domingo, 27 de junho de 2021
A chance
O mundo precisa lavar-se e pausar por uma semana, escreveu em 1947 W.H. Auden, um dos mais admiráveis autores de língua inglesa do século XX. O verso no original tem aparência ainda mais simplória quando retirado de seu conjunto — o monumental poema “The age of anxiety” (A era da angústia), quase tão extenso quanto um livro. Nele, Auden trata da busca humana por algum significado e identidade no mundo cambiante do pós-Segunda Guerra. Na narrativa em verso, quatro personagens reunidos num bar de Nova York contemplam onde foram parar suas vidas, sonhos e perdas. Hoje, passados quase 80 anos, cá estamos, igualmente aflitos e perturbados com a condição humana, o tempo a escoar, a pandemia a cavalgar, o futuro de cada um em suspenso. Juventude, posses, família, relacionamentos, esperança, status social, tudo parece incerto, adiado ou precário.
Aquém do noticiário nacional de emergência máxima (a combustão acelerada de Jair Bolsonaro graças à investida letal da CPI da Covid), sempre aparece um fait-divers que também diz montes sobre o Brasil miúdo. Dias atrás, o repórter Artur Rodrigues, da Folha de S.Paulo, pinçou um anúncio publicado num site de vagas de emprego, o Trabalha Brasil. Rodrigues apontou uma novidade trazida pela Covid-19 ao anúncio: a exigência de a candidata ao emprego ter tomado a vacina da Pfizer.
Pela descrição da vaga em Campinas (SP), um casal oferecia R$ 1.600 mensais a uma “babá/governanta” para cuidar de duas crianças, organizando suas rotinas, alimentação, atividades diárias (estudos, cursos, lazer). Fossem estrangeiros, a remuneração oferecida seria escandalosa. Pagar o equivalente a US$ 320 mensais por 160 horas trabalhadas (ou seja, US$ 2 a hora) é tido como ilegal em qualquer país desenvolvido do planeta. A exigência de cinco dias da semana no emprego, mais meio sábado, por salário tão minguado também seria tachada de exploração abusiva.
No Brasil de quase 15 milhões de desempregados, é provável que não faltassem candidatas. Mesmo assim, não seria fácil encontrar quem coubesse no figurino nobre (além da vacina de grife, ter boa bagagem cultural, carteira de motorista, “responsabilidade pela residência e suas dependências”) e também na realidade nativa de sempre: apenas uma folga remunerada por mês (ou 15 dias de férias ao ano), limpeza e serviços domésticos quatro ou cinco vezes por semana.
O anúncio preferiu não explicitar a preferência por cor.
Numa sociedade que ainda não conseguiu acabar com a função segregadora de seus elevadores de serviço, algumas mudanças são bem mais resistentes que a Covid-19. Elevadores existem em qualquer país do planeta, sendo indispensáveis para a entrega de cargas. Só nos mais racistas, porém, é preciso armar barraco no condomínio para fazer cumprir a lei que proíbe toda sorte de discriminação. Sempre é bom relembrar a história contada pelo saudoso geógrafo baiano Milton Santos, de uma experiência vivida por ele na Salvador dos anos 1950. O professor fora visitar um amigo recém-instalado num edifício inaugurado havia pouco. Surpreendeu-se ao entrar no ascensor dividido por uma partição mambembe com duas sinalizações — “social” e “de serviço”. À falta de dinheiro para instalar dois elevadores, foi a solução encontrada pela incorporadora e pelos condôminos para honrar a divisão de castas.
Vem aí, portanto, a inevitável discriminação social por vacinas. Pode-se entender o desejo frenético por uma agulhada da Pfizer, considerada imunizante de grande eficácia contra o vírus (94% para prevenir os sintomas). Mas ele é, e continuará sendo por longo tempo, inalcançável para a imensa maioria dos brasileiros. Ainda chafurdamos num país que estende o braço sem encontrar vacinas — o índice de apenas 12% de vacinados com duas doses não é uma fatalidade, e sim um crime de irresponsabilidade, da mesma forma que é crime o Brasil ter mais de 510 mil vidas jogadas fora pelo desvario do governo.
Ninguém, nem país algum, será o mesmo de antes da chegada da pandemia. A questão é saber se estamos a construir um futuro melhor que nosso passado. O tempo corre. Para o poeta grego C.P. Cavafy, quando falamos em ‘‘tempo’’, falamos de nós mesmos. “Quase todas as abstrações não passam de pseudônimos. Nós somos o tempo”, escreveu ele. Se assim é, temos uma grande chance para o amanhã no Brasil.
“Eu só confio nas pessoas loucas, aquelas que são loucas pra viver, loucas para falar, loucas para ser salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, que nunca bocejam ou dizem uma coisa corriqueira, mas queimam, queimam, queimam…”, escreveu Jack Kerouac. Não é preciso tanto. O caminho está apontado pelos senadores da CPI da Covid.
Aquém do noticiário nacional de emergência máxima (a combustão acelerada de Jair Bolsonaro graças à investida letal da CPI da Covid), sempre aparece um fait-divers que também diz montes sobre o Brasil miúdo. Dias atrás, o repórter Artur Rodrigues, da Folha de S.Paulo, pinçou um anúncio publicado num site de vagas de emprego, o Trabalha Brasil. Rodrigues apontou uma novidade trazida pela Covid-19 ao anúncio: a exigência de a candidata ao emprego ter tomado a vacina da Pfizer.
Pela descrição da vaga em Campinas (SP), um casal oferecia R$ 1.600 mensais a uma “babá/governanta” para cuidar de duas crianças, organizando suas rotinas, alimentação, atividades diárias (estudos, cursos, lazer). Fossem estrangeiros, a remuneração oferecida seria escandalosa. Pagar o equivalente a US$ 320 mensais por 160 horas trabalhadas (ou seja, US$ 2 a hora) é tido como ilegal em qualquer país desenvolvido do planeta. A exigência de cinco dias da semana no emprego, mais meio sábado, por salário tão minguado também seria tachada de exploração abusiva.
No Brasil de quase 15 milhões de desempregados, é provável que não faltassem candidatas. Mesmo assim, não seria fácil encontrar quem coubesse no figurino nobre (além da vacina de grife, ter boa bagagem cultural, carteira de motorista, “responsabilidade pela residência e suas dependências”) e também na realidade nativa de sempre: apenas uma folga remunerada por mês (ou 15 dias de férias ao ano), limpeza e serviços domésticos quatro ou cinco vezes por semana.
O anúncio preferiu não explicitar a preferência por cor.
Numa sociedade que ainda não conseguiu acabar com a função segregadora de seus elevadores de serviço, algumas mudanças são bem mais resistentes que a Covid-19. Elevadores existem em qualquer país do planeta, sendo indispensáveis para a entrega de cargas. Só nos mais racistas, porém, é preciso armar barraco no condomínio para fazer cumprir a lei que proíbe toda sorte de discriminação. Sempre é bom relembrar a história contada pelo saudoso geógrafo baiano Milton Santos, de uma experiência vivida por ele na Salvador dos anos 1950. O professor fora visitar um amigo recém-instalado num edifício inaugurado havia pouco. Surpreendeu-se ao entrar no ascensor dividido por uma partição mambembe com duas sinalizações — “social” e “de serviço”. À falta de dinheiro para instalar dois elevadores, foi a solução encontrada pela incorporadora e pelos condôminos para honrar a divisão de castas.
Vem aí, portanto, a inevitável discriminação social por vacinas. Pode-se entender o desejo frenético por uma agulhada da Pfizer, considerada imunizante de grande eficácia contra o vírus (94% para prevenir os sintomas). Mas ele é, e continuará sendo por longo tempo, inalcançável para a imensa maioria dos brasileiros. Ainda chafurdamos num país que estende o braço sem encontrar vacinas — o índice de apenas 12% de vacinados com duas doses não é uma fatalidade, e sim um crime de irresponsabilidade, da mesma forma que é crime o Brasil ter mais de 510 mil vidas jogadas fora pelo desvario do governo.
Ninguém, nem país algum, será o mesmo de antes da chegada da pandemia. A questão é saber se estamos a construir um futuro melhor que nosso passado. O tempo corre. Para o poeta grego C.P. Cavafy, quando falamos em ‘‘tempo’’, falamos de nós mesmos. “Quase todas as abstrações não passam de pseudônimos. Nós somos o tempo”, escreveu ele. Se assim é, temos uma grande chance para o amanhã no Brasil.
“Eu só confio nas pessoas loucas, aquelas que são loucas pra viver, loucas para falar, loucas para ser salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, que nunca bocejam ou dizem uma coisa corriqueira, mas queimam, queimam, queimam…”, escreveu Jack Kerouac. Não é preciso tanto. O caminho está apontado pelos senadores da CPI da Covid.
Há mais de um século, Brasil adotava quarentena e rastreamento contra doenças vindas do exterior
Em 1893, quatro navios que chegavam com grupos de imigrantes italianos a São Paulo tiveram que dar meia-volta. O motivo: uma epidemia de cólera que assolava a Europa e que fez vítimas entre os passageiros durante a viagem.
As embarcações foram proibidas pelas autoridades brasileiras de atracar nos portos de Santos (SP) e Rio de Janeiro, como registrou a historiadora Fernanda Rebelo (1975-2018), que se dedicou ao estudo da história das ciências e da saúde pública no Brasil.
A estratégia era impedir a chegada da doença no país, já que locais para quarentena e tratamento de doentes estavam cheios.
"Era uma medida mais drástica, mas mostra a atenção de autoridades naquela época em relação a epidemias", explica o historiador Henrique Trindade, pesquisador do Museu da Imigração, em São Paulo.
A própria Hospedaria do Brás, onde hoje funciona o Museu, foi inaugurada devido a um surto de varíola em São Paulo, em 1887 — na ocasião, para proteger os novos imigrantes dos casos já registrados em outro alojamento, o do Bom Retiro.
O novo prédio, uma das maiores hospedarias da Américas, foi construído fora dos então limites da cidade, como uma forma de evitar o contato da população local com doenças que potencialmente poderiam ser trazidas de outras partes do mundo. E também o contrário, para preservar a força de trabalho saudável que chegava.
Mas essas não foram medidas pontuais na história do Brasil, como mostram o vasto registro em documentos históricos. Desde meados do século 19, com a intensificação do trânsito de pessoas pelo mundo, a preocupação com as fronteiras era uma prioridade.
Se o navio registrasse doenças antes da chegada ao Brasil, poderia ter de ficar mais de 1 semana em quarentena
Em 2020, com o início da pandemia de covid-19, o debate sobre medidas para proteger as "entradas" de países voltou ao radar.
Alguns, como a Coreia do Sul, conseguiram implementar medidas eficazes de rastreamento e controle em aeroportos, como quarentena obrigatória, aplicativo com monitoramento de passageiros e testes em massa nos terminais.
Outros, como o Brasil, não adotaram medidas semelhantes. Só em dezembro de 2020 (ou seja, nove meses após o início da pandemia) o governo passou exigir que passageiros vindos do exterior exibissem testes negativos para covid-19 nos aeroportos.
Ao menos desde 1810, ainda como colônia portuguesa, o Brasil se utilizava de quarentena nos portos e inspeção de navios como uma política pública para impedir a chegada de doenças ao território.
Havia ainda naquele tempo o tráfico de africanos, que forçadamente eram retirados da África para serem escravizados por aqui. Ao longo do século 19, essas medidas também se estenderam aos navios que de forma cada vez mais frequente traziam levas de imigrantes, principalmente da Europa.
Com esses novos trabalhadores, interessantes ao governo para "europeizar" o Brasil, a preocupação sanitária se intensificava.
"Por um lado, você tem a preocupação de evitar que quem chegasse pudesse trazer doenças. Por outro lado, você também tem, especialmente na corte, na cidade do Rio, a preocupação de que aqueles sujeitos saudáveis não fossem contaminados pelas epidemias daqui", relata o historiador Rui Fernandes, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e coordenador no Centro de Memória da Imigração da Ilha das Flores.
Em 1829, após a Independência, o país aprovou um regulamento para a inspeção de saúde pública nos portos, que tinha por atribuição verificar o estado sanitário das embarcações e decidir se estavam desimpedidas ou deveriam aguardar quarentena.
Navios que vinham de locais da Europa onde havia surtos de doenças como a cólera precisavam passar dias sendo inspecionados por médicos. No Rio, as embarcações deveriam ficar em ancoradouros como o de Jurujuba, em Niterói, onde também havia o Hospital Marítimo de Santa Isabel.
Em um relatório do Império de 1856, o ministro dos Negócios dizia que "estabelecimentos desta natureza são de indispensável necessidade em portos tão frequentados como este da capital".
Também já havia a defesa de diminuir o uso de quarentenas como método e a necessidade de investimento em tecnologias de desinfecção e construção de lazaretos, locais para onde poderiam ser levados os doentes.
O principal lazareto, o da Ilha Grande, no Rio, ficaria pronto em 1886, logo após estourar uma epidemia de cólera na Europa.
Foi ali que ficou focado o serviço para quarentena de navios que vinham de portos como os de Triestre, na Itália, e Fiume, na atual Croácia, considerados locais de surto da epidemia, e até de Uruguai, Argentina e Chile, devido ao aparecimento da doença nos países vizinhos.
"Muitas vezes a própria tripulação já informava ao porto que aquele navio estava infectado. E aí nesse caso não era permitido que ele nem chegasse à Baía de Guanabara, ele já era levado lá pra Ilha Grande", explica Fernandes.
Com o telégrafo, os portos da América também ficavam sabendo rapidamente de epidemias.
Mas as quarentenas não ficaram restritas aos navios. As medidas também se estenderam às próprias hospedarias, como a do Brás, em São Paulo, e da Ilha das Flores, no Rio.
"Temos registros de quarentenas que geraram conflitos entre imigrantes e autoridades públicas. Eles chegavam obviamente angustiados, com medo, num país novo e, se tivessem algum tipo de doença, eram separados até de familiares", diz Trindade, do Museu da Imigração de São Paulo.
Na Ilha das Flores, hoje conectada ao continente na cidade de São Gonçalo (RJ), o local servia também para que imigrantes saudáveis não precisassem frequentar o centro do Rio, com condições sanitárias precárias, antes de seguir para lavouras e colônias no interior.
"Relatórios administrativos buscavam enfatizar que essa política sanitária era exitosa. Mas quando a gente cruza com alguns da imprensa do período, você identifica que nem sempre era exitoso", destaca Fernandes.
Já no final do século 19, um relatório do governo paulista apontava que a cólera que devastou partes da Europa chegou ao Brasil, apesar das quarentenas. A "culpa" foi atribuída às bagagens.
Segundo explica Trindade, com base nos registros do Museu da Imigração, foi quando se intensificaram medidas de se desinfectar roupas e malas para combater essa e outras doenças. Também havia cada vez mais uma preocupação com as perdas econômicas causadas pelas quarentenas.
Num surto de febre amarela no interior de São Paulo, também foram instaladas nas estações ferroviárias estufas e pulverizadores para desinfecção de bagagens e passageiros. Pessoas que embarcavam em cidades assoladas por algum surto eram colocadas em um vagão específico, já que não se sabia que a doença não era transmissível de pessoa pra pessoa.
Com avanço dos estudos bacteriológicos, surgiu o uso do aparelho de gás Clayton.
Em artigo na revista História, Ciências, Saúde, da Casa Oswaldo Cruz, a historiadora Fernanda Rebelo relata: "uso do gás sulfuroso seco, produzido sob pressão do aparelho de Clayton, nas condições em que foi empregado (grau de concentração de 8%), foi perfeitamente eficaz na desinfecção dos navios, para tornar inofensivos os objetos contaminados pelos micróbios da febre tifoide, da cólera e da peste".
"Além disso, o processo permitia destruir todos os ratos e insetos como pulgas, percevejos, baratas."
Com algumas dessas novas tecnologias, o governo começou a abolir as quarentenas de navios. Como mostram documentos da época, imigrantes desembarcados também passaram a gozar de liberdade de locomoção desde que indicassem a residência de destino, onde seriam visitados por funcionários da Inspetoria Geral de Saúde do Porto do Rio de Janeiro, durante o prazo de incubação da doença registradas nos navios.
As medidas para evitar o espalhamento de doenças também ocorriam dentro do Brasil.
Durante a epidemia de cólera que atingiu a parte paulista do Vale do Paraíba no final de 1894, registros em jornais da época mostram que o tráfego ferroviário entre os estados de São Paulo e Rio de Janeiro foi interrompido, para evitar a propagação da doença à então capital federal.
Empresários paulistas criticavam as medidas, que prejudicavam o comércio e a indústria. Por vezes, minimizavam a força da epidemia e faziam duras críticas à administração. A interrupção durou alguns meses, mas depois foi substituída por medidas como passaporte sanitário, desinfecção de passageiros e proibição de comércio de produtos como carne e leite.
Para o historiador Henrique Trindade, a política sanitária do período "contribuiu para que algumas epidemias do final do século 19, do começo do século 20, não fossem tão mortíferas quanto poderiam ser".
Mas também não impediu que doenças se alastrassem pelo Brasil, como a cólera, em 1899. O surto, porém, fez o país criar as suas duas mais importantes instituições de pesquisa em saúde: Fiocruz e Butantan.
As embarcações foram proibidas pelas autoridades brasileiras de atracar nos portos de Santos (SP) e Rio de Janeiro, como registrou a historiadora Fernanda Rebelo (1975-2018), que se dedicou ao estudo da história das ciências e da saúde pública no Brasil.
A estratégia era impedir a chegada da doença no país, já que locais para quarentena e tratamento de doentes estavam cheios.
"Era uma medida mais drástica, mas mostra a atenção de autoridades naquela época em relação a epidemias", explica o historiador Henrique Trindade, pesquisador do Museu da Imigração, em São Paulo.
Se o navio registrasse doenças, poderia ter de ficar mais de uma semana em quarentena |
A própria Hospedaria do Brás, onde hoje funciona o Museu, foi inaugurada devido a um surto de varíola em São Paulo, em 1887 — na ocasião, para proteger os novos imigrantes dos casos já registrados em outro alojamento, o do Bom Retiro.
O novo prédio, uma das maiores hospedarias da Américas, foi construído fora dos então limites da cidade, como uma forma de evitar o contato da população local com doenças que potencialmente poderiam ser trazidas de outras partes do mundo. E também o contrário, para preservar a força de trabalho saudável que chegava.
Mas essas não foram medidas pontuais na história do Brasil, como mostram o vasto registro em documentos históricos. Desde meados do século 19, com a intensificação do trânsito de pessoas pelo mundo, a preocupação com as fronteiras era uma prioridade.
Se o navio registrasse doenças antes da chegada ao Brasil, poderia ter de ficar mais de 1 semana em quarentena
Em 2020, com o início da pandemia de covid-19, o debate sobre medidas para proteger as "entradas" de países voltou ao radar.
Alguns, como a Coreia do Sul, conseguiram implementar medidas eficazes de rastreamento e controle em aeroportos, como quarentena obrigatória, aplicativo com monitoramento de passageiros e testes em massa nos terminais.
Outros, como o Brasil, não adotaram medidas semelhantes. Só em dezembro de 2020 (ou seja, nove meses após o início da pandemia) o governo passou exigir que passageiros vindos do exterior exibissem testes negativos para covid-19 nos aeroportos.
Ao menos desde 1810, ainda como colônia portuguesa, o Brasil se utilizava de quarentena nos portos e inspeção de navios como uma política pública para impedir a chegada de doenças ao território.
Havia ainda naquele tempo o tráfico de africanos, que forçadamente eram retirados da África para serem escravizados por aqui. Ao longo do século 19, essas medidas também se estenderam aos navios que de forma cada vez mais frequente traziam levas de imigrantes, principalmente da Europa.
Com esses novos trabalhadores, interessantes ao governo para "europeizar" o Brasil, a preocupação sanitária se intensificava.
"Por um lado, você tem a preocupação de evitar que quem chegasse pudesse trazer doenças. Por outro lado, você também tem, especialmente na corte, na cidade do Rio, a preocupação de que aqueles sujeitos saudáveis não fossem contaminados pelas epidemias daqui", relata o historiador Rui Fernandes, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e coordenador no Centro de Memória da Imigração da Ilha das Flores.
Em 1829, após a Independência, o país aprovou um regulamento para a inspeção de saúde pública nos portos, que tinha por atribuição verificar o estado sanitário das embarcações e decidir se estavam desimpedidas ou deveriam aguardar quarentena.
Navios que vinham de locais da Europa onde havia surtos de doenças como a cólera precisavam passar dias sendo inspecionados por médicos. No Rio, as embarcações deveriam ficar em ancoradouros como o de Jurujuba, em Niterói, onde também havia o Hospital Marítimo de Santa Isabel.
Em um relatório do Império de 1856, o ministro dos Negócios dizia que "estabelecimentos desta natureza são de indispensável necessidade em portos tão frequentados como este da capital".
Também já havia a defesa de diminuir o uso de quarentenas como método e a necessidade de investimento em tecnologias de desinfecção e construção de lazaretos, locais para onde poderiam ser levados os doentes.
O principal lazareto, o da Ilha Grande, no Rio, ficaria pronto em 1886, logo após estourar uma epidemia de cólera na Europa.
Foi ali que ficou focado o serviço para quarentena de navios que vinham de portos como os de Triestre, na Itália, e Fiume, na atual Croácia, considerados locais de surto da epidemia, e até de Uruguai, Argentina e Chile, devido ao aparecimento da doença nos países vizinhos.
"Muitas vezes a própria tripulação já informava ao porto que aquele navio estava infectado. E aí nesse caso não era permitido que ele nem chegasse à Baía de Guanabara, ele já era levado lá pra Ilha Grande", explica Fernandes.
Com o telégrafo, os portos da América também ficavam sabendo rapidamente de epidemias.
Mas as quarentenas não ficaram restritas aos navios. As medidas também se estenderam às próprias hospedarias, como a do Brás, em São Paulo, e da Ilha das Flores, no Rio.
"Temos registros de quarentenas que geraram conflitos entre imigrantes e autoridades públicas. Eles chegavam obviamente angustiados, com medo, num país novo e, se tivessem algum tipo de doença, eram separados até de familiares", diz Trindade, do Museu da Imigração de São Paulo.
Na Ilha das Flores, hoje conectada ao continente na cidade de São Gonçalo (RJ), o local servia também para que imigrantes saudáveis não precisassem frequentar o centro do Rio, com condições sanitárias precárias, antes de seguir para lavouras e colônias no interior.
"Relatórios administrativos buscavam enfatizar que essa política sanitária era exitosa. Mas quando a gente cruza com alguns da imprensa do período, você identifica que nem sempre era exitoso", destaca Fernandes.
Já no final do século 19, um relatório do governo paulista apontava que a cólera que devastou partes da Europa chegou ao Brasil, apesar das quarentenas. A "culpa" foi atribuída às bagagens.
Segundo explica Trindade, com base nos registros do Museu da Imigração, foi quando se intensificaram medidas de se desinfectar roupas e malas para combater essa e outras doenças. Também havia cada vez mais uma preocupação com as perdas econômicas causadas pelas quarentenas.
Num surto de febre amarela no interior de São Paulo, também foram instaladas nas estações ferroviárias estufas e pulverizadores para desinfecção de bagagens e passageiros. Pessoas que embarcavam em cidades assoladas por algum surto eram colocadas em um vagão específico, já que não se sabia que a doença não era transmissível de pessoa pra pessoa.
Com avanço dos estudos bacteriológicos, surgiu o uso do aparelho de gás Clayton.
Em artigo na revista História, Ciências, Saúde, da Casa Oswaldo Cruz, a historiadora Fernanda Rebelo relata: "uso do gás sulfuroso seco, produzido sob pressão do aparelho de Clayton, nas condições em que foi empregado (grau de concentração de 8%), foi perfeitamente eficaz na desinfecção dos navios, para tornar inofensivos os objetos contaminados pelos micróbios da febre tifoide, da cólera e da peste".
"Além disso, o processo permitia destruir todos os ratos e insetos como pulgas, percevejos, baratas."
Com algumas dessas novas tecnologias, o governo começou a abolir as quarentenas de navios. Como mostram documentos da época, imigrantes desembarcados também passaram a gozar de liberdade de locomoção desde que indicassem a residência de destino, onde seriam visitados por funcionários da Inspetoria Geral de Saúde do Porto do Rio de Janeiro, durante o prazo de incubação da doença registradas nos navios.
As medidas para evitar o espalhamento de doenças também ocorriam dentro do Brasil.
Durante a epidemia de cólera que atingiu a parte paulista do Vale do Paraíba no final de 1894, registros em jornais da época mostram que o tráfego ferroviário entre os estados de São Paulo e Rio de Janeiro foi interrompido, para evitar a propagação da doença à então capital federal.
Empresários paulistas criticavam as medidas, que prejudicavam o comércio e a indústria. Por vezes, minimizavam a força da epidemia e faziam duras críticas à administração. A interrupção durou alguns meses, mas depois foi substituída por medidas como passaporte sanitário, desinfecção de passageiros e proibição de comércio de produtos como carne e leite.
Para o historiador Henrique Trindade, a política sanitária do período "contribuiu para que algumas epidemias do final do século 19, do começo do século 20, não fossem tão mortíferas quanto poderiam ser".
Mas também não impediu que doenças se alastrassem pelo Brasil, como a cólera, em 1899. O surto, porém, fez o país criar as suas duas mais importantes instituições de pesquisa em saúde: Fiocruz e Butantan.
'Mito' em surto: temor dos mortos, das ruas, CPI e Salles
Na visita a Guaratinguetá (SP), segunda-feira, o presidente da República tirou de vez o simulacro de máscara que lhe encobria o rosto, e os brasileiros viram, sem disfarce, o ocupante do Palácio da Alvorada amedrontado por seus demônios e fantasmas, em estado de aparente transtorno, ou surto, e nem precisa ser psicólogo ou psiquiatra para chegar a esta conclusão. A dúvida é quanto à causa (ou motivos, que parecem múltiplos) de seu nervosismo e destempero, basta rever vídeos e áudios que correm pelas redes sociais e sites da internet, no Brasil e no mundo. Sintomático o acesso de fúria do mandatário ao gritar ordens, de público, para assessores e auxiliares de seu governo, mas principalmente para a repórter da afiliada da TV Globo na região, durante a caótica entrevista coletiva na pacata Guará: “Cale a boca! Essa TV Globo é uma merda”. E desfiou um desaforado, aluado e desconexo palavreado retórico, com xingamentos, ofensas e desvarios como não se tem notícia na história republicana e democrática do Brasil. Salvo, talvez, o caso do sucessor do presidente Venceslau Brás, em 1915, o mineiro Delfim Moreira, reconhecidamente amalucado, que cogitou até criar galinhas no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro.
Há quem diga que, em Guaratinguetá, Bolsonaro teve uma explosão nervosa retardada. Efeito do editorial do Jornal Nacional, lido com força máxima por William Bonner e a colega de bancada, Renata Vasconcelos, na edição para não esquecer, do sábado em que o Brasil atingiu a vergonhosa e sinistra marca de 500 mil mortos pela pandemia Covid-19. Mas logo ficou patente que havia mais incêndios sob as chamas e chispas de fogo que o mandatário do Planalto soprava pelas narinas e boca às vésperas dos festejos a São João.
Além de distribuir xingamentos e ofensas a jornalistas em geral, e em especial à repórteres e fotógrafos que não se pautam por seu destrambelhado e autoritário “manual de redação”, no cercado da sua claque de adeptos no Alvorada, passou a maldizer também à CNN pela cobertura das manifestações, por “vacinas no braço, comida no prato e fora Bolsonaro”, no país, em especial na Avenida Paulista, do estado governado pelo tucano João Dória JR, inimigo visceral desde sua posse no cargo. As presenças de Boulos (Psol), Haddad (PT) e Orlando Silva (PC do B) puxando o ato que tomou 9 quarteirões da monumental avenida da megalópole brasileira, e os protestos do Rio de Janeiro – com a destacada presença de Chico Buarque de Holanda usando máscara no meio da multidão – também contribuíram para deixar em frangalhos o sistema emocional do capitão presidente.
Sem falar no embrulho chamado Ricardo Salles, o pior e mais suspeito ministro do Meio Ambiente da história do Brasil, que precisou ser expurgado, na quarta-feira junina, de triturar os nervos do mandatário, em queda expressiva nas pesquisas de opinião, que tinha em Salles, amigo do peito e arauto dos desmandos no governo. Há, ainda, os efeitos da Comissão Parlamentar de Inquérito Covid-19 e a “bomba” da superfaturada compra da vacina indiana Covaxim, que causam pesadelos e novos surtos como manifestados em Guaratinguetá. E nem apareceu ainda o nome da terceira via para 2022. Haja cordas!
Há quem diga que, em Guaratinguetá, Bolsonaro teve uma explosão nervosa retardada. Efeito do editorial do Jornal Nacional, lido com força máxima por William Bonner e a colega de bancada, Renata Vasconcelos, na edição para não esquecer, do sábado em que o Brasil atingiu a vergonhosa e sinistra marca de 500 mil mortos pela pandemia Covid-19. Mas logo ficou patente que havia mais incêndios sob as chamas e chispas de fogo que o mandatário do Planalto soprava pelas narinas e boca às vésperas dos festejos a São João.
Além de distribuir xingamentos e ofensas a jornalistas em geral, e em especial à repórteres e fotógrafos que não se pautam por seu destrambelhado e autoritário “manual de redação”, no cercado da sua claque de adeptos no Alvorada, passou a maldizer também à CNN pela cobertura das manifestações, por “vacinas no braço, comida no prato e fora Bolsonaro”, no país, em especial na Avenida Paulista, do estado governado pelo tucano João Dória JR, inimigo visceral desde sua posse no cargo. As presenças de Boulos (Psol), Haddad (PT) e Orlando Silva (PC do B) puxando o ato que tomou 9 quarteirões da monumental avenida da megalópole brasileira, e os protestos do Rio de Janeiro – com a destacada presença de Chico Buarque de Holanda usando máscara no meio da multidão – também contribuíram para deixar em frangalhos o sistema emocional do capitão presidente.
Sem falar no embrulho chamado Ricardo Salles, o pior e mais suspeito ministro do Meio Ambiente da história do Brasil, que precisou ser expurgado, na quarta-feira junina, de triturar os nervos do mandatário, em queda expressiva nas pesquisas de opinião, que tinha em Salles, amigo do peito e arauto dos desmandos no governo. Há, ainda, os efeitos da Comissão Parlamentar de Inquérito Covid-19 e a “bomba” da superfaturada compra da vacina indiana Covaxim, que causam pesadelos e novos surtos como manifestados em Guaratinguetá. E nem apareceu ainda o nome da terceira via para 2022. Haja cordas!
A teia bolsonarista nos porões da internet
A pandemia do novo coronavírus já havia fechado fronteiras de diferentes países e ganhava corpo no Brasil em maio do ano passado. O país contabilizava, à época, 100.000 casos e 7.000 mortes pela covid-19, e seguia numa progressão que já se mostrava descontrolada, sobretudo pelo descompasso das ações do Governo ao que até hoje é preconizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Na manhã do dia 3 daquele mês, um domingo ensolarado, o presidente Jair Bolsonaro devotou-se a apoiar manifestantes em frente ao Palácio do Planalto. Não usava máscara, tampouco seguia a orientação de autoridades médicas e científicas para evitar ―ou ajudar a formar― aglomeração. Diante de fiéis seguidores, disse que havia chegado ao seu limite, e que pedia a Deus para não ter problemas.
Cercado de seguranças, gravou um vídeo para a equipe responsável pelas suas redes sociais. Nele, minimizava os primeiros efeitos da pandemia, a qual, mais de um ano depois, colocaria o Brasil na lista dos países com um dos mais altos índices de mortalidade em decorrência da covid-19: “Sabemos o efeito do vírus, infelizmente muitos serão infectados e perderão suas vidas, mas é uma realidade.” O indisfarçável desdém em relação à doença, no entanto, tinha um outro propósito naquele dia.
O colérico convescote à porta da sede do Governo reunia uma trupe de homens e mulheres de camisas e faixas verde e amarela, alguns enrolados em bandeira do Brasil, não para exigir medidas sanitárias que pudessem conter o avanço da doença, mas aguerridos em campanha pela reedição do Ato Institucional 5 (AI-5) e por intervenção militar, processo inconstitucional dada a apologia contra a democracia.
Os principais alvos eram o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso Nacional, após medidas contrárias ao pensamento bolsonarista. “Queremos a independência verdadeira dos três Poderes, não apenas uma letra da Constituição. Não vamos mais admitir interferência”, disse Bolsonaro, em tom peremptório se comparado à preocupação com as vítimas do coronavírus desde àquela ocasião.
Dias antes, um dos ministros do STF, Alexandre de Moraes, havia barrado o nome de Alexandre Ramagem para a diretoria-geral da Polícia Federal, sob o argumento de que a nomeação representava um desvio de finalidade do Governo para interferir politicamente na PF. Ramagem é amigo dos filhos do presidente, e a tentativa de acomodá-lo no cargo levou à crise do Planalto com o ex-juiz Sergio Moro, que abandonou o barco quando percebeu que não tinha carta branca para, como ministro da Justiça, indicar sequer alguém para o maior posto da PF.
Considerados antidemocráticos, os atos realizados pelo país àquela altura eram apenas a face visível de um trabalho estrategicamente elaborado desde a campanha presidencial nos porões da internet, com ajuda de apoiadores da chamada linha de pensamento conservador que ganhou brado com a chegada de Bolsonaro ao poder. Para investigar as denúncias de mau uso das redes por parte do Governo a fim de insuflar uma faixa do eleitorado contra os Poderes constituídos, a polícia então instaurou em abril do ano passado um inquérito com a finalidade de investigar quem são os responsáveis pela atuação nas redes, quem financia e qual a relação de cada um deles com o comando do Governo federal. Revelou-se, a partir daí, uma ação coordenada entre os mais diferentes agentes, de parlamentares a empresários, passando por influenciadores digitais e donos de sites colocados sob suspeita pela PF.
Com a popularidade por vezes em xeque, o Governo era apontado como um incentivador de perfis dominados por robôs, que, com nomes e apelidos diferentes, repetiam à exaustão uma mesma crítica (muitas vezes com igual erro de português) ao STF ou a algum parlamentar na mira dos bolsonaristas. Com 1.023 páginas, o inquérito montado em oito meses de investigação revela a estreita relação de agentes públicos e apoiadores também com os filhos do presidente. Segundo o relatório, aliados ao clã Bolsonaro formavam o que foi batizado de gabinete do ódio, o que já se sabia há tempos, mas agora desvelado nas investigações com detalhes até então resguardados pela privacidade das redes sociais. Trecho do documento diz que o grupo incitava “parcela da população à subversão da ordem política ou social e à animosidade das Forças Armadas contra o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional”. Eduardo e Carlos Bolsonaro foram intimados na condição de testemunha para falar sobre os atos antidemocráticos. Assíduos nas redes sociais, eles fazem críticas costumeiras às medidas adotadas pelo STF e pelo Congresso contra o Governo do pai.
Nunca antes um inquérito da PF havia vasculhado tamanho volume de indícios que colocam o governante do país em situação tão desconfortável quando o assunto é a destituição do Judiciário ou do Legislativo.
As investigações se concentraram por um tempo numa figura de zerada expressão pública, mas com trânsito aparentemente livre entre Bolsonaro e seus familiares. Tido como um dos participantes do gabinete do ódio, Tercio Arnaud Tomaz é lotado como assessor no gabinete de vereador de Carlos Bolsonaro, no Rio, mas dava expediente no Palácio do Planalto numa sala contígua a do gabinete presidencial, no terceiro andar. Ao lado de outros assessores, Arnauld opera ou administra, segundo a polícia, perfis disseminadores de falsas informações. Há cerca de dois anos, ele foi chamado para “impulsionar” as redes bolsonaristas.
O foco das investigações em torno de Arnauld ganhou tinta quando a polícia descobriu ―e o STF decidiu divulgar ao liberar o sigilo do inquérito― que a atuação dele não se restringia aos corredores palacianos. Ex-recepcionista de hotel alçado à condição de mentor intelectual do grupo que produziria fake news, além de memes e piadas para atacar moralmente os adversários do presidente, Arnaud teve suas redes devassadas. Foram encontradas 31 pessoas vinculadas a contas operadas ou administradas por ele.
Mas foi ao quebrar o sigilo dos perfis que a polícia descobriu um elo ainda mais forte da atuação dos Bolsonaros no ambiente profundo do mundo virtual. Arnauld já havia acessado as contas Bolsonaronews e Tercio Arnaud Tomaz através da rede da primeira-dama Michelle Bolsonaro. E não foi em Brasília. “Trata-se, ao que tudo indica, do endereço residencial do presidente Jair Bolsonaro, no Rio de Janeiro”, segundo um dos analistas da PF que relatou no inquérito.
Todos os integrantes da família Bolsonaro negam irregularidades no uso de suas redes sociais. A polícia descobriu ainda que tais perfis administrados por Arnaud foram acessados 1.045 vezes também de computadores do Senado Federal, da Câmara, da Presidência da República e até do Comando da Brigada de Artilharia Antiaérea. “Ao que tudo indica, as contas objeto desta análise, removidas pelo Facebook de suas redes sociais, se enquadram na tipologia ‘Operações executadas por um governo para atingir seus próprios cidadãos. Isso pode ser particularmente preocupante quando combinam técnicas enganosas com o poder de um Estado’”, diz o relatório da PF.
Assessores ligados aos filhos de Bolsonaro atuam, de acordo com a investigação, em contas sem autenticação usadas para atacar opositores do Governo. Para tentar entender melhor como funciona a dinâmica dos ataques na internet, a PF foi abastecida com informações da Atlantic Council, empresa especializada em analisar comportamentos inautênticos nas redes sociais. Verificou-se, a partir daí, que três grupos ―chamados Rio, Brasília e São Bernardo do Campo― tinham atuação relevante entre os bolsonaristas.
Uma das informações obtidas através da Atlantic é que Fernando Nascimento Pessoa operava seis contas ocultas em redes sociais. Pessoa é assessor de Flávio Bolsonaro desde 2014 e investigado no caso da rachadinha à época em que trabalhava para Flávio na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj).
O relatório destaca nomes como a ativista Sara Giromini (conhecida como Sara Winter) e o jornalista Oswaldo Eustáquio. Mais que apoiadores, ambos tinham cargo no Governo e atuavam a favor do presidente Bolsonaro enquanto recebiam salários no ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, comandado pela religiosa Damares Alves. Sara e Eustáquio chegaram a ser presos durante a investigação, e desde então diminuíram, ao menos publicamente, suas presenças nas redes.
Foram oito meses de investigação, até dezembro, quando a Polícia Federal encaminhou o inquérito para o STF. Alexandre de Moraes, então, enviou o documento para a Procuradoria Geral da República, que, cinco meses depois, em maio deste ano, pediu o arquivamento do processo. O ministro do STF solicitou mais informações à Procuradoria, antes de decidir se daria ou não por encerrado o processo que investiga aliados do Governo. Antes, porém, Moraes liberou o sigilo de toda a investigação, resguardando apenas os documentos obtidos ao longo da apuração.
Na última quinta, a PGR reiterou ao STF pedido de arquivamento dos processos contra deputados com trânsito livre na Presidência. O vice-procurador Humberto Jacques de Medeiros afirmou: “Não se pode prolongar investigação sabidamente infrutífera”. O procurador-geral, Augusto Aras, aliado de Bolsonaro, tenta uma indicação para o STF.
A julgar pela transcrição das mensagens, fotos e cópias de documentos anexados ao inquérito, as investigações devem dar fruto. O que já era percebido nas redes sociais foi revelado com detalhes pelas investigações. Os dois primeiros anos do Governo Bolsonaro foram marcados por forte atuação de agentes da Secretaria Epecial de Comunicação (Secom) junto às chamadas redes aliadas para propagar o que era de interesse do Governo, consequentemente, contra as ações do Congresso e principalmente do STF. Foram ataques direcionados a Moraes que levaram o deputado bolsonarista Daniel Silveira à prisão, de onde saiu obrigado a usar tornozeleira eletrônica.
O inquérito mostra que o ex-secretário de Comunicação da Presidência, Fabio Wajngarten, abraçou a causa bolsonarista e estabeleceu, em sua gestão, uma forte relação com os influenciadores digitais da direita. Segundo relatório da PF, em abril de 2019 Wajngarten assumiu o comando da Secom e tratou de se aproximar do blogueiro Allan dos Santos, dono do site Terça Livre e amigo dos filhos do presidente.
Na ocasião, mostra o documento, Wajngarten se apresentou para Allan dizendo que poderia aproximá-lo de veículos tradicionais de imprensa e que, naquela semana, já havia promovido encontros de parlamentares com a cúpula do SBT, da Band e se encontraria com “bispos da Record”. Wajngarten nega que tenha havido interesse político na aproximação. “Minha gestão sempre foi técnica e profissional. Cabe à Secom atender a todos os veículos de maneira equânime”, afirmou.
O foco da operação policial nas ações que vinham sendo tomadas por pessoas próximos ao presidente terminou por um revés no comando das investigações. A delegada Denisse Ribeiro, responsável pelo caso, foi afastada do posto duas semanas depois de pedir ao STF autorização para realizar busca e apreensão nos gabinetes da Secom e da Presidência.
O conteúdo conservador dos blogs e páginas em rede social não rendem apenas seguidores com o mesmo viés ideológico. Desde a campanha de Bolsonaro à Presidência, pelo menos 12 perfis já receberam 4 milhões de reais via monetização de suas redes de apoio ao Governo. As páginas ganham reforço financeiro também de doadores espontâneos. O relatório da PF identificou que apenas o site Terça Livre, de propriedade de Allan dos Santos, receberia 100.000 reais por mês via plataformas de crowdfunding. “Durante busca e apreensão executava na residência de Allan dos Santos foi encontrada uma planilha de doadores do canal com mais de 1.700 linhas”, diz o documento da PF.
Nesse material consta, por exemplo, a doação de 70.000 reais por parte de uma servidora do BNDES, além de outros 40.000 reais por parte de um funcionário da secretaria da Fazenda, no Rio. O engajamento de pessoas simpáticas ao ambiente conservador tem suscitado desconfiança entre os investigadores. Allan dos Santos nega irregularidades ou responsabilidade na divulgação de notícias falsas. “Resta saber se essas doações são por pura simpatia à causa ou se tem gente tendo que rachar salário para abastecer um ambiente perverso à democracia”, diz um delegado da PF de São Paulo que ajudou nas investigações ao longo do ano passado.
Diz o documento: “Segundo os dados discutidos por pessoas ligadas à gestão financeira do Terça Livre, entre 13 de abril e 2020 e 13 de maio de 2020, foram realizadas 1.581 transações, das quais 659 sem reconhecimento de identificação de CPF.” À letra da lei, transações financeiras que ocultam a identificação dos negociadores revelam, no mínimo, uma dinâmica inapropriada. No rol de aliados também ouvido pela Polícia Federal, o empresário Otavio Fakhoury aparecia até então não só como um entusiasta do Governo bolsonarista, mas um dos grandes críticos ao STF e ao Congresso, fórmula capaz de transformar em aliado qualquer amigo de primeira hora da família Bolsonaro.
Uma análise feita no celular de Fakhoury mostra sua disposição em atacar o STF quando o assunto desagrada o Governo, como aconteceu quando o ministro Luís Roberto Barroso o criticou o uso de hidroxicloroquina como medicamento para prevenir a covid-19, num tratamento precoce sem qualquer comprovação científica, mas até hoje usado como uma bandeira bolsonarista.
Numa conversa em maio de 2020, semanas depois daquele domingo ensolarado em que Bolsonaro apoiou o ato contra o STF, Fakhoury endossou as críticas da deputada Bia Kicis (PS) contra o ministro Barroso. Defensora fervorosa da atual Administração, o que lhe rendeu a presidência da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) na Câmara, Kicis reclamou com o empresário que Barroso estava tentando barrar o uso do remédio como tratamento precoce a covid-19. “Canalhas. Olha, vai ser muito difícil terminar esse governo sem entrar de cabeça numa guerra institucional contra eles, porque eles é que invadem o Executivo”, respondeu Fakhoury.
Dois meses antes, o empresário havia procurado Eduardo Bolsonaro para que o deputado tentasse lhe ajudar a conseguir um dial de FM para migrar a rádio que ele administra na internet. Numa das mensagens interceptadas pela polícia, o empresário dispara: “Precisamos da FM, nossa arma para a guerra política.” O empresário declarou que a expressão “guerra política” não ultrapassa o limite do debate de ideias.
Eduardo Bolsonaro, deputado federal mais votado nas eleições para a Câmara em 2018, decidiu atender prontamente ao pedido do empresário e buscou apoio do bispo RR Soares. Dia depois do encontro com o religioso, disse ao empresário que pelo menos três rádios estariam à venda, e que ele (Fakhoury) deveria tratar com os negociadores. Procurada, a assessoria de imprensa do deputado não respondeu sobre as conversas com o empresário.
Sem precedentes no Brasil, a investigação pela Polícia Federal de atos antidemocráticos revelou uma relação dissoluta do Governo com sua base fisiológica, dentro e fora do poder. Ao que tudo indica, a dinâmica adotada pelo clã Bolsonaro para blindar o Planalto já não é uma dúvida para as autoridades federais, resta saber se, quando, quanto e quem pode ter recebido recursos para jogar nas trincheiras pró-bolsonaristas.
Nesse sentido, o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União decidiu pedir, na última quinta-feira, ao STF que compartilhe dados não só a respeito da organização, mas do financiamento desses atos, virtuais ou não. A ideia é entender se houve dinheiro público nesse custeio. “Chegar ao financiador nos permitirá descobrir quem está por trás da tentativa de perpetuar um governo que faz questão de acabar com instituições democráticas”, diz um senador integrante da CPI da Pandemia, que, assim como o inquérito dos atos antidemocráticos, também investiga toda a sorte de informações falsas responsáveis por prejudicar a luta contra a covid-19 no país.
Na manhã do dia 3 daquele mês, um domingo ensolarado, o presidente Jair Bolsonaro devotou-se a apoiar manifestantes em frente ao Palácio do Planalto. Não usava máscara, tampouco seguia a orientação de autoridades médicas e científicas para evitar ―ou ajudar a formar― aglomeração. Diante de fiéis seguidores, disse que havia chegado ao seu limite, e que pedia a Deus para não ter problemas.
Cercado de seguranças, gravou um vídeo para a equipe responsável pelas suas redes sociais. Nele, minimizava os primeiros efeitos da pandemia, a qual, mais de um ano depois, colocaria o Brasil na lista dos países com um dos mais altos índices de mortalidade em decorrência da covid-19: “Sabemos o efeito do vírus, infelizmente muitos serão infectados e perderão suas vidas, mas é uma realidade.” O indisfarçável desdém em relação à doença, no entanto, tinha um outro propósito naquele dia.
O colérico convescote à porta da sede do Governo reunia uma trupe de homens e mulheres de camisas e faixas verde e amarela, alguns enrolados em bandeira do Brasil, não para exigir medidas sanitárias que pudessem conter o avanço da doença, mas aguerridos em campanha pela reedição do Ato Institucional 5 (AI-5) e por intervenção militar, processo inconstitucional dada a apologia contra a democracia.
Os principais alvos eram o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso Nacional, após medidas contrárias ao pensamento bolsonarista. “Queremos a independência verdadeira dos três Poderes, não apenas uma letra da Constituição. Não vamos mais admitir interferência”, disse Bolsonaro, em tom peremptório se comparado à preocupação com as vítimas do coronavírus desde àquela ocasião.
Dias antes, um dos ministros do STF, Alexandre de Moraes, havia barrado o nome de Alexandre Ramagem para a diretoria-geral da Polícia Federal, sob o argumento de que a nomeação representava um desvio de finalidade do Governo para interferir politicamente na PF. Ramagem é amigo dos filhos do presidente, e a tentativa de acomodá-lo no cargo levou à crise do Planalto com o ex-juiz Sergio Moro, que abandonou o barco quando percebeu que não tinha carta branca para, como ministro da Justiça, indicar sequer alguém para o maior posto da PF.
Considerados antidemocráticos, os atos realizados pelo país àquela altura eram apenas a face visível de um trabalho estrategicamente elaborado desde a campanha presidencial nos porões da internet, com ajuda de apoiadores da chamada linha de pensamento conservador que ganhou brado com a chegada de Bolsonaro ao poder. Para investigar as denúncias de mau uso das redes por parte do Governo a fim de insuflar uma faixa do eleitorado contra os Poderes constituídos, a polícia então instaurou em abril do ano passado um inquérito com a finalidade de investigar quem são os responsáveis pela atuação nas redes, quem financia e qual a relação de cada um deles com o comando do Governo federal. Revelou-se, a partir daí, uma ação coordenada entre os mais diferentes agentes, de parlamentares a empresários, passando por influenciadores digitais e donos de sites colocados sob suspeita pela PF.
Com a popularidade por vezes em xeque, o Governo era apontado como um incentivador de perfis dominados por robôs, que, com nomes e apelidos diferentes, repetiam à exaustão uma mesma crítica (muitas vezes com igual erro de português) ao STF ou a algum parlamentar na mira dos bolsonaristas. Com 1.023 páginas, o inquérito montado em oito meses de investigação revela a estreita relação de agentes públicos e apoiadores também com os filhos do presidente. Segundo o relatório, aliados ao clã Bolsonaro formavam o que foi batizado de gabinete do ódio, o que já se sabia há tempos, mas agora desvelado nas investigações com detalhes até então resguardados pela privacidade das redes sociais. Trecho do documento diz que o grupo incitava “parcela da população à subversão da ordem política ou social e à animosidade das Forças Armadas contra o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional”. Eduardo e Carlos Bolsonaro foram intimados na condição de testemunha para falar sobre os atos antidemocráticos. Assíduos nas redes sociais, eles fazem críticas costumeiras às medidas adotadas pelo STF e pelo Congresso contra o Governo do pai.
Nunca antes um inquérito da PF havia vasculhado tamanho volume de indícios que colocam o governante do país em situação tão desconfortável quando o assunto é a destituição do Judiciário ou do Legislativo.
As investigações se concentraram por um tempo numa figura de zerada expressão pública, mas com trânsito aparentemente livre entre Bolsonaro e seus familiares. Tido como um dos participantes do gabinete do ódio, Tercio Arnaud Tomaz é lotado como assessor no gabinete de vereador de Carlos Bolsonaro, no Rio, mas dava expediente no Palácio do Planalto numa sala contígua a do gabinete presidencial, no terceiro andar. Ao lado de outros assessores, Arnauld opera ou administra, segundo a polícia, perfis disseminadores de falsas informações. Há cerca de dois anos, ele foi chamado para “impulsionar” as redes bolsonaristas.
O foco das investigações em torno de Arnauld ganhou tinta quando a polícia descobriu ―e o STF decidiu divulgar ao liberar o sigilo do inquérito― que a atuação dele não se restringia aos corredores palacianos. Ex-recepcionista de hotel alçado à condição de mentor intelectual do grupo que produziria fake news, além de memes e piadas para atacar moralmente os adversários do presidente, Arnaud teve suas redes devassadas. Foram encontradas 31 pessoas vinculadas a contas operadas ou administradas por ele.
Mas foi ao quebrar o sigilo dos perfis que a polícia descobriu um elo ainda mais forte da atuação dos Bolsonaros no ambiente profundo do mundo virtual. Arnauld já havia acessado as contas Bolsonaronews e Tercio Arnaud Tomaz através da rede da primeira-dama Michelle Bolsonaro. E não foi em Brasília. “Trata-se, ao que tudo indica, do endereço residencial do presidente Jair Bolsonaro, no Rio de Janeiro”, segundo um dos analistas da PF que relatou no inquérito.
Todos os integrantes da família Bolsonaro negam irregularidades no uso de suas redes sociais. A polícia descobriu ainda que tais perfis administrados por Arnaud foram acessados 1.045 vezes também de computadores do Senado Federal, da Câmara, da Presidência da República e até do Comando da Brigada de Artilharia Antiaérea. “Ao que tudo indica, as contas objeto desta análise, removidas pelo Facebook de suas redes sociais, se enquadram na tipologia ‘Operações executadas por um governo para atingir seus próprios cidadãos. Isso pode ser particularmente preocupante quando combinam técnicas enganosas com o poder de um Estado’”, diz o relatório da PF.
Assessores ligados aos filhos de Bolsonaro atuam, de acordo com a investigação, em contas sem autenticação usadas para atacar opositores do Governo. Para tentar entender melhor como funciona a dinâmica dos ataques na internet, a PF foi abastecida com informações da Atlantic Council, empresa especializada em analisar comportamentos inautênticos nas redes sociais. Verificou-se, a partir daí, que três grupos ―chamados Rio, Brasília e São Bernardo do Campo― tinham atuação relevante entre os bolsonaristas.
Uma das informações obtidas através da Atlantic é que Fernando Nascimento Pessoa operava seis contas ocultas em redes sociais. Pessoa é assessor de Flávio Bolsonaro desde 2014 e investigado no caso da rachadinha à época em que trabalhava para Flávio na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj).
O relatório destaca nomes como a ativista Sara Giromini (conhecida como Sara Winter) e o jornalista Oswaldo Eustáquio. Mais que apoiadores, ambos tinham cargo no Governo e atuavam a favor do presidente Bolsonaro enquanto recebiam salários no ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, comandado pela religiosa Damares Alves. Sara e Eustáquio chegaram a ser presos durante a investigação, e desde então diminuíram, ao menos publicamente, suas presenças nas redes.
Foram oito meses de investigação, até dezembro, quando a Polícia Federal encaminhou o inquérito para o STF. Alexandre de Moraes, então, enviou o documento para a Procuradoria Geral da República, que, cinco meses depois, em maio deste ano, pediu o arquivamento do processo. O ministro do STF solicitou mais informações à Procuradoria, antes de decidir se daria ou não por encerrado o processo que investiga aliados do Governo. Antes, porém, Moraes liberou o sigilo de toda a investigação, resguardando apenas os documentos obtidos ao longo da apuração.
Na última quinta, a PGR reiterou ao STF pedido de arquivamento dos processos contra deputados com trânsito livre na Presidência. O vice-procurador Humberto Jacques de Medeiros afirmou: “Não se pode prolongar investigação sabidamente infrutífera”. O procurador-geral, Augusto Aras, aliado de Bolsonaro, tenta uma indicação para o STF.
A julgar pela transcrição das mensagens, fotos e cópias de documentos anexados ao inquérito, as investigações devem dar fruto. O que já era percebido nas redes sociais foi revelado com detalhes pelas investigações. Os dois primeiros anos do Governo Bolsonaro foram marcados por forte atuação de agentes da Secretaria Epecial de Comunicação (Secom) junto às chamadas redes aliadas para propagar o que era de interesse do Governo, consequentemente, contra as ações do Congresso e principalmente do STF. Foram ataques direcionados a Moraes que levaram o deputado bolsonarista Daniel Silveira à prisão, de onde saiu obrigado a usar tornozeleira eletrônica.
O inquérito mostra que o ex-secretário de Comunicação da Presidência, Fabio Wajngarten, abraçou a causa bolsonarista e estabeleceu, em sua gestão, uma forte relação com os influenciadores digitais da direita. Segundo relatório da PF, em abril de 2019 Wajngarten assumiu o comando da Secom e tratou de se aproximar do blogueiro Allan dos Santos, dono do site Terça Livre e amigo dos filhos do presidente.
Na ocasião, mostra o documento, Wajngarten se apresentou para Allan dizendo que poderia aproximá-lo de veículos tradicionais de imprensa e que, naquela semana, já havia promovido encontros de parlamentares com a cúpula do SBT, da Band e se encontraria com “bispos da Record”. Wajngarten nega que tenha havido interesse político na aproximação. “Minha gestão sempre foi técnica e profissional. Cabe à Secom atender a todos os veículos de maneira equânime”, afirmou.
O foco da operação policial nas ações que vinham sendo tomadas por pessoas próximos ao presidente terminou por um revés no comando das investigações. A delegada Denisse Ribeiro, responsável pelo caso, foi afastada do posto duas semanas depois de pedir ao STF autorização para realizar busca e apreensão nos gabinetes da Secom e da Presidência.
O conteúdo conservador dos blogs e páginas em rede social não rendem apenas seguidores com o mesmo viés ideológico. Desde a campanha de Bolsonaro à Presidência, pelo menos 12 perfis já receberam 4 milhões de reais via monetização de suas redes de apoio ao Governo. As páginas ganham reforço financeiro também de doadores espontâneos. O relatório da PF identificou que apenas o site Terça Livre, de propriedade de Allan dos Santos, receberia 100.000 reais por mês via plataformas de crowdfunding. “Durante busca e apreensão executava na residência de Allan dos Santos foi encontrada uma planilha de doadores do canal com mais de 1.700 linhas”, diz o documento da PF.
Nesse material consta, por exemplo, a doação de 70.000 reais por parte de uma servidora do BNDES, além de outros 40.000 reais por parte de um funcionário da secretaria da Fazenda, no Rio. O engajamento de pessoas simpáticas ao ambiente conservador tem suscitado desconfiança entre os investigadores. Allan dos Santos nega irregularidades ou responsabilidade na divulgação de notícias falsas. “Resta saber se essas doações são por pura simpatia à causa ou se tem gente tendo que rachar salário para abastecer um ambiente perverso à democracia”, diz um delegado da PF de São Paulo que ajudou nas investigações ao longo do ano passado.
Diz o documento: “Segundo os dados discutidos por pessoas ligadas à gestão financeira do Terça Livre, entre 13 de abril e 2020 e 13 de maio de 2020, foram realizadas 1.581 transações, das quais 659 sem reconhecimento de identificação de CPF.” À letra da lei, transações financeiras que ocultam a identificação dos negociadores revelam, no mínimo, uma dinâmica inapropriada. No rol de aliados também ouvido pela Polícia Federal, o empresário Otavio Fakhoury aparecia até então não só como um entusiasta do Governo bolsonarista, mas um dos grandes críticos ao STF e ao Congresso, fórmula capaz de transformar em aliado qualquer amigo de primeira hora da família Bolsonaro.
Uma análise feita no celular de Fakhoury mostra sua disposição em atacar o STF quando o assunto desagrada o Governo, como aconteceu quando o ministro Luís Roberto Barroso o criticou o uso de hidroxicloroquina como medicamento para prevenir a covid-19, num tratamento precoce sem qualquer comprovação científica, mas até hoje usado como uma bandeira bolsonarista.
Numa conversa em maio de 2020, semanas depois daquele domingo ensolarado em que Bolsonaro apoiou o ato contra o STF, Fakhoury endossou as críticas da deputada Bia Kicis (PS) contra o ministro Barroso. Defensora fervorosa da atual Administração, o que lhe rendeu a presidência da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) na Câmara, Kicis reclamou com o empresário que Barroso estava tentando barrar o uso do remédio como tratamento precoce a covid-19. “Canalhas. Olha, vai ser muito difícil terminar esse governo sem entrar de cabeça numa guerra institucional contra eles, porque eles é que invadem o Executivo”, respondeu Fakhoury.
Dois meses antes, o empresário havia procurado Eduardo Bolsonaro para que o deputado tentasse lhe ajudar a conseguir um dial de FM para migrar a rádio que ele administra na internet. Numa das mensagens interceptadas pela polícia, o empresário dispara: “Precisamos da FM, nossa arma para a guerra política.” O empresário declarou que a expressão “guerra política” não ultrapassa o limite do debate de ideias.
Eduardo Bolsonaro, deputado federal mais votado nas eleições para a Câmara em 2018, decidiu atender prontamente ao pedido do empresário e buscou apoio do bispo RR Soares. Dia depois do encontro com o religioso, disse ao empresário que pelo menos três rádios estariam à venda, e que ele (Fakhoury) deveria tratar com os negociadores. Procurada, a assessoria de imprensa do deputado não respondeu sobre as conversas com o empresário.
Sem precedentes no Brasil, a investigação pela Polícia Federal de atos antidemocráticos revelou uma relação dissoluta do Governo com sua base fisiológica, dentro e fora do poder. Ao que tudo indica, a dinâmica adotada pelo clã Bolsonaro para blindar o Planalto já não é uma dúvida para as autoridades federais, resta saber se, quando, quanto e quem pode ter recebido recursos para jogar nas trincheiras pró-bolsonaristas.
Nesse sentido, o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União decidiu pedir, na última quinta-feira, ao STF que compartilhe dados não só a respeito da organização, mas do financiamento desses atos, virtuais ou não. A ideia é entender se houve dinheiro público nesse custeio. “Chegar ao financiador nos permitirá descobrir quem está por trás da tentativa de perpetuar um governo que faz questão de acabar com instituições democráticas”, diz um senador integrante da CPI da Pandemia, que, assim como o inquérito dos atos antidemocráticos, também investiga toda a sorte de informações falsas responsáveis por prejudicar a luta contra a covid-19 no país.
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