quinta-feira, 10 de outubro de 2024
Acerca do fanatismo
Em cada comunidade há um certo número de fanáticos por temperamento. Alguns desses fanáticos são essencialmente inofensivos e os outros não fazem mal enquanto os seus partidários forem pouco numerosos ou estiverem afastados do poder. Os “amish” na Pensilvânia pensam que é mau usar botões; isto é completamente inofensivo, salvo na medida em que revela um estado de espírito absurdo. Alguns protestantes extremistas gostariam de ressuscitar a perseguição aos católicos; essas pessoas só serão inofensivas enquanto forem em pequeno número. Para que o fanatismo se torne uma ameaça séria é preciso que possua bastantes partidários para pôr a paz em perigo, internamente por meio de uma guerra civil ou externamente por uma cruzada; ou quando, sem guerra civil, estabeleça uma Lei dos Santos que implique a perseguição e a estagnação mental. No passado, o melhor exemplo da história é o reinado da Igreja desde o século IV ao século XVI.
Bertrand Russell, "A Última Oportunidade do Homem"
A revolução dos estúpidos
Enquanto o Brasil pegava fogo – um novo recorde de incêndios devastava o país – os principais candidatos à prefeitura daquela que supostamente é a cidade mais moderna do país discutiam sobre atestados médicos falsos, atacavam-se com cadeiradas e se xingavam de orangotangos. Esse debate tóxico se deveu sobretudo ao assim chamado coach Pablo Marçal ("coach" de que, afinal?).
O candidato a um dos cargos políticos mais importantes do país parecia um galo de peito inflado – e conseguiu dominar a narrativa. Marçal, que ficou em terceiro lugar na disputa, representa uma nova classe de empreendedores autônomos que enriqueceram com a internet. Eles promovem banalidades e besteiras com total convicção, e provavelmente é isso que se pode aprender com eles: embale bem as besteiras que você for dizer, e as pessoas vão seguir.
No Brasil são milhões de seguidores – que idolatram Marçal porque eles mesmos gostariam de se tornar tão ricos quanto ele, sem esforço e sem conhecimento. Não foi a visão de uma São Paulo mais habitável, mais limpa e mais segura que proporcionou a Marçal cerca de 28% dos votos, mas a ideia de enriquecimento pessoal sem esforço: uma promessa antissocial!
Falando aos frustrados de baixa instrução
Que esse "coach" tenha sido bem-sucedido com injúrias, mentiras criminosas e fazendo papel de vítima é parte de um fenômeno mundial. Ele alegou estar sendo perseguido por um "sistema" ultrapoderoso (políticos, imprensa, Estado, elites) e prometeu a todos que também se sentiam de alguma forma vitimados (e isso vale sobretudo para homens frustrados de baixa instrução) que lutaria contra esse sistema.
Nessa antipolítica, não se trata mais de criar algo para a coletividade, mas de destruir a coletividade, para assim dar a todos os frustrados com a vida as oportunidades que supostamente lhes foram negadas.
Marçal tem um equivalente no candidato a vice-presidente de Donald Trump, J. D. Vance: um oportunista sem princípios capaz de dizer e fazer o que for para tirar vantagens pessoais. Ele mesmo anunciou que ia espalhar mentiras se isso ajudasse a ser eleito. Afinal, o sistema e as elites estão conspirando contra ele e Trump porque eles estariam lutando a favor dos "pequenos", diz Vance.
Na Alemanha, a ultradireitista Alternativa para a Alemanha (AfD) obteve sucesso eleitoral com mentiras, racismo e retórica antielitista. Ela já mostrou o que pretende fazer se ganhar poder: no novo Legislativo do estado da Turíngia, começou espalhando o caos e provocando tumultos com o único objetivo de prejudicar a credibilidade do parlamento.
Não é coincidência que os nazistas tenham usado esse mesmo método para ridicularizar e, por fim, abolir a democracia. Também então homens jovens, radicalizados, inescrupulosos e ambiciosos chegaram ao poder, e começaram a levar tudo e todos à destruição.
É o próximo estágio do processo de radicalização dessa nova direita vulgar, que não tem mais nada que ver com valores conservadores, mas que luta por uma revolução que vai beneficiar os inescrupulosos, mentirosos e especialistas na autopromoção.
As ferramentas dela são o Instagram e sobretudo o TikTok, esse cavalo de Troia dos chineses. Os revolucionários da direita usam o Tiktok com virtuosismo, são rápidos, eficazes, agressivos, e têm como alvo os corações e mentes de quem nunca aprendeu a ver o mundo de forma crítica.
Sejamos claros: a base eleitoral da "direita revolucionária", do Brasil aos Estados Unidos, passando pela Alemanha, são os estúpidos e os perdedores: sem instrução, irados, frustrados, sem vontade e sem oportunidades – e ávidos por uma oportunidade de extravasar sua frustração com a vida.
O Brasil é um dos países que essa nova direita vê como uma espécie de laboratório. A ascensão de uma figura disruptiva como Marçal prenuncia coisas ruins. O que foi mesmo que Steve Bannon, mentor intelectual do movimento radical MAGA, anunciou numa entrevista ao The New York Times? "Somos o quartel-general militar de uma revolta populista." Era uma ameaça para se levar a sério!
É possível resistir às big techs?
Uma das crenças que costuma percorrer as mentes no Vale do Silício é a da inevitabilidade da tecnologia, ou seja, a ideia de que o progresso acontecerá invariavelmente e que parte de seu impacto será inescapável. É como se o risco da inteligência artificial um dia eliminar milhares de empregos fosse um caminho sem volta. Ou como se o domínio de uma megaempresa que acaba por sufocar pequenos empresários seja uma “disrupção” inquestionável.
O que une Mark Coeckelbergh, professor de Filosofia e Tecnologia da Universidade de Viena, na Áustria, e o escritor Danny Caine, dono de uma livraria em uma pequena cidade americana, é justamente a contraposição a essa suposta irreversibilidade do ritmo (e da forma) que rege o avanço dos algoritmos na sociedade.
Os dois estarão juntos pela primeira vez na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), nesta quinta-feira. Com uma programação mais quente este ano, a 22ª edição do evento pela primeira vez incluiu na programação oficial uma mesa sobre dados e inteligência artificial, com o nome sugestivo de "Dormindo com o inimigo".
Autor de quinze livros de não-ficção no campo da filosofia da tecnologia, Coeckelbergh estuda as implicações éticas da IA muito antes do mundo voltar os olhos ao tema com o lançamento do ChatGPT, em 2022. Ele é pesquisador da Rede Mundial de Tecnologia (WTN) e membro do grupo de especialistas que aconselha a Comissão Europeia sobre Inteligência Artificial.
Dono da Raven, uma livraria independente em Lawrence, no Kansas, Caine tem atuado há anos em defesa dos pequenos comerciantes nos Estados Unidos, e se tornou uma das vozes mais importantes do país em uma espécie de ativismo anti-Amazon. No Brasil, lançou "Como resistir à Amazon e por quê" (Editora Elefante) no ano passado. A obra expõe as entranhas da gigante varejista que tem negócios de comércio eletrônico, IA, logística, segurança, nuvem e entretenimento.
Apesar de atuarem em áreas distintas, ambos refletem sobre como a tecnologia, alavancada pelo poder das grandes corporações, impacta a sociedade. E quais são as saídas para que efeitos colaterais negativos sejam tratados.
Se as IAs estão fadadas a serem cada vez mais parte da vida cotidiana, questões éticas importantes vão precisar ser enfrentadas, argumenta Coeckelbergh no livro “Robôs, Inteligência Artificial e Ética”, lançado no início deste ano pela Ubu.
"Quem é responsável pelos danos da tecnologia quando seres humanos delegam decisões à IA?", questiona o pesquisador no livro. E se o custo de um sistema com bom desempenho é a falta de transparência, devemos usá-lo indistintamente?, pergunta ele em outro trecho.
Publicada no Brasil no início deste ano, mas escrita em 2020, a obra foca em dilemas éticos da IA pré-explosão dos sistemas generativos, como o ChatGPT. O filósofo belga radicado na Áustria explora questões como a responsabilidade moral de decisões tomadas por inteligências artificiais em situações críticas.
Um exemplo é o caso de um carro autônomo que precisa decidir entre diferentes cenários de risco que podem resultar em um acidente. Se salvar a vida do passageiro implica em colocar em risco um pedestre, qual escolha a IA, um sistema que não foi programado para ter um moral, deve fazer?
Quando algo dá errado, é difícil determinar se a inteligência artificial ou outro componente do sistema é o responsável, ressalta o pesquisador. Um desafio adicional é a "caixa-preta" por trás dessas decisões. São processos tão complexos quando opacos, e até mesmo programadores têm dificuldade de explicar exatamente o que levou a determinado resultado, diz ele.
— Esse problema é ainda mais acentuado no caso desses grandes modelos de linguagem (os LLMs, que são os "cérebros" que alimentam ChatGPT e outros). — diz Coeckelbergh. —Se essa tecnologia for usada em governos, por exemplo, para decidir sobre o bem-estar das pessoas ou em seguradoras, para decidir sobre pedidos de sinistros, ela poderá fazer coisas que nem o usuário nem o desenvolvedor poderiam prever.
O autor defende que mostrar como essas tecnologias funcionam é uma forma de capacitá-las a tomar decisões mais conscientes e evitar a dependência cega em sistemas automatizados.
Em “Como resistir à Amazon e por quê", Caine está interessado em "caixas-pretas". Mais especificamente, em expor como a maior varejista digital do mundo trabalha por trás das entregas rápidas e preços baixíssimos no mercado americano. O exemplo que abre o livro é do preço de livros. Um best-seller que está nas prateleiras da Raven está à venda por US$ 26. Na Amazon, pode ser comprado por US$ 9,59. Mas esse mesmo exemplar é vendido pela editora à livraria por US$ 14.
Como a Amazon pode oferecê-lo por um preço mais baixo do que o das próprias editoras o fazem para as livrarias? A empresa de Jeff Bezos pode se dar ao luxo de vender livros com prejuízo porque compensa as perdas com os lucros de outros serviços, como o Prime, lembra ele. A gigante também otimiza estratégias com a coleta de dados dos consumidores (inclusive a partir da Alexa) e com controle de parte do marketplace (a Amazon é tanto plataforma para vendedores como vendedora, o que significa que ela compete com os próprios negócios que estão lá)
— Seus algoritmos podem ser treinados com base nas compras dos consumidores, e isso é muito mais valioso para a Amazon do que os poucos livros que eles venderiam pelo preço cheio. E eles competem no próprio marketplace. Então, é como num jogo de futebol, em que são ao mesmo tempo árbitro e jogador — diz Caine.
O livreiro acrescenta que, nos Estados Unidos, o controle da Amazon sobre o mercado de livros é tão vasto que a empresa acaba por influenciar o que é publicado e como. Se um livro não tiver chance de sucesso na plataforma, uma editora pode ficar menos propensa a publicá-lo, diz.
Caine também aponta outro problema: a proliferação de livros gerados por IA na Kindle Store, que tem "inundado" a plataforma com títulos de baixa qualidade. Esses livros, muitas vezes criados rapidamente, aproveitam a popularidade de temas, autores ou gêneros em alta para "driblar" os algoritmos e aparecerem para os leitores. Isso não apenas confunde o consumidor, mas também torna ainda mais difícil para autores legítimos e livrarias independentes competirem de maneira justa, avalia.
Coeckelbergh diz que as discussões entre os bilionários da tecnologia sobre a possibilidade de a IA um dia superar a mente humana — com a criação da chamada Inteligência Artificial Geral (AIG) — são uma distração dos impactos reais e imediatos que esses sistemas vêm gerando, como a distorção no mercado editorial.
Sobre a entrada dos algoritmos na área, ele lembra ainda que há uma questão sobre o significado da criatividade em um contexto em que máquinas são capazes de reproduzir a linguagem.
— As máquinas, em última análise, se alimentam da criatividade humana como vampiros. Mas mesmo que simulem a criatividade, acabam presas em ciclos baseados em dados do passado. O que os humanos fazem de verdadeiramente novo está enraizado em nossa subjetividade. Mas acho que as pessoas nas humanidades estão sendo desafiadas a isso: o que significa para mim, como escritor, se essas tecnologias também melhorarem?— questiona.
O pesquisador não propõe a interrupção do desenvolvimento da IA, assim como Caine não sugere que as pessoas simplesmente boicotem a Amazon como forma de resistência.
— Não estou dizendo para as pessoas não apoiarem a Amazon. Estou muito mais interessado em dizer: apoie os pequenos negócios na sua comunidade, porque eles vão perceber a diferença. Até mesmo uma única venda de livro pode ser a diferença entre um dia lucrativo e um dia não lucrativo para a livraria — afirma o escritor, que também acredita em uma regulação antimonopolista como caminho para reduzir as distorções no mercado
Para os dilemas éticos que envolvem a IA, Coeckelbergh destaca a necessidade de três pilares: a regulação internacional, uma educação sobre tecnologia e a conscientização crítica dos consumidores da inteligência artificial, em um esforço conjunto que não deixe as decisões apenas na mão das big techs.
—Temos que forçar essas empresas influentes a serem mais éticas e jogarem pelas regras que acreditamos serem boas para as pessoas. E nós, humanos, talvez tenhamos que aprender a moldar nossa vida e a nós mesmos de forma mais consciente, e isso significa ter capacidade de pensar criticamente sobre a nossa relação com a tecnologia.