quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Pensamento do Dia

 


A silenciada voz do Brasil

Dias antes de deixar o posto de alta comissária das Nações Unidas para Direitos Humanos, Michelle Bachelet, duas vezes eleita presidente do Chile, falou ao jornalista Jamil Chade, do UOL.

Com um misto de nostalgia e aflição, lembrou o papel que o Brasil desempenhava até 2019, quando o atual presidente assumiu. Segundo ela, fomos importantes "para que os países em desenvolvimento pudessem ter melhores oportunidades e fossem escutados" nos fóruns mundiais.

Na realidade, a atuação do Brasil foi muito mais ampla. Foi importante para o estabelecimento na região de uma sociedade de Estados baseada na diplomacia e no direito internacional, cuja existência enfatizou o cientista político argentino Federico Merke. Ele chamou a atenção para o fato de a América Latina abrigar o maior número de tratados sobre questões de paz e segurança no mundo, sendo apenas superada pela Europa em matéria de organizações internacionais —além de ser a primeira região desnuclearizada do planeta e, desde 1935, sem guerras entre os seus Estados. Um paradoxo diante da instabilidade política e da violência doméstica da maioria dos países da área.


Os papéis desempenhados pelo Brasil são, de resto, indissociáveis. Por ser âncora do convívio pacífico da sociedade de Estados na América do Sul, o país pôde funcionar como uma espécie de abre-alas para que as vozes dos vizinhos fossem ouvidas ali onde são tomadas decisões que os afetam.

Como se não bastasse desmoralizar a nação em cada um dos fóruns onde até bem pouco era ouvida e respeitada, o atual ocupante do Palácio do Planalto não perde ocasião de criar gratuita animosidade com parceiros importantes do Cone Sul. Confunde os muitos interesses comuns entre os Estados que, além de vizinhos, enfrentam desafios similares no sistema internacional, com diferenças de orientação política e preferências partidárias que resultam inevitavelmente de eleições periódicas.

Assim, no debate eleitoral de domingo passado (28), transmitido por um pool de órgãos de imprensa —do qual, aliás, a discussão sobre a atuação externa do Brasil esteve escandalosamente ausente—, o presidente-candidato, coerente com tudo aquilo que dele a maioria dos cidadãos está exausta de conhecer, disparou ofensas baixas e gratuitas aos seus homólogos da Argentina, Chile e Colômbia.

Mesmo fora do radar dos candidatos e da esmagadora maioria dos eleitores, recuperar a voz, o respeito e o lugar do país no seu entorno e para além dele é desafio inescapável de qualquer agenda de reconstrução nacional depois da política de terra arrasada levada a efeito pelo ex-capitão.

Brasil, 200 anos – o eterno país do futuro

Quando aportou pela primeira vez no Rio de Janeiro, o austríaco Stefan Zweig, um dos maiores escritores da primeira metade do século XX, teve um caso de amor à primeira vista com o nosso país. Inspirado pelas ideias de Gilberto Freire, Sérgio Buarque e Roberto Simonsen, escreveu em 1941 o livro “Brasil, o país do futuro” que fez a cabeça de muita gente. Sua tese central era de que estávamos fadados a ser uma potência mundial em virtude de vários ativos de nosso país: unidade linguística e territorial, ausência de grandes conflitos com os países vizinhos, um povo multicolor, conflitos internos resolvidos pela via da conciliação e riquezas naturais imensas.

Stefan Zweig, de origem judaica, deixou a Áustria e viveu por dois anos em Petrópolis, onde, juntamente com sua esposa Lotte, suicidou-se um ano após a publicação do seu livro em vários idiomas. Seu encanto pelo Brasil se deveu ao fato de não ter encontrado aqui o mesmo conflito racial que levou a Europa a ser palco da II Guerra Mundial.

Duzentos anos depois da independência, a concretização do Brasil como uma nação desenvolvida econômica, socialmente justa e com peso no concerto internacional das nações continua sendo projetada para um futuro distante do nosso horizonte.


É verdade, houve momentos em que o futuro parecia estar ao alcance de nossas mãos e o Brasil chegaria a seu destino de grande potência. Entender por que o sonho escapou dos brasileiros é o primeiro passo para finalmente deixarmos de ser o país do futuro para ser o país do presente.

As quatro décadas após a primeira edição do livro de Stefan foram um desses momentos mágicos. Entre 1930 e 1980 a economia Brasileira foi a que mais cresceu no mundo, com a média anual de expansão acima de 6%. Éramos uma nação com crescimento superior à média mundial e dos demais países emergentes. Em 1980 a economia brasileira tinha o status de décima do planeta, com 4,3% do PIB mundial.

De país emergente nos transformamos em país submergente, nos últimos quarenta anos. Crescemos menos do que a média mundial ou de outras economias similares. Entre 1980 e 2021 a média anual de expansão do PIB brasileiro girou em torno de 2% e nos últimos 25 anos de 1,1%. Nossa participação no PIB mundial encolheu pela metade nesse espaço de tempo, devendo ser apenas de 2,3% em 2022. Em quarenta anos, o Brasil enfrentou nada menos do que dez recessões!

Perdemos o bonde da história no mesmo período em que a China se afirmou como a segunda economia do mundo e a Coreia deu um salto extraordinário por meio de fortes investimentos na educação básica, na inovação tecnológica e na integração com o mercado mundial por meio da exportação de bens de alto valor agregado.

A imagem do Brasil hoje não é a do Cristo Redentor decolando para o espaço, tal qual a ilustração da revista The Economist, de 2009. Quatro anos depois, a mesma revista deu uma capa com a pergunta “O Brasil estragou tudo?”. Nossa imagem passou a ser a de um gigante que encolheu.

Por trás desse encolhimento há razões históricas, como a profunda desigualdade social – uma herança que vem dos tempos do escravismo -, e nosso atraso educacional, consequência de um sistema excludente de quase dois séculos. Apenas na última década do século Xx o Brasil iniciou suas reformas educacionais.

A base do nosso atraso está, contudo, no modelo que turbinou o desenvolvimento entre os anos 30 e 80, pautado na substituição de importações por meio de fechamento da economia, reserva de mercado, financiamento da industrialização via endividamento externo, subsídios e privilégios, e, sobretudo, de forte ativismo e presença do Estado na economia. O modelo nacional-desenvolvimentista criou uma indústria de base, mas seu parque produtivo teve baixíssima produtividade, voltando-se para o mercado interno, sem competitividade no mercado mundial.

Esse modelo esgotou-se com o advento da Terceira Revolução Industrial, responsável pelo advento da globalização. Ao contrário da Coreia do Sul e da China, o Brasil não conseguiu se inserir nas cadeias globais de forma competitiva, a exceção do agronegócio. Desindustrializou-se e ficou sem um projeto de nação, apesar das tentativas de abertura e modernização da sua economia, das quais o Plano Real foi um marco. Mas afundamos emrecidivas do nacional-desenvolvimentismo, como a “nova matriz econômica” dos últimos anos do governo Lula e no período Dilma Rousseff.

Não se trata de ter uma visão catastrofista dos 200 anos de nossa existência como nação independente. O Brasil ingressou no século XXI com uma população dez vezes maior e com uma economia cem vezes maior do que tínhamos no início do século anterior. E mesmo nos últimos quarenta anos houve avanços civilizatórios significativos, como redução da mortalidade infantil, aumento da expectativa de vida, universalização do ensino básico, a construção do Sistema Único de Saúde e a consagração dos direitos sociais e políticos dos brasileiros em sua Constituição-cidadã.

Nosso país continua detentor dos mesmos ativos que levaram Stefan Zweig a se apaixonar por ele. Até hoje é impossível um visitante não ficar atraído pelo Brasil, como o diplomata austríaco Proskesch-Osten que nos definiu, em 1868: ”um país novo, um porto magnífico, um novo horizonte político, uma terra do futuro, um passado quase desconhecido e uma natureza esplêndida”.

Mas não podemos nos contentar a ser eternamente o país do futuro. É imperioso identificar as alavancas capazes de transformar o nosso presente, para, em sintonia com a nova onda tecnológica, alcançarmos o desenvolvimento sustentado e promovermos crescimento com equidade. Nosso desafio é ingressar no terceiro centenário com uma nova comunhão de destino entre os brasileiros, unidos em torno de um novo projeto nacional.

'O Brasil não será um grande país'

Ocupante da cadeira nº 5 da Academia Brasileira de Letras, cientista político, historiador consagrado com passagem por instituições americanas e europeias, pós-doutor pela Universidade de Stanford, José Murilo de Carvalho, de 83 anos, conversou com o jornal Público, de Portugal, na sede da ABL, no Rio, em entrevista ao jornal português Público marcada pelo desencanto com o Brasil atual. “Talvez seja a minha idade”, afirma ele, que coordena a série “200 anos de Brasil na ABL”.

O Brasil parece estar completamente abstraído do Bicentenário da Independência. Como explicar esse alheamento?

A celebração dos 200 anos da chegada da Corte ao Brasil, em 2008, foi quase nacional. O governo, à época, assumiu a liderança, o de hoje não se esforça muito. O ambiente do país, por sua vez, não está pra celebrações.

Era de se esperar que um governo de direita, mais apegado aos ideais nacionalistas, tivesse apostado mais na data, não?

Certamente. O presidente Jair Bolsonaro é de direita, mas é um bronco, totalmente inculto. Não tem nenhuma sensibilidade pra estas coisas, não dá valor.

O Brasil vive um ambiente de desistência cívica?

Há uma sensação de fracasso. Não temos como nos transformar numa grande potência. Como disse José Bonifácio, o sonho da Independência foi que, pelo tamanho e pela população, tínhamos condições de nos transformar num “grande império”. Mas quem conseguiu? A China. Qual país vindo da tradição portuguesa ou espanhola teve êxito? Isso faz com que comecemos a perguntar: o que deu errado?

Já tem respostas?

Honestamente, não. Que país construímos ou não construímos? Isso implica olhar pra frente. As desigualdades são escandalosas, somos o sétimo ou oitavo país mais desigual do mundo. O nível educacional melhorou, mas segue muito baixo. O desemprego é enorme. Cerca de 60 milhões de pessoas recebem auxílio federal. Crescendo a 2%, este país tem futuro? Pode ser a minha idade também, mas estou muito pessimista.

Mas não há nada nestes 200 anos da História do Brasil que possa servir de incentivo?

É sempre celebrado o Brasil não ter se fragmentado, tema do meu livro “A construção da ordem”. E assim se manteve por conta de D. João VI. Os portugueses não gostaram muito da vinda dele pra cá, mas foi um gesto político inteligente. Salvou-se a colônia, deu-se às capitanias brasileiras ponto de referência de legitimidade: “O rei está aqui”. Isto fez com que, bem ou mal, os movimentos separatistas se reduzissem, antes da Regência, a Pernambuco. Mais tarde, já havia um núcleo no Rio que derrotou outras tentativas de separação.


Manter a unidade de um país tão vasto e diverso é o maior sucesso do Brasil independente?

É uma pergunta que sempre me faço e não consigo responder. O que foi melhor? Permanecer esse monstro unido, ou teria sido melhor se separar em vários países? Um fator muito forte da identidade nacional é o tamanho gigante e as riquezas naturais do país, o “motivo edênico”. Ter orgulho do Brasil pela Amazônia, mas jamais por nossas lutas. Em matéria de memória, sofremos um Alzheimer coletivo. A unidade foi uma vantagem? Talvez sim. A língua é uma só.

Em 2017, o senhor já dizia ser lamentável o crescimento de uma “política de ódio” no Brasil. É um problema ao se discutir este país 200 anos depois?

Sem dúvida. Havia o mito da cordialidade brasileira. A capacidade de ódio aqui é grande, não como nos EUA, mas, certamente, como na América Ibérica. Um centro de debate é o racismo, ou racismo estrutural, palavra da moda. Que é muito mais violento nos EUA, mas a situação dos negros lá é muito melhor. Há uma classe média negra, empresários negros, universidades negras. Se formou uma elite negra, com poder.

Como o senhor vê a discussão da escravidão no Brasil hoje?

É uma dinâmica social. À medida que se consegue (avanço nos direitos), reduz-se o grau de violência. É inevitável certos movimentos sociais começarem mais violentos. Minha tolerância é grande, embora, obviamente, não concorde com tudo. Mas talvez seja a maneira de se reduzir a desigualdade, a discriminação.

A desigualdade é o que mais o preocupa no Brasil hoje?

Ela bloqueia o país. Quem ganha R$ 100 mil paga 27, 5% de imposto e quem recebe R$ 5 mil paga 27%, há pouca progressividade. Quando dei aula nos EUA, pagava 35%! Na Holanda, mais de 40%! O que me intriga é que vivemos em uma democracia, as pessoas votam. Mas o produto deste voto é um Congresso, uma elite, medíocre, preocupada com reeleição, em conseguir dinheiro, com o financiamento de milhões para os pleitos, mas não se passa legislação que afete desigualdade.

Mas o trabalhismo dos anos 1950, depois FH e Lula, não promoveram maior aproximação com os eleitores?

Vargas foi o primeiro a fazer uma legislação trabalhista e outras medidas importantes, mas sempre dependendo do Estado. E pagou com a vida pela ousadia. Aí veio a Guerra Fria e os nossos militares consideraram-se tutores do regime. Com FH e Lula, me pareceu que estávamos entrando num caminho que nos levaria à frente. Achei que tínhamos resolvido problemas seriíssimos, como o da educação. Deu nisso que está aí.

Qual o peso da herança colonial?

Os milhões de escravizados e a economia rural fizeram com que a população ficasse alheia à política até os anos 1950. De 1950 a 1980 houve o maior crescimento demográfico e a maior transferência de pessoas do campo pra cidade. Houve invasão de povo na política, e pessoas que nunca tinham votado, ou o faziam a mando dos fazendeiros, passaram a ter capacidade de agir. Os militares mantiveram o direito do voto, mas cortaram liberdade.

O que faz o país cometer sempre os mesmos erros?


A elite econômica, inclusive nas altas camadas do funcionalismo público e das estatais, bloqueia medidas redistributivas. Não considero, por exemplo, o governo Lula de esquerda. Não se conseguiu tocar nos pontos que afetam a desigualdade. Os 5% dos ricos do Brasil seguiram tendo 40% da renda brasileira. Mas o grande enigma brasileiro é que a entrada do povo na política não o beneficiou. Houve atos importantes no governo Lula, como a ação afirmativa. Adotaram-se as cotas e o impacto foi muito grande, mudou a cara das universidades públicas, mudou de cor. Isso, sim, foi, talvez, a iniciativa mais importante para integração social e racial.

O Brasil ainda é o país do futuro?

Não, não é. Não enxergo um futuro bom para o país, os dados não fecham. Creio, e aí já é talvez exagerado, que o Brasil não será um grande país no futuro e também não será capaz de construir um país de renda média, como a Espanha. Estou pessimista.