domingo, 17 de maio de 2020

A pandemia e o Estado que queremos

Em março, um meme viralizou nas redes sociais. Dizia: “Se ateus descobrem Deus quando enfrentam a morte, neoliberais descobrem Keynes quando enfrentam uma pandemia”. Era uma alusão irônica à transmutação de líderes que até pouco tempo atrás defendiam cortes nas políticas sociais e ajustes fiscais e que, no contexto da pandemia, passaram a vestir a camisa dos sistemas públicos de saúde e a defender o aumento de gastos públicos.


Em poucos lugares do mundo essa mudança foi tão espetacular quanto no Brasil, onde os ventos da diminuição do papel do Estado sopravam em categoria de furacão antes da pandemia. As imagens do então Ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (conhecido pela sua proximidade das empresas de seguro privado de saúde) em coletivas diárias usando o colete do Sistema Único de Saúde, são emblemáticas dessa mudança.

Mudou também a agenda de discussão de políticas públicas. Uma ampla coalizão de parlamentares e atores da sociedade civil conseguiu emplacar a discussão sobre renda mínima no Congresso Nacional e um auxílio emergencial foi aprovado pela grande maioria. O tema da desigualdade, tão em baixa nos últimos anos, voltou ao centro do debate. E, com ele, o papel do Estado.

Temos Estado demais ou de menos? Esta pergunta clássica não é mais adequada. A questão mais importante no momento atual precisa ser: que tipo de Estado queremos? Criticar o discurso antipolítico e antiestado do neoliberalismo extremo não significa aceitar que qualquer Estado serve. As ameaças à privacidade e aos direitos humanos das ações de vigilância do Estado, justificadas sob o manto da guerra contra o vírus, ilustram bem o argumento. Em países com regime autoritário, como China ou Vietnã, as políticas contra a pandemia foram implementadas de forma rápida e brutal, a partir do poder repressor do Estado. O Vietnã, apesar de fazer fronteira com a China e ter um sistema de saúde pouco eficiente, tem sido amplamente reconhecido como caso de sucesso.

Para evitar a pandemia, o governo vietnamita tomou medidas radicais, como o isolamento de cidades inteiras por semanas ainda em fevereiro. Em países democráticos, também há casos de êxito. A Áustria, que faz fronteira com outro país muito afetado pela pandemia, a Itália, conseguiu controlar o número de casos de contaminações e mortes e foi um dos primeiros na Europa a relaxar a política de isolamento. No caso austríaco, as medidas adotadas pelo Estado obtiveram amplo apoio da população, que seguiu as orientações das autoridades sem a organização de carreatas ou protestos contra o isolamento como os que vemos acontecer, por exemplo, nos Estados Unidos.

Em países como o Brasil, nem a saída vietnamita e nem a austríaca funcionam. No primeiro caso, porque o Estado, felizmente, não tem a capacidade repressora necessária. No segundo, por que o Estado, infelizmente, não detém a legitimidade necessária. A ausência de uma frente unificada de partidos e líderes políticos sobre o melhor caminho a adotar para enfrentar a crise só contribui para dificultar ainda mais a ação estatal, pese aos esforços de muitas autoridades locais. O resultado é um Estado errático e inconsistente, incapaz de proteger grande parte da população da doença e dos efeitos econômicos da pandemia.

É nesse contexto que surgem pelo país afora uma diversidade de iniciativas sociais criadas por comunidades periféricas, que procuram se proteger da doença por conta própria. Grupos locais têm lançado campanhas para arrecadar recursos para distribuir kits de higiene e alimentos. Em Paraisópolis (uma das maiores favelas de São Paulo), por exemplo, organizações locais criaram o título de “presidente de rua” para as dezenas de lideranças locais que organizam o isolamento social e a distribuição de doações. A associação de moradores chegou a contratar uma equipe médica para atender a população. No Rio de Janeiro, a Redes da Maré lançou a campanha “Maré diz NÃO ao Coronavírus”, que mobiliza voluntários e arrecada recursos. O Instituto Marielle Franco criou um mapa de iniciativas para tornar visíveis ações similares país afora. Nosso grupo de pesquisa na Universidade de Brasília, o Resocie, também vem catalogando experiências de comunidades pobres que buscam enfrentar a pandemia com os recursos que conseguem mobilizar por conta própria.

É claro que esses recursos estão longe de ser suficientes para combater uma doença que vem derrubando economias do mundo inteiro. Essas iniciativas representam menos uma solução em si, do que a sinalização de que as comunidades pobres do país contam com organizações que têm, muitas vezes, mais legitimidade como representantes das preocupações locais do que o próprio Estado.

Devido às décadas de ausência do Estado, organizações locais como as mencionadas acima detêm conhecimento único sobre as necessidades dos moradores e os desafios que enfrentam. Além disso, desenvolveram estratégias de organização e de comunicação para lidar com emergências, como por exemplo o drama das enchentes anuais. Mais crucial ainda, atores locais contam com a confiança dos moradores, algo que a cientista política Gabriela Lotta mostrou, em seu estudo sobre agentes comunitários de saúde, ter impacto positivo na implementação de políticas nas periferias.

Conhecimento capilarizado, experiência com situações de crise, confiança da população: são os ingredientes que o Estado mais precisa neste momento. Mas estas qualidades somente poderão ser mobilizadas efetivamente se os atores locais tiverem voz na construção e implementação de políticas de combate à pandemia, de forma a poder adaptá-las às suas realidades.

Algumas iniciativas já mostram que a colaboração entre organizações estatais e atores locais é viável e produz bons resultados. Um exemplo é a “Campanha Se Liga no Corona!”, uma parceria entre a Fundação Osvaldo Cruz, a entidade não governamental Redes da Maré e organizações de Manguinhos, no Rio de Janeiro. A Fiocruz, que é vinculada ao Ministério da Saúde, está apoiando comunicadores populares dessas favelas para disseminar informação correta, em linguagem acessível, sobre como combater a propagação do coronavírus.

Em um país com altos níveis de desigualdade e capacidade estatal deficiente como o Brasil, a crise sanitária aberta pelo coronavírus vai de mãos dadas com uma crise humanitária. A sociedade civil tem se mobilizado para ajudar os mais vulneráveis a enfrentarem ambas crises. No entanto, seus recursos são escassos e a tendência é que, à medida que passa o tempo, as iniciativas sejam afetadas pela diminuição das doações e o cansaço dos voluntários. Até mesmo a solidariedade tem limites. Precisamos do Estado. Não necessariamente do Estado maior, e certamente não do Estado mais repressor, mas sim do Estado mais democrático, que aproveite e fortaleça mobilizações comunitárias como as mencionadas neste artigo.
Rebecca Abers e Marisa von Bülow (Instituto de Ciência Política da UnB)

Piada no exterior

'Terceiro mundo, se for/
Piada no exterior/
Mas o Brasil vai ficar rico/
Vamos faturar um milhão'


Renato Russo escreveu os versos de Que País é Esse? em 1987. De lá para cá, voltamos a eleger presidentes, dois dos cinco eleitos sofreram impeachment, ainda integramos o que se chamava de Terceiro Mundo na época dele, e agora se diz eufemisticamente país em desenvolvimento, e vivemos a primeira pandemia de um século que o líder do Legião Urbana não chegou a conhecer ainda na condição de piada no exterior.


O desgoverno Jair Bolsonaro, como o Estado consagrou em sua capa neste sábado, nos faz enfrentar o novo coronavírus de forma destrambelhada. Irresponsabilidade, omissão, sarcasmo, falta de empatia, autoritarismo, fanatismo, desapreço pela ciência e desprezo pela vida compõem o arsenal que o presidente da República lança, como perdigotos tóxicos, sobre uma Nação estupefata todos os dias.

Jogamos fora a vantagem temporal que tínhamos em relação à Ásia, à Europa e aos Estados Unidos no enfrentamento da covid-19 descartando as experiências exitosas que essas regiões tiveram e piorando as desastradas, algo que choca a imprensa internacional, a comunidade médica e científica global e os investidores já assustados com uma recessão planetária sem precedentes. É perceptível em textos de publicações científicas internacionais, em comentários em telejornais de outros países e em análises que agências de risco ou papers acadêmicos a dificuldade até de explicar certas atitudes e declarações de Bolsonaro, dado seu descolamento de qualquer traço de realidade.

A demissão do segundo ministro da Saúde em 29 dias no pico da pandemia foi a cereja desse bolo de vergonha mundial que somos obrigados a passar, como se já não fossem tantos os desafios perturbadores impostos pelo desgoverno e pela pandemia em si.

Paulo Guedes pode se esgoelar para falar que fez tudo certo, Tereza Cristina merece elogios por tentar limpar nossa barra com parceiros comerciais ofendidos grosseiramente por seu chefe e seus pares, mas não nos enganemos: dada nossa incapacidade de formular qualquer plano racional para saída programada de um isolamento sabotado desde o dia 1 pelo presidente, pegaremos a cauda do cometa da recuperação econômica global. Essa retomada não será nada simples, nem linear. Os países reemergem de suas quarentenas atingidos de forma diferente e mais fechados.

Quem vai querer investir num país em que o presidente assina uma MP eximindo servidores de responsabilidade por atos tomados durante a pandemia ao mesmo tempo em que tenta forçar um ministro (qualquer um) a assinar decreto tornando protocolo de tratamento um remédio cuja eficácia já foi questionada por estudos no mundo todo? Que está prestes a ser mostrado em áudio e vídeo em todo seu esplendor apoplético e autoritário dizendo que vai intervir na Polícia Federal para proteger sua família e “ponto final”?

Que já demitiu 11 ministros em 500 dias e ameaça, estufando o peito de orgulho, fazer (mais) um pronunciamento em rádio e TV vociferando contra o necessário e até aqui insuficiente isolamento social? Vamos ficar ilhados no Brasil, com dificuldade para obter vistos para viagens de turismo ou negócios, talvez sem sermos convidados até para campeonatos de futebol pelos vizinhos mais pobres, mas mais bem sucedidos no combate ao vírus.

A música da epígrafe tem ainda os versos “ninguém respeita a Constituição, mas todos acreditam no futuro da Nação”. Só que enquanto Bolsonaro vilipendia a primeira sob silêncio conivente de seus ministros e dos demais Poderes, esse futuro se torna mais distante. Não sabemos qual será o mundo pós-covid-19. Mas podemos cravar que o Brasil estará no fim da fila para ingressar nele.

O sanatório do Dr. Jair

O slogan “Brasil acima de tudo” está prestes a ganhar novo significado. Desgovernado pelo bolsonarismo, o país marcha para o topo do ranking de mortes diárias pelo coronavírus. Ultrapassar os Estados Unidos virou questão de semanas, prevê o médico Drauzio Varella. “O Brasil vai ser o epicentro da epidemia mundial”, ele resumiu, em debate promovido na quinta-feira pela Oxfam.

Em tempos normais, o país já estaria condenado a uma crise humanitária. O vírus cobraria a conta histórica da desigualdade e da falta de investimentos em saúde e moradia popular. O negacionismo do capitão elevou o patamar da tragédia. Ele desprezou a ciência e torpedeou as medidas de distanciamento, necessárias para frear a contaminação.



O Brasil é o único país do mundo que descartou dois ministros da Saúde em plena pandemia. O primeiro foi chutado porque resistiu às ordens para sabotar governadores e iludir doentes com um remédio milagroso. O segundo entregou o cargo pelas mesmas razões.

Nelson Teich assumiu com a promessa de “alinhamento completo” a Bolsonaro. Precisou de 28 dias para desistir do papel de fantoche. Indicado por um empreiteiro amigo, ele se limitava a assinar papéis num ministério loteado entre militares. Em sua breve gestão, o número oficial de mortes saltou de 1.924 para 14.817.

O oncologista desperdiçou a última chance de prestar um serviço público ao sair sem denunciar o que viu. Sua queda mostra que não há limites para o mandonismo e a insensatez no sanatório do Dr. Jair.

Em 500 dias no Planalto, Bolsonaro afastou todos os auxiliares que ousaram questioná-lo. Sobraram os lunáticos, os oportunistas e os generais que toparam o papel de cúmplices. Eles colaram a imagem das Forças Armadas a um presidente que põe o próprio povo em risco e usa o poder para proteger os filhos da polícia.

Na sexta, horas depois da saída de Teich, um quarteto de ministros foi à TV para defender o chefe. O general Luiz Eduardo Ramos acusou a imprensa de instalar um “clima de terror”. Ele entrou na escola de cadetes em 1973, quando a ditadura censurava notícias sobre uma epidemia de meningite. Mais ousado, o general Braga Netto culpou o jornalismo por casos de depressão e violência doméstica na quarentena. Faltou pouco para sugerir que as emissoras deixem de cobrir a pandemia para exibir paradas militares.

Damares Alves, a pastora que dá tom de chanchada ao desgoverno, citou estudos inexistentes para sustentar que “a cloroquina faz bem”. Paulo Guedes, o economista do bolsonarismo, discursou em defesa do “direito de ser infectado”. Deixou de dizer que o egoísmo pode tirar o leito hospitalar de quem respeita o isolamento.

Guedes não se cansa de naturalizar o autoritarismo e repetir a propaganda enganosa do capitão. Na sexta, ele descreveu Bolsonaro como “um democrata” que “não concorda com a velha política” e combate o “aparelhamento”. No mesmo dia, o Dr. Jair reconduziu Carlos Marun, fiel escudeiro de Eduardo Cunha, ao conselho de Itaipu. O ex-deputado continuará a embolsar R$ 27 mil por mês com a sinecura. O dinheiro poderia sustentar 45 famílias com o auxílio emergencial de R$ 600.

Pensamento do Dia


Quantos já não avisaram?

Uma pequena fábula conta que um jovem prisioneiro na Alemanha voltou a Bonn, poucos anos após a guerra, para se vingar com a vista dos escombros. Mas eis que, no fundo de uma rua, surge uma banda tocando uma marcha militar e o jovem começa a chorar. A fábula é do século passado, tem mais de quarenta anos, o poeta Tonino Guerra a escreveu. Tonino Guerra avisou. Primo Levi também avisou, insistentemente, durante décadas. Que o terror vai sendo gestado em mínimas crisálidas. Que há uma poeira aparentemente inofensiva que amanhã reunirá as cinzas de um futuro. A diáspora dos nazis como uma semeadura de sombras. Por algum tempo eles se entocaram, ocultaram-se sob outros nomes, outras identidades, e foram sobrevivendo com risco de serem caçados. Mas há muito que deixaram suas tocas, com gosto especial de se exibirem em tempos de pandemia, e pouco têm a esconder que já não lhes suba à cara. Alguém diz que avisou, quando tudo e todos se afogam em evidências, mas quantos já não avisavam quando ainda mal varridas as ruínas do pós-guerra. Que era preciso não desmerecer os indícios. Não se fazer de cego, surdo e mudo. Em todas essas coisas reles, esquecíveis, corriqueiras, que só agora prestamos atenção por causa de um vírus, em todas essas coisas comuns e em circunstâncias as mais banais, eles também foram se infiltrando, livres de denúncia, como se irrelevantes. As nossas máscaras obrigatórias, agora, fazem as vezes de mordaça, o protocolo de lavar constantemente as mãos nunca as deixa limpas e faz tempo que já é tarde.
Mariana Ianelli

Tentar viver direito



A melhor coisa para homenagear quem se foi é tentar viver direito de novo. Não pode deixar que a morte destrua tudo que tem de bom
Lya Luft

Coisas que não quero esquecer do confinamento

No confinamento, acredito, abrimos os olhos para muito do que está à nossa volta, dentro de casa e no mundo. É fácil, agora, voltar a fechá-los, à medida que nos vamos habituando às regras desta nova vida, embora ainda à espera de que tudo volte a um suposto normal que, na verdade, já não sabemos muito bem como é ou como será. Quero acreditar que, apesar de tudo, algo irá mudar para que não fique exatamente tudo na mesma (ao contrário do que proclamava o príncipe de Falconeri, em O Leopardo). Mas isso só sucederá se não nos esquecermos do que aprendemos nos últimos tempos. Cinco exemplos:
1 - Os trabalhadores das profissões menos valorizadas são, no seu conjunto, os mais essenciais ao funcionamento do País. Como esta crise o demonstrou, durante semanas, são eles que mantêm ativos os serviços básicos – fundamentais para a ideia e o sentimento de coesão nacional. Tudo aquilo que damos por garantido, como o abastecimento regular de bens alimentares, as ruas limpas e seguras, os transportes públicos, o funcionamento dos serviços de eletricidade, de água e de saneamento básico, o transporte de mercadorias e até o apoio a idosos ou a outros grupos desfavorecidos, é assegurado por milhares de pessoas que, na generalidade dos casos, levam para casa pouco mais do que o ordenado mínimo. Durante o confinamento, a ação destes trabalhadores de serviços essenciais foi elogiada por todos. É bom que essa memória não se perca – em especial, quando eles vierem pedir uma mais justa valorização das suas profissões e do seu nível de vida.


2 - A saúde é o nosso bem mais precioso. Os últimos tempos foram eloquentes quanto à necessidade de se ter um Serviço Nacional de Saúde (SNS) forte, ativo e eficaz, mas que saiba também reconhecer e premiar a dedicação, o empenho e o profissionalismo dos seus profissionais. Viu-se, em todo o mundo, a diferença que há entre um SNS vocacionado para responder às necessidades de toda uma população e os serviços de saúde centrados apenas na chamada eficiência, mas sobretudo no negócio. Nos primeiros meses da pandemia, o nosso SNS conseguiu estar à altura e não colapsar como tantos outros. Mas a maratona ainda vai nos primeiros quilómetros e, apesar das ovações escutadas nas ruas, a meta continua longe. A lição ficou: o SNS não pode ser visto como uma despesa; tem de ser encarado e acarinhado como um investimento – para o bem comum.

3 - A confiança na Ciência é a melhor forma de preparar o futuro. Nesta crise, até os líderes religiosos aceitaram os conselhos dos cientistas, e foram encerrados igrejas, mesquitas, sinagogas e templos. Os países que mais depressa responderam às indicações dos cientistas foram os que registaram menos vítimas. As nações governadas por líderes populistas, conhecidos pela sua insistência em teorias negacionistas, tiveram os resultados que se observam no Brasil e nos EUA. Mais: a Ciência voltou a dar-nos a verdadeira noção do tempo e, em simultâneo, da pequenez dos indivíduos na Natureza. E demonstrou como a transparência na informação e a cooperação planetária são fundamentais para fazer face a qualquer ameaça global. É preciso que a Ciência volte a ocupar um papel central no processo de decisão – até porque esta pandemia ainda não acabou, e temos um planeta a precisar de ser preservado… se o quisermos continuar a habitar.

4 - Os nossos comportamentos individuais têm consequências coletivas. Esta pandemia demonstrou que a forma como nos comportamos é decisiva para conter, ou não, a propagação do vírus, salvar ou condenar pessoas. Mas também nos levou a pensar mais como os nossos gestos e atos podem ser importantes para melhorar a vida das sociedades, redescobrir os laços de vizinhança, sentirmo-nos todos habitantes de um planeta comum.

5 - A internet passou a ser um bem essencial. Comunicar e partilhar dados tornou-se tão básico como os serviços de água, de eletricidade e de saneamento básico. É preciso pensar nisso a sério e repensar o poder imenso dos gigantes tecnológicos nesse bem essencial.

O legado possível da pandemia

Já ficou gasta, pelo excessivo uso, a afirmação de que as crises, por um lado, geram desafios, ameaças e problemas graves, por outro, abrem oportunidades. Do enfrentamento de eventos catastróficos como a atual pandemia do coronavírus e do aprendizado individual e coletivo decorrente podem nascer mudanças de atitudes, gerando saltos de qualidade nas políticas públicas, no comportamento empresarial e no relacionamento humano e social.

Tudo pode acontecer, inclusive nada. Não é uma decorrência automática. Depende do comportamento de cada um e de todos. A “gripe espanhola” de 2018, que infectou 25% da população mundial da época – 500 milhões de pessoas – e levou à morte de 17 milhões a 100 milhões de pessoas, segundo as precárias e imprecisas estatísticas, se deu em plena 1ª Guerra Mundial e não obrigatoriamente gerou mais solidariedade e integração entre as nações e as pessoas, visto que logo à frente tivemos a maior recessão da história em 1929 e a 2ª Guerra Mundial, de 1939 a 1945.

Sejamos otimistas. Vamos torcer e trabalhar para que a pandemia da Covid-19 produza, no Brasil e no mundo, avanços civilizatórios na direção de uma sociedade mais solidária, humana, justa e democrática. A saúde, que sempre foi uma preocupação central dos brasileiros, assumiu um protagonismo inédito. O verdadeiro bombardeio de notícias e informações sobre o coronavírus, roubando a cena de outros assuntos da política e da economia, tende a gerar uma atenção maior às políticas públicas de saúde. Um primeiro legado da pandemia, portanto, pode ser o crescimento da consciência de que é preciso aumentar os investimentos em saúde e melhorar muito a gestão de nosso sistema.


O sistema brasileiro de saúde – apesar de o SUS carregar no nome a palavra “único” – é composto de três subsistemas: o sistema público nacional universal, de cobertura integral e gratuita; a saúde suplementar – planos e seguros privados; e o sistema de desembolso direto dos cidadãos – os pagamentos particulares feitos nos balcões das farmácias e laboratórios ou para remunerar serviços médicos e odontológicos.

O SUS é ancorado no texto constitucional e na Lei Orgânica da Saúde (Lei 8080/1990) e baseado no direito de cidadania e no dever de o Estado prover os serviços de saúde indistintamente a todos os cidadãos brasileiros. Portanto, um direito determinado pela Constituição brasileira no âmbito das relações Estado/cidadão.

Diferentemente, a saúde suplementar é derivada de uma relação de mercado entre o usuário contratante e as operados e seguros de saúde, baseada numa figura central nas economias de mercado, realidade, porém, muitas vezes esquecida no Brasil: o contrato. A saúde suplementar atende a 47 milhões de brasileiros, ou seja, quase 25% da população.

Nas lacunas existentes no SUS e na saúde suplementar, muitas vezes os brasileiros são levados a tirar o dinheiro do próprio bolso para pagar medicamentos, consultas, exames.

O SUS tem resistido heroicamente à epidemia, embora em vários Estados e cidades o sistema hospitalar esteja vivendo um colapso, sobretudo na oferta de leitos de UTI. Vivemos um descompasso crônico no SUS entre os recursos humanos e financeiros disponíveis e as necessidades da população. Isto é fruto de uma realidade histórica desde sua criação que é a do subfinanciamento.

Segundo dados da OMS (2014), em dólar equalizado, o investimento público anual por habitante no Brasil gira em torno de US$ 435. Enquanto isso sistemas de acesso universal e cobertura integral em outros países investem muito mais: Portugal (US$ 1.363), Espanha (US$ 1.890), Reino Unido (US$ 3.266), Canadá (US$ 3.704) e França (US$ 3.868). Dinheiro não é tudo. Prova disso é que o país que mais gasta, os EUA, não tem os melhores resultados. Mas não há como fazer mágica.

Quem sabe, com o aprendizado da pandemia, governos, Congresso Nacional, sociedade deem mais atenção ao orçamento do SUS e priorizem este investimento essencial para a sociedade?

Numa das inúmeras lives que participei neste período de isolamento social, testemunhei um emocionante e sensível depoimento de um prefeito de uma grande cidade brasileira, que tendo passado dias angustiantes em uma UTI, graças a Covid-19, ao ser perguntado sobre qual o aprendizado pessoal que herdou, ele disse que tinha construído quatro viadutos em seu mandato, mas que a partir de agora teria um novo foco em relação ao sistema de saúde. Será que teremos a mesma percepção coletiva após a pandemia?

Mas outros legados poderão prevalecer. Entre eles, certamente haverá uma revalorização do desenvolvimento científico-tecnológico e da cadeia produtiva nacional da saúde. Todos nós ficamos na torcida por nossos cientistas, que num esforço concentrado e hercúleo, buscam uma vacina ou um tratamento contra o coronavírus. Vamos investir mais em nossos cientistas e pesquisadores? A inovação é a chave do desenvolvimento no mundo contemporâneo.

Também, não só no Brasil, ficamos alarmados com a excessiva dependência global da oferta de equipamentos e insumos farmacêuticos ativos (IFAs) de alguns poucos países como China, Índia e Coreia do Sul. Houve uma verdadeira “guerra comercial” para a compra de ventiladores pulmonares, insumos e equipamentos de proteção individual. Haverá mais atenção no Brasil ao setor produtivo nacional e uma política industrial inteligente para que situações assim não se repitam?

Outra conquista possível e que veio para ficar é a telemedicina. Poderemos aumentar e muito a produtividade de nossos escassos recursos e ampliar o acesso aos serviços de saúde com o uso das modernas ferramentas tecnológicas que possibilitam o atendimento à distância. Claro que precisamos de uma boa normatização do assunto. Mas esse avanço não pode ficar prisioneiro de razões corporativas.

Ainda como herança, nós certamente poderemos ter uma integração muito maior entre o SUS e a saúde suplementar. Como os recursos públicos são escassos e a saúde suplementar atende a um quarto da população, é fundamental abrir os canais de diálogo e discutir transparentemente as linhas de cooperação, já que quanto melhor for o desempenho da saúde privada, melhor para o SUS.

Várias iniciativas governamentais e legislativas têm, nesse momento de crise, buscado o apoio do sistema privado de saúde, que voluntariamente fez doações expressivas para centros de pesquisas, hospitais de campanha, governos, organizações não governamentais de assistência social, disponibilização de leitos de UTI, equipamentos. Muitas vezes essas meritórias iniciativas esqueciam a diferença essencial entra a natureza constitucional do SUS e o fundamento contratual da saúde suplementar.

Se queremos que a saúde suplementar seja eficiente e complemente as ações do SUS, não podemos minar a sustentabilidade econômica do setor privado. O diálogo transparente e fundamentado é o caminho da cooperação e da solidariedade.

Por último, mas não menos importante, poderá sobreviver talvez um ambiente mais favorável às ações de prevenção e promoção da saúde e aos autocuidados. Fomos treinados na pandemia pelos profissionais da saúde, pelas autoridades sanitárias e pelos meios de comunicação a investir no autocuidado e na prevenção. Lavar as mãos, usar máscaras, evitar aglomerações.

O aumento da consciência sobre a importância da prevenção contra doenças pode ser o maior legado desta pandemia. Alimentação saudável, atividades físicas, combate ao tabagismo, ao alcoolismo e às drogas, hábitos sexuais saudáveis, monitoramento permanente dos vetores de doenças crônicas (hipertensão, diabetes, entre outras), podem ter um impacto inimaginável sobre os indicadores de saúde.

Como disse, nenhum avanço será automático. O ser humano é o único na face da terra que tem consciência plena, capacidade de aprendizado amplo, possibilidade de transformar a vida. Que os momentos de tensão e angústia provocados pela Covid-19 sirvam de alavanca para, por meio do aprendizado pessoal e coletivo, conquistarmos uma saúde melhor para todos os brasileiros.