Em poucos lugares do mundo essa mudança foi tão espetacular quanto no Brasil, onde os ventos da diminuição do papel do Estado sopravam em categoria de furacão antes da pandemia. As imagens do então Ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (conhecido pela sua proximidade das empresas de seguro privado de saúde) em coletivas diárias usando o colete do Sistema Único de Saúde, são emblemáticas dessa mudança.
Mudou também a agenda de discussão de políticas públicas. Uma ampla coalizão de parlamentares e atores da sociedade civil conseguiu emplacar a discussão sobre renda mínima no Congresso Nacional e um auxílio emergencial foi aprovado pela grande maioria. O tema da desigualdade, tão em baixa nos últimos anos, voltou ao centro do debate. E, com ele, o papel do Estado.
Temos Estado demais ou de menos? Esta pergunta clássica não é mais adequada. A questão mais importante no momento atual precisa ser: que tipo de Estado queremos? Criticar o discurso antipolítico e antiestado do neoliberalismo extremo não significa aceitar que qualquer Estado serve. As ameaças à privacidade e aos direitos humanos das ações de vigilância do Estado, justificadas sob o manto da guerra contra o vírus, ilustram bem o argumento. Em países com regime autoritário, como China ou Vietnã, as políticas contra a pandemia foram implementadas de forma rápida e brutal, a partir do poder repressor do Estado. O Vietnã, apesar de fazer fronteira com a China e ter um sistema de saúde pouco eficiente, tem sido amplamente reconhecido como caso de sucesso.
Para evitar a pandemia, o governo vietnamita tomou medidas radicais, como o isolamento de cidades inteiras por semanas ainda em fevereiro. Em países democráticos, também há casos de êxito. A Áustria, que faz fronteira com outro país muito afetado pela pandemia, a Itália, conseguiu controlar o número de casos de contaminações e mortes e foi um dos primeiros na Europa a relaxar a política de isolamento. No caso austríaco, as medidas adotadas pelo Estado obtiveram amplo apoio da população, que seguiu as orientações das autoridades sem a organização de carreatas ou protestos contra o isolamento como os que vemos acontecer, por exemplo, nos Estados Unidos.
Em países como o Brasil, nem a saída vietnamita e nem a austríaca funcionam. No primeiro caso, porque o Estado, felizmente, não tem a capacidade repressora necessária. No segundo, por que o Estado, infelizmente, não detém a legitimidade necessária. A ausência de uma frente unificada de partidos e líderes políticos sobre o melhor caminho a adotar para enfrentar a crise só contribui para dificultar ainda mais a ação estatal, pese aos esforços de muitas autoridades locais. O resultado é um Estado errático e inconsistente, incapaz de proteger grande parte da população da doença e dos efeitos econômicos da pandemia.
É nesse contexto que surgem pelo país afora uma diversidade de iniciativas sociais criadas por comunidades periféricas, que procuram se proteger da doença por conta própria. Grupos locais têm lançado campanhas para arrecadar recursos para distribuir kits de higiene e alimentos. Em Paraisópolis (uma das maiores favelas de São Paulo), por exemplo, organizações locais criaram o título de “presidente de rua” para as dezenas de lideranças locais que organizam o isolamento social e a distribuição de doações. A associação de moradores chegou a contratar uma equipe médica para atender a população. No Rio de Janeiro, a Redes da Maré lançou a campanha “Maré diz NÃO ao Coronavírus”, que mobiliza voluntários e arrecada recursos. O Instituto Marielle Franco criou um mapa de iniciativas para tornar visíveis ações similares país afora. Nosso grupo de pesquisa na Universidade de Brasília, o Resocie, também vem catalogando experiências de comunidades pobres que buscam enfrentar a pandemia com os recursos que conseguem mobilizar por conta própria.
É claro que esses recursos estão longe de ser suficientes para combater uma doença que vem derrubando economias do mundo inteiro. Essas iniciativas representam menos uma solução em si, do que a sinalização de que as comunidades pobres do país contam com organizações que têm, muitas vezes, mais legitimidade como representantes das preocupações locais do que o próprio Estado.
Devido às décadas de ausência do Estado, organizações locais como as mencionadas acima detêm conhecimento único sobre as necessidades dos moradores e os desafios que enfrentam. Além disso, desenvolveram estratégias de organização e de comunicação para lidar com emergências, como por exemplo o drama das enchentes anuais. Mais crucial ainda, atores locais contam com a confiança dos moradores, algo que a cientista política Gabriela Lotta mostrou, em seu estudo sobre agentes comunitários de saúde, ter impacto positivo na implementação de políticas nas periferias.
Conhecimento capilarizado, experiência com situações de crise, confiança da população: são os ingredientes que o Estado mais precisa neste momento. Mas estas qualidades somente poderão ser mobilizadas efetivamente se os atores locais tiverem voz na construção e implementação de políticas de combate à pandemia, de forma a poder adaptá-las às suas realidades.
Algumas iniciativas já mostram que a colaboração entre organizações estatais e atores locais é viável e produz bons resultados. Um exemplo é a “Campanha Se Liga no Corona!”, uma parceria entre a Fundação Osvaldo Cruz, a entidade não governamental Redes da Maré e organizações de Manguinhos, no Rio de Janeiro. A Fiocruz, que é vinculada ao Ministério da Saúde, está apoiando comunicadores populares dessas favelas para disseminar informação correta, em linguagem acessível, sobre como combater a propagação do coronavírus.
Em um país com altos níveis de desigualdade e capacidade estatal deficiente como o Brasil, a crise sanitária aberta pelo coronavírus vai de mãos dadas com uma crise humanitária. A sociedade civil tem se mobilizado para ajudar os mais vulneráveis a enfrentarem ambas crises. No entanto, seus recursos são escassos e a tendência é que, à medida que passa o tempo, as iniciativas sejam afetadas pela diminuição das doações e o cansaço dos voluntários. Até mesmo a solidariedade tem limites. Precisamos do Estado. Não necessariamente do Estado maior, e certamente não do Estado mais repressor, mas sim do Estado mais democrático, que aproveite e fortaleça mobilizações comunitárias como as mencionadas neste artigo.
Rebecca Abers e Marisa von Bülow (Instituto de Ciência Política da UnB)
Mudou também a agenda de discussão de políticas públicas. Uma ampla coalizão de parlamentares e atores da sociedade civil conseguiu emplacar a discussão sobre renda mínima no Congresso Nacional e um auxílio emergencial foi aprovado pela grande maioria. O tema da desigualdade, tão em baixa nos últimos anos, voltou ao centro do debate. E, com ele, o papel do Estado.
Temos Estado demais ou de menos? Esta pergunta clássica não é mais adequada. A questão mais importante no momento atual precisa ser: que tipo de Estado queremos? Criticar o discurso antipolítico e antiestado do neoliberalismo extremo não significa aceitar que qualquer Estado serve. As ameaças à privacidade e aos direitos humanos das ações de vigilância do Estado, justificadas sob o manto da guerra contra o vírus, ilustram bem o argumento. Em países com regime autoritário, como China ou Vietnã, as políticas contra a pandemia foram implementadas de forma rápida e brutal, a partir do poder repressor do Estado. O Vietnã, apesar de fazer fronteira com a China e ter um sistema de saúde pouco eficiente, tem sido amplamente reconhecido como caso de sucesso.
Para evitar a pandemia, o governo vietnamita tomou medidas radicais, como o isolamento de cidades inteiras por semanas ainda em fevereiro. Em países democráticos, também há casos de êxito. A Áustria, que faz fronteira com outro país muito afetado pela pandemia, a Itália, conseguiu controlar o número de casos de contaminações e mortes e foi um dos primeiros na Europa a relaxar a política de isolamento. No caso austríaco, as medidas adotadas pelo Estado obtiveram amplo apoio da população, que seguiu as orientações das autoridades sem a organização de carreatas ou protestos contra o isolamento como os que vemos acontecer, por exemplo, nos Estados Unidos.
Em países como o Brasil, nem a saída vietnamita e nem a austríaca funcionam. No primeiro caso, porque o Estado, felizmente, não tem a capacidade repressora necessária. No segundo, por que o Estado, infelizmente, não detém a legitimidade necessária. A ausência de uma frente unificada de partidos e líderes políticos sobre o melhor caminho a adotar para enfrentar a crise só contribui para dificultar ainda mais a ação estatal, pese aos esforços de muitas autoridades locais. O resultado é um Estado errático e inconsistente, incapaz de proteger grande parte da população da doença e dos efeitos econômicos da pandemia.
É nesse contexto que surgem pelo país afora uma diversidade de iniciativas sociais criadas por comunidades periféricas, que procuram se proteger da doença por conta própria. Grupos locais têm lançado campanhas para arrecadar recursos para distribuir kits de higiene e alimentos. Em Paraisópolis (uma das maiores favelas de São Paulo), por exemplo, organizações locais criaram o título de “presidente de rua” para as dezenas de lideranças locais que organizam o isolamento social e a distribuição de doações. A associação de moradores chegou a contratar uma equipe médica para atender a população. No Rio de Janeiro, a Redes da Maré lançou a campanha “Maré diz NÃO ao Coronavírus”, que mobiliza voluntários e arrecada recursos. O Instituto Marielle Franco criou um mapa de iniciativas para tornar visíveis ações similares país afora. Nosso grupo de pesquisa na Universidade de Brasília, o Resocie, também vem catalogando experiências de comunidades pobres que buscam enfrentar a pandemia com os recursos que conseguem mobilizar por conta própria.
É claro que esses recursos estão longe de ser suficientes para combater uma doença que vem derrubando economias do mundo inteiro. Essas iniciativas representam menos uma solução em si, do que a sinalização de que as comunidades pobres do país contam com organizações que têm, muitas vezes, mais legitimidade como representantes das preocupações locais do que o próprio Estado.
Devido às décadas de ausência do Estado, organizações locais como as mencionadas acima detêm conhecimento único sobre as necessidades dos moradores e os desafios que enfrentam. Além disso, desenvolveram estratégias de organização e de comunicação para lidar com emergências, como por exemplo o drama das enchentes anuais. Mais crucial ainda, atores locais contam com a confiança dos moradores, algo que a cientista política Gabriela Lotta mostrou, em seu estudo sobre agentes comunitários de saúde, ter impacto positivo na implementação de políticas nas periferias.
Conhecimento capilarizado, experiência com situações de crise, confiança da população: são os ingredientes que o Estado mais precisa neste momento. Mas estas qualidades somente poderão ser mobilizadas efetivamente se os atores locais tiverem voz na construção e implementação de políticas de combate à pandemia, de forma a poder adaptá-las às suas realidades.
Algumas iniciativas já mostram que a colaboração entre organizações estatais e atores locais é viável e produz bons resultados. Um exemplo é a “Campanha Se Liga no Corona!”, uma parceria entre a Fundação Osvaldo Cruz, a entidade não governamental Redes da Maré e organizações de Manguinhos, no Rio de Janeiro. A Fiocruz, que é vinculada ao Ministério da Saúde, está apoiando comunicadores populares dessas favelas para disseminar informação correta, em linguagem acessível, sobre como combater a propagação do coronavírus.
Em um país com altos níveis de desigualdade e capacidade estatal deficiente como o Brasil, a crise sanitária aberta pelo coronavírus vai de mãos dadas com uma crise humanitária. A sociedade civil tem se mobilizado para ajudar os mais vulneráveis a enfrentarem ambas crises. No entanto, seus recursos são escassos e a tendência é que, à medida que passa o tempo, as iniciativas sejam afetadas pela diminuição das doações e o cansaço dos voluntários. Até mesmo a solidariedade tem limites. Precisamos do Estado. Não necessariamente do Estado maior, e certamente não do Estado mais repressor, mas sim do Estado mais democrático, que aproveite e fortaleça mobilizações comunitárias como as mencionadas neste artigo.
Rebecca Abers e Marisa von Bülow (Instituto de Ciência Política da UnB)