Esta ideia atingiu-me com estrondo numa tarde de domingo em que, contra todas as minhas rotinas e por motivos que agora não vêm ao caso, tive de entrar num grande centro comercial, mesmo nas franjas de Lisboa. Olhei em volta e percebi o quão longe estava de casa. Não tinha sequer passado as fronteiras do concelho e o que via era um país estrangeiro, longe do café de especialidade onde vendem matchas latte a cinco euros, mas também da tasca onde se come um almoço por pouco mais que isso.
Nunca tive grandes dúvidas de que a classe média é uma espécie de animal político mitológico. É mais um sítio onde se quer estar do que onde se está realmente. Sobretudo, quando o salário médio líquido fica pouco acima dos mil euros, exatamente o preço que me aparece primeiro quando faço no Idealista uma pesquisa por um T2 para arrendar na Amadora.
Naquela tarde de domingo tive, contudo, a sensação de estar a ver à minha frente esse unicórnio económico que é a classe média. Pessoas com capacidade de consumo, mas não tanto que nos pareçam abastadas. Pessoas a quem provavelmente parece absurdo pagar 1,60 euros por café – como já se cobra no meu bairro – mas que parecem ter o suficiente para ter aquilo a que se chama uma vida confortável: uma casa paga sem grandes sobressaltos, férias fora de casa pelo menos uma vez por ano e um automóvel.
Suponho que seja isto a que se chama classe média. E o motivo por que me pareceram tão estranhos é que, nos lugares por onde ando no centro da cidade, estou mais habituada a ver os extremos da escala social, mesmo que os de baixo não sejam sempre indigentes, mas muitas vezes profissionais intelectuais, cada vez mais espremidos pelo custo de vida crescente, que se vão aguentando em Lisboa por já terem casa paga ou ajudas familiares.
As pessoas que enchiam o centro comercial naquela tarde de domingo são as mesmas que todos os dias perdem horas de vida no trânsito. E talvez isso explique o ar impaciente, fechado, irritadiço com que se moviam pelo espaço apinhado, debaixo das luzes fluorescentes.
Saem de casa de manhã cedo. Trabalham o dia todo, muitas vezes com uma pausa rápida para comer em frente ao computador ou de pé num balcão. Trabalham muito. Procuram creche para os filhos e não a encontram. Acabam por pôr os miúdos num colégio, porque acreditam que é um investimento no futuro. Quando estão doentes, não têm médico de família e veem-se obrigados a ir ao privado. E pagam. Pagam sempre. Têm a sensação de que estão sempre a pagar. Ao final do dia, vão outra vez para a fila do trânsito. Chegam tarde e cansados, sem energia para ler ou brincar com as crianças. É preciso fazer o jantar, os TPC a correr e aos berros, os banhos, a lancheira do dia seguinte. E o dia seguinte será igual. Tudo lhes parece igual, a não ser talvez aquelas férias que lá vão conseguindo pagar, mas que também acabam por lhes saber ao mesmo, porque são curtas. E a vida não avança nem muda. E, tal como todas as outras pessoas de todas as outras classes, estão esgotados, sugados pelos ecrãs, pelas solicitações constantes, pelas mensagens e notificações, pela vida dos outros que lhes aparece pelas redes sociais e parece sempre tão melhor.
Pensei muito nestas pessoas desde domingo. Não porque as veja como um bando de ressentidos, zangados. Embora acredite que muitos deles o estão. Fartos de serem olhados de alto por quem está por cima e os desdenha. E cansados de sentirem que os que estão abaixo competem consigo pelos escassos recursos públicos e que muitas vezes (pelo menos é isso que acham) acabam por ficar com uma parte maior do bolo do aquela que lhes cabe a eles, que até o estão a pagar.
Pensei muito nestas pessoas, enquanto me fui cruzando com gente cabisbaixa, de um centrão que se acha moderado e razoável, atarantado com a ideia de que o país se radicalizou. Pensei muito nestas pessoas, enquanto me fui cruzando com gente amedrontada, de uma esquerda que desce as avenidas com cravos no peito e teme uma regressão revanchista, que vê como uma ameaça existencial.
Por onde ando, há muita gente cabisbaixa e amedrontada. E o que os cabisbaixos e amedrontados têm em comum é a sensação de incompreensão. Acordaram e não reconhecem o país em que vivem.
Os outros, aqueles com quem não se cruzam, não estão cabisbaixos nem amedrontados. Estão exultantes com o murro na mesa que deram, mesmo que nem sempre calculem bem até onde podem ser abalados por esse abanão. E, acima de tudo, sentem que não têm nada de que ter medo.
E é aí que quero pôr o dedo nesta reflexão. Eles não têm medo, porque a liberdade, a fraternidade e a igualdade não lhes dizem nada. Nas suas vidas repetidas e sem horizonte, não há nenhuma liberdade que vejam como ameaçada. Sobretudo, se são homens, brancos e heterossexuais. Quem poderá vir atrás deles? Não há nenhuma fraternidade que ultrapasse as fronteiras dos seus laços familiares. Nas vidas feitas dentro de carros, não há uma comunidade que os faça sentir irmãos de estranhos, que lhes parece pesado e injusto ajudarem quando precisam. Não há nenhuma igualdade, porque a vida os levou a acreditar que só se safa quem se esforça ou é esperto e se estão a falhar é porque não se esforçam ou há bandidos que lhes passam a perna. É o velho “quem não deve não teme”. E eles acham que não devem e, por isso, não temem.
Esta incompreensão mútua é como um buraco que se abriu debaixo dos nossos pés. O país não mudou. Só tem agora um espelho que o reflete de forma mais fiel. Vamos ter de nos habituar ao que vemos, primeiro. Só depois poderemos começar a pensar numa maneira de mudar as coisas. Porque sim, há sempre uma maneira de mudar as coisas.

Nenhum comentário:
Postar um comentário