quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Nunca recicle

 


Zema exumou velhos sentimentos preconceituosos e separatistas

O brasileiro é uma invenção dos mineiros. Seu mito fundador é a Inconfidência, em 1789, ou seja, vem de antes da Independência, que só viria a ocorrer em 1822, cujos protagonistas se dividiram em dois partidos: o dos brasileiros e o dos portugueses. O Partido dos Brasileiros já nasceu dividido entre democratas, liderado por Gonçalves Ledo, que defendia um regime parlamentarista, e aristocratas, tendo à frente José Bonifácio, que defendia um Executivo forte, com medo da fragmentação territorial.

O risco de fragmentação, como aconteceu em toda a América Latina, era real. Viria a se expressar com muita força, por exemplo, na Confederação do Equador, em 1824, tendo à frente Pernambuco. A república seria formada também pelas províncias de Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Sergipe e Alagoas, mas nenhuma delas aderiu ao movimento separatista. E, também, na Revolução Farroupilha (1835-1845), com a formação da República Rio-Grandense e da República Juliana. No primeiro caso, os líderes foram executados, entre os quais Frei Caneca, arcabuzado; no segundo, os que negociaram a paz foram anistiados e incorporados ao Exército, com suas patentes.

Com a dura repressão das revoltas, entre as quais a Balaiada (MA) e a Cabanagem (PA), manteve-se a integridade territorial do país e a centralização do poder do imperador Pedro II, para o qual foram fundamentais o Senado, com sua política de conciliação, e a magistratura togada, nomeada pelo Imperador. O Exército e a Marinha foram constituídos nesse processo. A construção da identidade do povo brasileiro, porém, foi muito mais lenta, para o qual teve papel decisivo a Revolução de 1930.

Nela, houve choque de concepções: de um lado, os setores da elite que adotaram as teses de Oliveira Vianna, para o qual as estruturas políticas republicanas eram artificiais e o Brasil meridional, liderado pela elite agrária e os militares, seria a matriz da formação do novo Estado brasileiro; de outro, setores castilhistas que tinham identidade com as massas trabalhadoras, liderados por Alberto Pasqualini. A elite paulista, com concepções liberais, tentou retomar o poder em 1932 e fracassou, mas cultivou com êxito a ideia de que São Paulo é a locomotiva do país. O Rio de Janeiro fazia o contraponto, era o “tambor do Brasil”.

Coube, mais uma vez, aos mineiros, com Juscelino Kubitschek, o projeto de integração e combate às desigualdades regionais, cujo âncora geopolítica foi a construção de Brasília, para onde foi transferido o Distrito Federal. Essa ideia-força viria a ser a bandeira legitimadora do regime militar, cujo lema era Segurança e Desenvolvimento, uma leitura autocrática do lema positiva da bandeira nacional: Ordem e Progresso.


Mas a ideia de que somos um só povo e uma só nação não foi monopolizada pelos militares, apesar do Pra frente, Brasil da Copa do México, em 1970. Na letra de Para Todos, Chico Buarque sintetiza as características do núcleo familiar que resulta do fluxo migratório, juntamente com a miscigenação, e sedimenta união dos brasileiros: “O meu pai era paulista/ Meu avô, pernambucano/ O meu bisavô, mineiro/ Meu tataravô, baiano”. O compositor foi um ferrenho oposicionista ao regime, tendo amargado o exílio por causa de suas canções.

Entretanto, não devemos acreditar que as nossas contradições regionais e preconceitos étnicos e sociais tenham deixado de existir. Em São Paulo, todo nordestino é baiano; no Rio, paraíba. Todo louro é galego ou gaúcho; no Araguaia, todo forasteiro era paulista. O governador de Minas, Romeu Zema, com seu sincericídio, exumou sentimentos negativos em relação ao Nordeste e despertou o ressentimento ideológico dos que venceram as eleições nos estados do Sul e do Sudeste, mas não reelegeram o ex-presidente Jair Bolsonaro, devido à grande votação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Nordeste. Não devemos subestimar as implicações que isso terá daqui para a frente.

Há uma articulação de governadores do Sul e do Sudeste contra os estados do Norte e Nordeste na reforma tributária, por causa da mudança da arrecadação dos tributos da origem para o destino das mercadorias. Essa articulação foi bem-sucedida na Câmara, mas está inferiorizada no Senado, no qual a federação está representada de forma igualitária: três senadores para cada estado. Celso Furtado, entre os intérpretes do Brasil, foi dos mais preocupados com o papel do federalismo. Advertia que essa bandeira estava condenada a reencarnar ciclicamente, em todos os momentos críticos, que colocassem em tela o contrato social e a reformulação do arranjo de poder. A reforma tributária é isso.

Sua grande preocupação era arquitetar um “federalismo regionalizado cooperativo” como instrumento para impedir a exclusão do Nordeste e evitar a implosão da nação pela radicalização de suas disparidades regionais. Com sinal trocado, o histórico unitarismo da esquerda brasileira, desde os antigos PCB e PTB, dificulta esse federalismo cooperativo.

Mas há uma questão ainda mais séria. Um dos ingredientes da globalização vem sendo o enfraquecimento da identidade nacional e a sua fragmentação. O sujeito e a identidade na modernidade tardia e pós-moderna foram fragmentados; nas redes sociais, isso é evidente. Historicamente, as identidades étnicas e regionais foram abrigadas sob o teto do Estado-nação, numa comunidade estável, com território próprio e idioma comum, mas isso está mudando no mundo. A nação é uma construção imaginária, que não pode ser subalternizada por sentimentos culturais e étnicos regionais. O que o governador Zema fez foi apartar os brasileiros do Sul e do Sudeste dessa comunidade imaginária. Seríamos dois Brasis, um moderno, produtivo e autossuficiente; outro atrasado e improdutivo, que precisa ser carregado nas costas. É aí que mora o perigo.

Sachs: pioneiro de ideias

Em cada pessoa, a maneira de pensar depende de encontros marcantes ao longo da vida com professores, parentes, amigos; no meu caso, tive a sorte de encontrar Ignacy Sachs. Na semana passada, o mundo perdeu esse importante pensador. Por quase 60 anos ele fez parte daqueles que iniciaram a reflexão sobre os limites do progresso identificado com aumento da produção industrial e elaboraram propostas para uma reorientação no rumo da civilização em direção ao desenvolvimento sustentável, que, ainda em 1970, ele definiu como ecodesenvolvimento.

Foi um dos primeiros desbravadores da ideia de entender e cuidar do progresso levando em conta os limites ecológicos e o valor da biodiversidade. Sendo, por isso, necessário livrar a civilização da ânsia de aumentar a produção industrial e da voracidade por consumir produtos. Além de pensador e estrategista, Sachs foi um economista pragmático que ofereceu propostas concretas sobre como fazer funcionar economias sustentáveis em diversas regiões do mundo, inclusive na Zona da Mata e na Amazônia brasileiras. As mudanças climáticas fizeram suas ideias inovadoras serem aceitas, meio século depois de formuladas.


Mas essas não foram as únicas contribuições de seu pensamento pioneiro. Enquanto as ideias sociais e políticas eram polarizadas pela Cortina de Ferro, Sachs percebia e denunciava o capitalismo ocidental e o socialismo soviético como filhos da revolução industrial: produtos da arrogância antropocêntrica, irmãos siameses na construção da catástrofe ecológica. Enquanto a imensa maioria dos pensadores embarcava no delírio do poder ilimitado do avanço técnico, ele alertava para os riscos do descontrole da técnica sem valores éticos. Antes de quase todos, ele viu o planeta e a humanidade como mais importantes do que os países isoladamente. Sachs nos fez perceber que houve um tempo em que o mundo era a soma de países, mas no presente, cada país é um pedaço do mundo.

O nome Ignacy Sachs continuará vivo, como precursor, seja sinalizando os riscos que levarão à catástrofe civilizatória, seja como desbravador das ideias que permitirão a sobrevivência da humanidade. Essa mente brilhante e pioneira foi formada graças à vida cosmopolita de quase um século entre 1927 e 2023. Judeu, nascido na Polônia, pouco antes da ascensão do nazismo, veio refugiado para o Brasil com a família no início dos anos 40, onde fez o curso secundário e se formou em economia. Depois, optou por retornar ao seu país socialista, onde trabalhou com alguns dos mais importantes economistas marxistas.

Sachs fez doutorado na Universidade de Nova Délhi, na Índia dos anos 1950, primeiros anos de independência, onde teve acesso a grandes mestres e a um momento histórico do pensamento e da prática do desenvolvimentismo, em uma economia mista, capitalista, com forte participação do Estado. Retornando à Polônia, trabalhou como professor e planejador na construção da economia socialista sob orientação marxista. Até que, em 1968, nova perseguição antissemita promovida então pelo partido comunista, obrigou-o a asilar-se na França. Em Paris, como professor, tratou os brasileiros que chegavam no exílio como compatriotas, e em muitos deles deixou a marca de seu pensamento pioneiro, heterodoxo, cosmopolita, despertando em todos a visão crítica ao desenvolvimento depredador e inspirando o compromisso com o desenvolvimento sustentável.

Devemos a ele não apenas a orientação em nossos doutorados, mas sobretudo a mente livre de preconceitos ideológicos ou teóricos e comprometida com valores humanistas, na defesa do equilíbrio ecológico e da justiça social com democracia. Direta ou indiretamente, ele esteve por trás da filosofia que levou ao Proálcool, que criou o CDS da UnB, que promove o microcrédito, que busca combinar grandes e pequenas empresas, encontrar soluções simples para problemas complexos, adaptar modernas tecnologias importadas à realidade dos países pobres, construir economias mistas, onde a eficiência do setor privado combine com o planejamento e com o atendimento social graças ao Estado. Até mesmo a cooperação entre Índia, Brasil e África do Sul, que levou ao BRICS, tem a ver com uma estratégia proposta por ele há mais de 50 anos.

Sachs alertou para o mal que o crescimento econômico provocou sobre a Terra e inspirou como reorientar o progresso. Morreu dormindo, mas suas últimas palavras poderiam ter sido “valeu a pena para mim” e “ainda é tempo para a humanidade”. Por tudo isso, o 2 de agosto de 2023 foi um dia em que a Terra chorou, com esperança.

Hatuey

Nestas ilhas, nestes humilhadeiros, são muitos os que escolhem sua morte, enforcando-se ou bebendo veneno junto aos seus filhos. Os invasores não podem evitar essa vingança, mas sabem explicá-la: os índios, tão selvagens que pensam que tudo é comum, dirá Oviedo, são gente de natural ociosa e viciosa, e de pouco trabalho... Muitos deles por ser passatempo, se mataram com peçonha para não trabalhar, e outros se enforcaram com suas próprias mãos.

Hatuey, chefe índio da região da Guahaba, não se suicidou. Em canoa fugiu do Haiti, junto aos seus, e se refugiou nas covas e montes do oriente de Cuba.

Ali apontou uma cesta cheia de ouro e disse:

– Este é o deus dos cristãos. Por causa dele nos perseguem. Por ele morreram nossos pais e nossos irmãos. Bailemos para ele. Se nossa dança o agradar, este deus mandará que não nos maltratem.

É agarrado três meses depois.

E amarrado em um pau.

Antes de acender o fogo que o reduzirá a carvão e cinza, um sacerdote promete-lhe glória e eterno descanso se aceitar batizar-se. Hatuey pergunta:

– Nesse céu estão os cristãos?

– Sim.

Hatuey escolhe o inferno e a lenha começa a crepitar.

Eduardo Galeano, "Os Nascimentos"

O que sumiu e o que voltou

Começou há algumas semanas, quando me gabei de ter sido um grande chutador de tampinhas, daquelas de refrigerante, soltas nas calçadas. Dias depois, um leitor perguntou se eu era capaz de dar o piparote com o sapato na borda da tampinha, fazê-la subir e matá-la no peito do pé. Humilhado, tive de confessar que não. E, agora, outro leitor, para meu opróbrio supremo, escreve para dizer que no peito do pé era fácil - ele queria ver era se o sujeito fazia, como ele, a tampinha pousar no lado do pé. Tudo isto porque observei que, por falta das próprias, ninguém mais chuta tampinhas pelas ruas.

Muita coisa deixou de existir por falta de matéria-prima. Por exemplo, ninguém mais escorrega em cascas de banana. Continua a chover, mas não se usam mais galochas. Ninguém mais cheira rapé ou sopra chicletes de bola. Ninguém mais usa boina, só boné, e, mesmo assim, ao contrário. Artigos de primeira necessidade como o pote de goma arábica, o mata-borrão e a espátula para abrir cartas deixaram de existir. Ninguém mais lambe selos para pregar no envelope. Eu próprio há anos não lambo um selo e não escrevo ou recebo uma carta.

Velhos hábitos desapareceram. Desaprendemos, por exemplo, a aplaudir sentados. Qualquer showzeco nota 3, se aplaudido, é hoje aplaudido de pé. Em breve, teremos de plantar bananeiras para premiar uma performance verdadeiramente genial. E perdeu-se de vez a arte de bater carteiras. Os atuais meliantes não se valem mais de dedos leves e hábeis para subtraí-las de nossos bolsos. Vão direto de trabuco no nariz, até porque, com o celular e o pix, já quase não se usam carteiras. .

Em compensação, coisas há muito dadas como extintas estão voltando espetacularmente. Uma delas é o bigodinho, fora de moda há uns 70 anos. Os garotos voltaram a jogar bafo com as figurinhas. E até o estrogonofe voltou.

Mas preocupante mesmo é a volta do nazismo.

Ruy Castro