspensão da licença representaria uma importante conquista para os povos indígenas e abriria caminho para a urgente revisão do licenciamento ambiental da empresa, que há anos opera sem considerar adequadamente seus impactos sobre o meio ambiente e povo Munduruku.
A questão é: como um porto de combustíveis (considerado carga perigosa com alto potencial de degradação ambiental) é licenciado sem estudos de impacto ambiental? Mais uma vez, a vida e os direitos de povos indígenas e o meio ambiente foram deixados de lado pelo sistema de Justiça.
Se em 2025, o “interesse público” continua a ser utilizado para justificar a sobreposição de projetos econômicos ao cumprimento de normas que garantem a preservação ou recuperação do meio ambiente, é preciso perguntar: de qual interesse público estamos falando? E a quem ele realmente serve? Porque se hoje, a Justiça não considera suspender atividades que não seguiram o devido processo de licenciamento ambiental – mesmo com alto potencial de degradação e impacto direto nos modos de vida de povos indígenas -, é urgente rever a responsabilização do órgão licenciador, nesse caso, a Semas do Governo do Pará.
Tanto no caso do porto em Itaituba, quanto da dragagem na hidrovia do Tapajós e dos 41 portos do agronegócio mapeados pelo estudo Portos e Licenciamento Ambiental do Tapajós, a conduta da Semas revela uma postura sistemática de omissão. O estudo elaborado por Terra de Direitos com base na análise de documentos de licenciamento ambiental obtidos junto aos órgãos competentes aponta uma série de falhas e irregularidades; portos em operação sem todas as licenças exigidas, ausência de estudos ambiental, licenças vencidas que continuam válidas com base no princípio da renovação automática – prática proposta no novo marco legal do licenciamento – proposta contemplada no novo marco do licenciamento -, além da ausência de consulta prévia aos povos tradicionais.
Ou seja, em vez de atuar com base no princípio da prevenção e precaução de danos ao meio ambiente, o Governo do Pará tem reiteradamente autorizado ou permitido atividades sem o devido rigor ambiental, ignorando os riscos e as consequências para os povos e os ecossistemas afetados. O que se desenha para o futuro com a nova Lei Geral do Licenciamento Ambiental parece ser a manutenção da sistemática violação de direitos humanos e ambientais no Pará e em todo Brasil.
Uma das mudanças do Projeto de Lei diz sobre a necessidade de consulta a povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. Na nova lei, esses povos só deverão ser ouvidos sobre a instalação dos empreendimentos se seus territórios estiverem 100% titulados ou demarcados. Ocorre que a maioria dos territórios tradicionais não estão titulados ou demarcados.
No caso dos povos quilombolas, por exemplo, somente 24 territórios de todo o Brasil estariam aptos a serem consultados de acordo com a nota técnica, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e a Terra de Direitos. Isso representa apenas 2% do total de comunidades. Em Santarém – oeste do Pará -, nenhuma comunidade quilombola seria consultada, já que atualmente somente uma das mais de 12 comunidades tem o território titulado, mas de forma parcial.
A nota técnica aponta que a nova lei deve promover e acelerar a degradação ambiental nos territórios quilombolas, intensificar o racismo ambiental e violar direitos fundamentais já garantidos pelas comunidades tradicionais do Brasil.
Paralelo a isso, estudos mostram que essas mesmas comunidades tem um papel central no enfrentamento aos efeitos das mudanças climáticas, com suas práticas e saberes tradicionais. De acordo com o MapBiomas, entre 1985 e 2022, os territórios quilombolas apresentaram as menores taxas de desmatamento: 4,7% contra 17% de áreas privadas.
Em um mundo em colapso ambiental, onde a manutenção das florestas, das águas e a preservação ambiental são o caminho para reverter a crise do clima, o Brasil vai permitir que empresas desenvolvam atividades, obras, projetos e empreendimentos sem licenciamento, estudos ambientais, relatórios de diminuição dos efeitos de degradação ao meio ambiente, se valendo somente da autodeclaração de compromisso.
Se com um licenciamento ambiental regulado, temos casos como os do Tapajós, Brumadinho, Mariana, Belo Monte, e tantos outros, como é possível garantir um compromisso com o meio ambiente de empresas privadas que se valem da omissão de órgãos do meio ambiente e do sistema de justiça para continuar suas atividades poluidoras sem consequências?
Diante de tudo isso e em um momento crucial como o da COP 30, o Brasil tem a responsabilidade de liderar o enfrentamento a crise climática pelo exemplo. A verdadeira justiça social e ambiental não será alcançada enquanto os interesses econômicos se sobrepuserem aos direitos fundamentais das populações que preservam nosso maior patrimônio: a natureza.
O velório da democracia no funeral da soberania
O Brasil vem cometendo um descuido histórico há 500 anos, desde a chegada do colonizador europeu. Ao longo do tempo, lideranças criminosas se auto coroaram chefes de um Estado paralelo, fazendo bolsões do território nacional retrocederem a um modo de governo medieval, especialmente nas grandes cidades, na fronteira e na região amazônica.
No século XVI, o jurista francês Jean Boudin já ensinava que “Soberania do Estado refere-se à entidade que não conhece superior na ordem externa, nem igual na ordem interna”. Estabelecia-se, com isso, um dos pilares do Estado Nacional moderno. Duzentos anos mais tarde o Iluminismo ampliou esse conceito para contemplar a Soberania Popular, que até hoje está na base da definição de Democracia: “… é a doutrina pela qual o Estado é criado e sujeito à vontade das pessoas, que são a fonte de todo o poder político”.
No que diz respeito à “ordem externa” de Boudin, não estamos mal, porque nosso país desenvolveu uma Diplomacia e Forças Armadas maduras e qualificadas o suficiente para garantir nossa integridade territorial até o momento (torcendo para Trump não querer testá-la). Mas, no que se refere à “ordem interna”, o Estado brasileiro ainda “conhece um igual” – o crime organizado -, considerando-se que em algumas porções expressivas do nosso território cresce a tendência de que o povo não seja “a fonte de todo o poder político”.
Acontece que, para alguns milhões de brasileiros, aquela “vontade das pessoas” não funciona em seus bairros sequer para escolher um botijão de gás, porque suas comunidades tornaram-se feudos, onde prevalecem uma lei e uma economia locais que se impõem pelo arsenal do crime. Em algumas cidades, está ficando difícil até distinguir entre a economia legal e os negócios ilegais. Essa cleptocracia, com lucros sedutores e violência opressora, consegue influenciar até mesmo os poderes constitucionais legítimos.
Um exemplo desse fenômeno ocorreu recentemente durante um dos funerais mais ilustrativos da história da nossa Democracia. Não confundir com as despedidas do líder popular uruguaio Pepe Mujica, tampouco com as do Papa Francisco. No Rio de Janeiro, outro sepultamento movimentava o noticiário nacional. Com pompa e circunstância, um rapaz de 36 anos chamado Thiago Folly (ou simplesmente TH) teve velório e enterro com direito a fogos de artifícios, comes e bebes, discursos, salvas de tiros, climão entre sucessores, briga de viúvas e até ônibus fretados para transportar seus ‘súditos’ compulsórios.
Não se poderia esperar menos para o adeus a um senhor feudal do narcotráfico. O prodígio TH escalou rápido nos negócios do crime. Já havia uns 10 anos que reinava em territórios do Rio, ofertando trabalho, entretenimento e serviços ‘públicos’. Seu aparato de segurança tinha padrão presidencial (sua residência ‘oficial’ era guardada por 30 homens com material militar pesado). Nas comunidades governadas por TH a ordem era atirar em qualquer veículo que atravessasse a fronteira do seu feudo sem ‘visto de acesso’.
Homenagens como essas prestadas a TH não são novidade no Rio, em São Paulo, no Brasil afora, nem América Latina. Foram comuns, algumas décadas atrás, até mesmo na Itália, nos EUA, Leste Europeu e Japão. No fim das contas, fica a dica de que, mesmo em pleno século XXI, nenhum Estado soberano e democrático pode prescindir de se (re)legitimar a toda hora, em todos os seus rincões e, principalmente, para todos os seus cidadãos.
Felipe Sampaio
No século XVI, o jurista francês Jean Boudin já ensinava que “Soberania do Estado refere-se à entidade que não conhece superior na ordem externa, nem igual na ordem interna”. Estabelecia-se, com isso, um dos pilares do Estado Nacional moderno. Duzentos anos mais tarde o Iluminismo ampliou esse conceito para contemplar a Soberania Popular, que até hoje está na base da definição de Democracia: “… é a doutrina pela qual o Estado é criado e sujeito à vontade das pessoas, que são a fonte de todo o poder político”.
No que diz respeito à “ordem externa” de Boudin, não estamos mal, porque nosso país desenvolveu uma Diplomacia e Forças Armadas maduras e qualificadas o suficiente para garantir nossa integridade territorial até o momento (torcendo para Trump não querer testá-la). Mas, no que se refere à “ordem interna”, o Estado brasileiro ainda “conhece um igual” – o crime organizado -, considerando-se que em algumas porções expressivas do nosso território cresce a tendência de que o povo não seja “a fonte de todo o poder político”.
Acontece que, para alguns milhões de brasileiros, aquela “vontade das pessoas” não funciona em seus bairros sequer para escolher um botijão de gás, porque suas comunidades tornaram-se feudos, onde prevalecem uma lei e uma economia locais que se impõem pelo arsenal do crime. Em algumas cidades, está ficando difícil até distinguir entre a economia legal e os negócios ilegais. Essa cleptocracia, com lucros sedutores e violência opressora, consegue influenciar até mesmo os poderes constitucionais legítimos.
Um exemplo desse fenômeno ocorreu recentemente durante um dos funerais mais ilustrativos da história da nossa Democracia. Não confundir com as despedidas do líder popular uruguaio Pepe Mujica, tampouco com as do Papa Francisco. No Rio de Janeiro, outro sepultamento movimentava o noticiário nacional. Com pompa e circunstância, um rapaz de 36 anos chamado Thiago Folly (ou simplesmente TH) teve velório e enterro com direito a fogos de artifícios, comes e bebes, discursos, salvas de tiros, climão entre sucessores, briga de viúvas e até ônibus fretados para transportar seus ‘súditos’ compulsórios.
Não se poderia esperar menos para o adeus a um senhor feudal do narcotráfico. O prodígio TH escalou rápido nos negócios do crime. Já havia uns 10 anos que reinava em territórios do Rio, ofertando trabalho, entretenimento e serviços ‘públicos’. Seu aparato de segurança tinha padrão presidencial (sua residência ‘oficial’ era guardada por 30 homens com material militar pesado). Nas comunidades governadas por TH a ordem era atirar em qualquer veículo que atravessasse a fronteira do seu feudo sem ‘visto de acesso’.
Homenagens como essas prestadas a TH não são novidade no Rio, em São Paulo, no Brasil afora, nem América Latina. Foram comuns, algumas décadas atrás, até mesmo na Itália, nos EUA, Leste Europeu e Japão. No fim das contas, fica a dica de que, mesmo em pleno século XXI, nenhum Estado soberano e democrático pode prescindir de se (re)legitimar a toda hora, em todos os seus rincões e, principalmente, para todos os seus cidadãos.
Felipe Sampaio
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