segunda-feira, 3 de abril de 2017

Temer e o inusual

Tudo, em nosso país, parece não ser suficiente. O oposicionismo é uma ideologia, a identidade política se alicerça na revanche, o litígio, a mais barata de nossas manias.

O barulho da política penal ofusca o dia a dia da recuperação econômica. O rumor e o atrito entre os Poderes bloqueiam a inteligência em relação à compreensão do que seja o principal.

O sucesso de um país se deve à predominância da monotonia presente num princípio básico: só é possível produzir riqueza a partir de relações econômicas, políticas e sociais estáveis, adequadas, regulares e conhecidas. E, nações como a nossa só avançam, e continuam jovens, se não perderem o sentido de urgência. A autoridade brasileira dispõe de tempo para desperdiçar e acredita que o mundo está assentado esperando o Brasil chegar.

O que mais caracteriza a crise política e econômica brasileira é a velocidade e a extensão de autoridades envolvidas, inclusive as investigadoras, quando são levianas. Há, por parte da elite do Estado, um claro abandono da imaginação moral para enfrentar desafios que a sociedade requer. Nenhum poder está em condições de exigir para si uma quantidade exagerada de atenção. Extravagâncias e trapaças andam distribuídas por todas as capitais.

Especialmente quando comparamos com a vida privada, onde sabemos que não é possível à família ou à empresa fazer o que quiser de qualquer jeito. Na vida pública, deveria ser impossível a qualquer autoridade poder fazer qualquer coisa de qualquer jeito. O erro paralisa o vigor e a energia do país para crescer.

Mas, mesmo que ainda não haja outra política, o Brasil parece querer alguma coisa diferente do que está dando errado. Lula, o primeiro líder populista de origem popular, se continuar sem autocrítica, deveria oferecer ao Brasil um período de silêncio. O “contrismo” recorrente bloqueia a decência analítica, impõe um raciocínio binário a tudo, leva qualquer mudança a ficar sob baixíssimo reconhecimento. A regra de combate do período anterior não foi superada: a política como operação ofensiva, a astúcia como talento, o movimento sem reflexão, a crítica é um desacato. Quando tudo é política, dá no que dá!!

Só que o Brasil precisa mesmo é de inteligência e estruturação. Retirar a demagogia do exercício do poder. Avançar com contenção deveria ser o slogan da transição.

O que anda ocorrendo com o presidente Temer é que, embora faça um governo de boa contextualização parlamentar — foi a origem da crise que exigiu esse semiparlamentarismo que ele pratica —, não consegue visibilidade social correspondente. Mas ninguém pode negar que é alta a gestão da coalizão política disponível que o presidente opera no Congresso. Depois de 15 anos de um Legislativo caricatura do Executivo, e menor tutelado do Judiciário, contraditoriamente, o campo minado em que opera a Lava-Jato fez o passado se infiltrar no presente como febre benigna. E acordou o Parlamento para sua prerrogativa.

Mas há uma novidade na crise atual que assusta o status quo. Um fato inabitual na política brasileira: o governante impopular se dispor a corrigir os erros e omissões de governo popular.

Vai faltar boquinha

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O país tem alergia ao capitalismo. Desde que Caminha elogiou a descoberta do Brasil para pedir emprego para parente na coroa portuguesa. Desde a fundação, o importante sempre foi cavar uma boquinha. Muitas vezes a qualquer custo. E sempre a qualquer preço. Desde que pago pelos outros, claro.

Depois de mais de 500 anos, é natural que a gente nem mais perceba. Que aceite como normal. E pense que até seja bom ou faça sentido. Sem referências para comparar fica difícil mudar. E no final das contas, as coisas vão ficando como estão.

Pensando bem, não vale mesmo a pena mesmo fazer outra coisa. Achar uma boquinha é sempre o melhor negócio. Procurar emprego na iniciativa privada não é, realmente, o melhor negócio. Não tem estabilidade.

Aposentadoria é duvidosa ou, na melhor das hipóteses, pequena. E benéficos não há. A melhor aposta no futuro, é mesmo um emprego público. Ganha mais, e não tem risco. Quem não quer?

Empreender também não é bom negócio. O Brasil tem economia sem inovação. Falta acesso a capital. E os impostos são altos. E complexos. Por isso faltam empresários. Quer dizer, empresários no verdadeiro sentido da palavra. Aquele que vai correr risco, produzir e, se tudo der certo, ter retorno.

Se existe algo claro nos últimos anos, é que os poucos empresários de sucesso não o devem em sua maioria a sua competência empresarial. No país da boquinha, o sucesso empresarial se dá na proporção direta da proximidade com o poder público. O capitalismo tropical se especializa na compra de facilidades e vantagens sobre a concorrência.

Não interessam mais a governança, boas práticas, produtividade, competência, enfim. A gente acha natural a acumulação de receita sem produção. Aceita a falta de inovação. E uma economia sem dinamismo, onde o grande desfio é a aproximação do poder e as oportunidades geradas por essa proximidade.

Faz sentido buscar uma boquinha. Muito sentido. Mas para existir a boquinha, alguém tem que pagar por ela. E não tem gente suficiente para pagar por tudo isso. Vai faltar boquinha.

Gente fora do mapa

wow. what a photo:

'Há fazendas com hospitais para o gado, mas o trabalhador não tem nem água tratada'

Há dez dias, a chamada lista suja do trabalho escravo, que revela o nome de empregadores envolvidos em contratações análogas à escravidão, voltou a ser publicada. Ela estava suspensa desde 2014, quando o então ministro do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, acatou o pedido feito pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), que conta com construtoras flagradas explorando trabalhadores expostas na lista. A Abrainc argumentou que não havia a garantia do direito de defesa das empregadoras. Seguiu-se um imbróglio jurídico e a edição de uma nova portaria, mudando a forma como a lista é divulgada – apenas trabalhadores com todos os recursos administrativos esgotados apareceriam.

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Hoje 92% dos trabalhos em condições análogas à de escravo no Brasil são oriundos da terceirização

Mesmo com o entendimento do próprio Supremo de que as mudanças apaziguavam as inquietações das construtoras, o Governo federal, já sob a tutela de Michel Temer, recusava-se a publicá-la. Foi preciso que o Ministério Público do Trabalho conseguisse uma liminar, obrigando que o documento, elogiado pela Organização das Nações Unidas, voltasse a se tornar público. Mas, ainda assim, não há garantia de que ela não se tornará secreta, novamente, já que a liminar pode ser derrubada a qualquer momento. O procurador-geral do Trabalho, Ronaldo Fleury, conta que está é apenas mais uma das dificuldades vividas pelo combate ao trabalho escravo no Brasil. Responsável pela equipe que flagra as denúncias, ele conta ao EL PAÍS os problemas enfrentados pela fiscalização.
Por que a lista existe e é importante que seja publicada?
 A chamada lista suja foi criada por meio de uma portaria para evitar que essas empresas que exploram trabalhadores em condições análogas à de escravo tivessem acesso a empréstimos públicos. A ideia era que não faria sentido o próprio Estado financiar uma empresa que estava submetendo seus cidadãos a uma condição análoga à de escravo. Durante mais de dez anos houve a lista sem qualquer contestação. Até que, em 2014, após operações onde foi constatada a existência de trabalho escravo na construção civil, as construtoras criaram uma associação, que contestou a portaria no Supremo Tribunal Federal. O ministro Ricardo Lewandowski determinou, num plantão de final de ano, a suspensão da lista acolhendo o argumento de que ela não oferecia o direito do contraditório e de defesa. Tentamos derrubar a medida no próprio Supremo. E, como ela não caiu, tentamos um acordo para que o Governo reeditasse a portaria, corrigindo questões levantadas pelo ministro. E assim foi feito.

E depois?

A portaria que está em vigor, que é de meados do ano passado, atendeu às exigências do ministro. A ministra Carmen Lúcia, já presidente do Supremo, entendeu que a ação das construtoras tinha perdido objeto. A partir de então, começamos as tratativas com o Ministro do Trabalho, já do Governo Michel Temer, e em razão de não haver uma definição sobre a publicação da lista ajuizamos uma ação civil pública para que o ministério efetivamente cumprisse a portaria, feita pelo próprio Governo. Houve uma defesa por parte da União, contestando a portaria. Hoje, há uma liminar determinando a publicação. Por isso a lista foi publicada na semana passada.

Qual a garantia de que a lista não será tirada do ar novamente?

Tivemos uma reunião com o ministro [do Trabalho, Ronaldo Nogueira] na terça-feira ele nos afirmou que enquanto ele for ministro a lista está mantida. Independentemente do desfecho judicial, ele disse que vai publicar a lista.

Mas se o próprio Governo está recorrendo, como ele pode assegurar isso?


Confesso que é um pouco estranho mesmo. Dentro do próprio Governo esta questão não é tranquila. Tanto o Ministério da Justiça como o dos Direitos Humanos, desde o início da ação civil pública, emitiram notas técnicas no sentido de que a lista deveria ser publicada. Então, a restrição se restringiu à AGU [Advocacia-Geral da União] e ao Ministério do Trabalho. Os outros dois órgãos que assinaram a portaria são a favor dela. O que estamos buscando, e conversamos com o ministro sobre isso, é que seja feito um acordo judicial para que se formalize a posição dele.

Quanto menos burocrata no MEC, melhor qualidade na educação

Perguntam com frequência o que eu acho da reforma do ensino médio e similares. Seria um avanço ou um atraso? Reforma na educação depende do burocrata de plantão.

Suspeito de que a educação seja uma das áreas de conhecimento mais perdidas no mundo atual. De um lado, acumulam-se teorias de que a educação deveria contemplar apenas disciplinas técnicas. De outro, que a educação teria como principal papel a formação do cidadão.

Outros pensam que a educação deveria ser revolucionária em tudo, e mais outros, que a educação deveria formar valores morais sólidos. A lista vai longe, chegando mesmo ao caso daqueles que pensam que a educação deveria ser uma assembleia aberta em que bebês votariam na estrutura curricular do jardim da infância para evitar a opressão patriarcal.

Alguns, mais semiletrados, inovam a cada dia a educação a partir do palestrante mais na moda e da última teoria politicamente correta no mercado. Uma ideia continuamente na moda entre os teóricos é que a educação deveria educar para a democracia e o bem público. Platão concordaria com a segunda parte, mas não com a primeira.

Alguns acham que a educação deveria ser construída apenas a partir dos oprimidos. Este último caso é tão delirante que alguns chegam a afirmar que falar errado, sem levar em conta as regras da gramática, é uma forma de combate à opressão. "É nóis" deixa de ser uma licença poética e passa a ser um grito de liberdade.

Alguns professores por aí chegam mesmo a "caçar a pauladas" (leia-se "reprovar") alunos que falem corretamente na aula sob acusação de reproduzirem padrões de dominação da elite.


Jacques Derrida (1930-2004), filósofo francês criador do conceito de "desconstrução", segundo o qual a gramática é uma forma de teologia porque unifica modos de expressão, nunca imaginaria que sua teoria (ele falava francês correto) um dia seria usada como argumento para reprovação de alunos que usam a gramática como manda o figurino.

Portanto, as teorias da educação são tão precisas quanto o tarô ou a leitura do futuro na borra de café. A tentativa de unificá-las é pior ainda, porque esta unificação virá sempre pelas mãos de duas ou três pessoas que acreditam fielmente no que defenderam em seu doutorado. Levar seu doutorado muito a sério é signo de baixa formação intelectual.

Há alguns meses o "mundo da cultura" entrou em êxtase crítico quando o atual governo resolveu extinguir o Ministério da Cultura. Pelo que afirmavam, os artistas e similares, sem o Ministério da Cultura ninguém mais teria uma ideia se quer que prestasse nem ninguém conseguiria mais realizar nenhuma obra "cultural".

Claro, nossa elite cultural foi criada às custas de editais do Estado, sem eles, a criatividade da elite cultural vai a zero em 24 horas.

Na época, não dei muita atenção ao tema porque penso que o Ministério da Educação (MEC) é que deveria ser extinto, muito mais nocivo ao país do que o Ministério da Cultura -apesar de este servir para todo tipo de manipulação ideológica para qualquer lado da mesa de pingue-pongue político e de cultivar uma certa preguiça moral e estética nos agentes culturais nacionais.

Proponho que fechem o MEC. Não por razões de contabilidade. Coitado, o MEC deve gastar pouca grana. Mas por razões culturais e pedagógicas. Acabar com o MEC nos livraria de todo tipo de burocrata que constrói sua vida e seu orçamento atormentando quem, de fato, se ocupa com a educação, essa arte inexata que deveria ajudar os seres humanos a serem mais humanos e menos bobos.

Sem o MEC acabariam essas reformas intermináveis, esse "centralismo democrático do blá-blá-blá" e esse mercado paralelo de "aferição de qualidade" do tipo Anade, Enade, Inade, Onade, Unade e similares -varia-se a vogal, permanece a aleatoriedade dos critérios. Quem decide é quem estiver no comando burocrático da hora.

A educação deveria estar na mão dos municípios. Melhor ainda: das próprias escolas. A regra é: quanto menos burocrata, melhor qualidade na educação e na vida. Fechem o MEC. Invistam a grana em ferrovias.

Boi de piranha e dar nome aos bois

O boi está em muitas expressões do quotidiano, a começar por boi de piranha, pessoa sacrificada para favorecer outros. E em dar nome aos bois, com o fim de identificar os verdadeiros responsáveis por falcatruas, denunciadas de modo a poupar seus autores da execração pública.

No caso do boi de piranha, o dito nasceu de um costume dos antigos vaqueiros. Temendo haver piranhas no rio, o que seria grande prejuízo e um desastre para a travessia da tropa, usavam apenas um boi como cobaia e esperavam que o animal servisse de aviso sobre a presença ou ausência dos vorazes peixes carnívoros. Se a água ficasse avermelhada, escolhiam ponto diferente para que a boiada chegasse à outra margem, enquanto a rês sacrificada era devorada, restando-lhe em pouco tempo apenas os ossos.

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Dar nome aos bois é expressão registrada também em outras línguas, ocasionalmente substituindo-se o animal por outro animal ou por objeto. Os ingleses dizem call a spade a spade (chamar pá de pá). Aliás, spade é daquelas palavras que enganam, uma vez que espada em Inglês é sword e não spade. Os franceses dizem J’appelle un chat un chat (eu chamo gato de gato). O famoso escritor francês Victor Hugo diz, com mais elegância, como de seu estilo: Je nommai le cochon par son nom; porquoi pas? (Eu chamo o porco por seu nome, por que não?).

Nem sempre é escolha do autor omitir o nome dos bois. Ao utilizar-se deste expediente, às vezes ele diz mais sobre si mesmo do que sobre os denunciados.

E, por fim um vício de origem – a inexistente participação popular na proclamação da República – alastrou-se de tal modo na vida brasileira que os eleitores, identificados até em excesso hoje, por força das conquistas tecnológicas, continuam sem dar nome aos bois ladrões que não param de eleger e reeleger, ratificando este trecho de Machado de Assis em seu romance Esaú e Jacó: “As aparências e nomes que damos a pessoas e coisas, infelizmente, sugerem a política como uma confeitaria na qual a pretensão de agradar supera a coragem de transformar”.

Paisagem brasileira

Clóvis Pescio (Brasil, 1951)- Fazenda - Óleo sobre tela - 70x120cm - acid - datado de 1999
Fazenda. Clóvis Péscio

O poder das corporações

Um amigo indaga nas redes sociais: “a burocracia federal enlouqueceu? ” Ele mesmo responde: “A SAE do MF (Fazenda) expressa uma série de ideias mal-informadas sobre o setor de telecomunicações e sugere uma micro-regulação do setor de telecom de valor jurídico e regulatório duvidosos. Com a fragmentação política e a falta de direção do governo federal, a burocracia quer reinar (…) A temporada do besteirol sobre política de telecom está aberta no Ministério da Fazenda.”

Essa é uma situação característica de governos enfraquecidos, em que uma espécie de “subgoverno” começa a dar as cartas, graças ao poder da alta burocracia no exercício das funções essenciais do Estado: arrecadar, normatizar e coagir. No caso citado acima, com uma simples portaria, foram abduzidas atribuições de outro ministério, o das Comunicações, e de uma agência reguladora, a Anatel.

Certa vez, o jurista Norberto Bobbio debruçou-se sobre essa questão num artigo intitulado “Quem governa?” (As ideologias e o poder em crise, Editora UnB), publicado no auge da crise italiana decorrente do assassinato de Aldo Moro, líder da Democracia Cristã, em 1978. Ele negociava um acordo de governo com o secretário-geral do Partido Comunista Italiano, Enrico Berlinguer, o chamado “compromisso histórico”, mas isso já é outra história. Bobbio dizia que o “subgoverno” cria suas próprias agências de interação com a sociedade.

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É inexorável o fortalecimento da alta burocracia em situações de crise, nas quais os políticos perdem protagonismo, porque não têm respaldo popular. No momento, em razão da fraqueza do governo Temer e da desmoralização do Congresso, presenciamos a ascensão das corporações em posições estratégicas do Estado brasileiro. Vale como outro exemplo a crise da “carne fraca”, a operação da Polícia Federal contra a corrupção no Ministério da Agricultura, que teve grande impacto nas exportações do setor agropecupário.

A pesquisa CNI/Ibope divulgada na sexta-feira traduz esse contexto: a avaliação do governo Michel Temer (bom e ótimo) caiu três pontos percentuais, enquanto os índices negativos (ruim/péssimo) cresceram nove pontos. A avaliação regular registrou uma queda de quatro pontos. O índice ótimo/bom de Temer é de 10%, o mesmo de Dilma em março do ano passado; sua sorte é que a avaliação negativa (ruim/péssimo), de 55%, ainda é bem inferior ao da petista (69%).

A reforma da Previdência (26%), a operação Lava-Jato (9%) e a corrupção no governo (5%) são os assuntos mais lembrados pelos entrevistados. Resultado: 79% dos entrevistados consideram o governo Temer igual ou pior que o de Dilma; apenas 18% entendem que o atual governo é melhor que o anterior.

Historicamente, as reformas do Estado no Brasil foram conduzidas de forma autoritária (ditadura Vargas e regime militar), exceto no governo Fernando Henrique Cardoso. Em todas elas, a alta burocracia se impôs, em sintonia com o mercado. A falta de envolvimento da sociedade, porém, acabou fortalecendo os privilégios das corporações mais poderosas da burocracia, agravando as desigualdades na Previdência, nos salários e nas condições de trabalho.

Esse foi o subproduto da blindagem dessas reformas. Em seus grandes momentos, a modernização do país deu-se pelo alto, sob o manto de um duplo pacto: o virtuoso, da liderança política reformista com essas corporações; e o perverso, da política de conciliação com as velhas oligarquias regionais. Agora, estamos assistindo a uma disjuntiva desses pactos, que engendra um formidável confronto entre a alta burocracia estatal responsável pelo controle da gestão do Estado, no Executivo e no Judiciário, e os políticos que controlam o governo e o Congresso, por meio dos principais partidos do país.

Para liquidar com a corrupção e o patrimonialismo, é preciso também reinventar o Estado brasileiro em bases mais democráticas, eficientes e transparentes. Isso exige o fim dos privilégios das corporações, cujo poder aumenta numa situação como a que o país está vivendo. É até uma questão moral, em meio à crise tríplice (ética, política e econômica).

Mãozinha pro mercado

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(...) a cada vez que o governo vem a público, com o falacioso discurso de “déficit”, ele presta um serviço ao mercado financeiro, pois muitas pessoas acabam sendo empurradas para adquirir planos privados de previdência, gerando um grande volume de negócios para o setor financeiro 
Maria Lucia Fattorelli, coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida

O mundo que eu vi

Via-me sempre obrigado a pensar nas palavras que um exilado russo me tinha dito havia anos: " Antigamente o ser humano só tinha um corpo e uma alma. Hoje também precisa de um passaporte, caso contrário não é tratado como pessoa".
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E de fato: talvez nada dê uma ideia tão clara do gigantesco retrocesso sofrido no mundo desde a Primeira Guerra Mundial como as restrições à liberdade de circulação das pessoas e a redução dos seus direitos de cidadãos livres. Antes de 1914, a Terra era de todos. Cada um ia para onde queria e ficava o tempo que quisesse. Não havia autorizações , permissões , e divirto-me sempre ao ver o espanto dos mais jovens quando lhes conto que, antes de 1914, andei pela Índia e pela América sem passaporte e sem nunca ter visto sequer um passaporte. Uma pessoa entrava num meio de transporte e apeava-se sem perguntar nada e sem que nada lhe fosse perguntado; das centenas de papéis que hoje são exigidos, não era preciso preencher um único. Não havia nem permis, nem vistos, nem maçadas; as mesmas fronteiras que, devido à desconfiança patológica de todos contra todos, estão hoje transformadas numa barreira de arame farpado, com funcionários alfandegários, polícia, postos de guarda, não eram mais do que linhas simbólicas que se travessavam com a mesma descontração com que se passa o meridiano de Greenwich. Só depois da guerra é que o mundo se viu abalado pelo nacional-socialismo, e o primeiro fenômeno visível desta epidemia espiritual do nosso século foi a xenofobia: o ódio ao outro ou, pelo menos, o medo do outro. Em todo o lado as pessoas protegiam-se do estrangeiro, em todo o lado ele se via excluído. Todas as humilhações outrora criadas exclusivamente para os criminosos eram agora infligidas ao viajante antes da viagem e durante a viagem. Uma pessoa tinha de se deixar fotografar do lado direito e do lado esquerdo, de perfil e de frente, com cabelo curto que deixasse a orelha à vista; tinha de tirar as impressões digitais, primeiro só do polegar, depois de todos os dez dedos e, além disso, de apresentar certificados de saúde , de vacina, de boa conduta, boas referências, tinha de poder apresentar convites e endereços de parentes, tinha de oferecer garantias morais e financeiras, de preencher e assinalar impressos em triplicado, em quadruplicado, e se faltasse um único documento nesta pilha de folhas, estava tudo perdido.

Todas estas coisas podem parecer ninharias. E à primeira vista pode até parecer niquento da minha parte mencioná-las. Mas foi com estas "ninharias" absurdas que a nossa geração desperdiço absurdamente um tempo precioso e irrecuperável. (...) São só ninharias , sempre só ninharias , eu sei , são só ninharias numa época em que o valor da vida humana caiu ainda mais a pique do que o valor da moeda. Mas só anotando estes pequenos sintomas é que o tempo vindouro poderá registar o verdadeiro estado clínico das condições espirituais e das perturbações espirituais que se foi apoderando do nosso mundo no período compreendido entre duas guerras mundiais.

Talvez eu tenha sido mal habituado no passado. Talvez a minha sensibilidade também se tenha vindo a exacerbar cada vez mais, devido às mudanças ocorridas abruptamente nos últimos anos. Qualquer forma de emigração causa já, por si só, inevitavelmente, uma espécie de desequilíbrio. Perde-se - e também isto tem de ser vivido, para ser entendido - algo do nosso aprumo, quando não se tem o solo pátrio debaixo dos pés, fica-se mais inseguro, mais desconfiado de si próprio. E não hesito em confessar que, a partir do dia em que tive de passar a viver com documentos ou passaportes que eram de facto estrangeiros, nunca mais consegui sentir que pertencia a mim próprio. Ficou para sempre destruído algo daquela identidade natural com o meu eu original e verdadeiro. Tornei-me mais reservado do que o que era conforme à minha natureza, e hoje sinto constantemente - eu, o cosmopolita de outrora - a obrigação de ter de estar agora particularmente grato por cada lufada de ar que subtraio a um povo estrangeiro, sempre que respiro. Quando penso com a cabeça fria , vejo efetivamente o absurdo destas manias, mas quando é que a razão alguma vez conseguiu triunfar do sentimento! De nada me serviu ter educado o meu coração, ao longo de quase meio século, a bater com o cosmopolitismo próprio de um citoyen du monde. Não , no dia em que fiquei sem passaporte, descobri aos cinquenta e oito de idade , que aquilo que se perde com a nossa pátria é mais do que um pedaço de terra limitado por fronteiras.
Stefan Zweig

O colapso do discurso petista

A derrota sofrida pelo PT na eleição municipal de São Paulo foi tão acachapante que o partido resolveu tentar descobrir, com método científico, as razões desse desastre, que foi especialmente doloroso na periferia da capital, antigo reduto petista. Para isso, a Fundação Perseu Abramo, ligada ao PT, foi aos bairros mais pobres da cidade para entrevistar os eleitores que, embora tivessem votado no partido entre 2002 e 2012, se negaram a votar em Dilma Rousseff para a Presidência em 2014 e em Fernando Haddad para a Prefeitura em 2016.

O resultado desse trabalho ilustra o quão descolado da realidade está o discurso petista voltado para os mais pobres. Mais do que isso, permite perceber que esses eleitores, diferentemente do que apregoam os ideólogos petistas, consideram o Estado, e não a “burguesia”, como seu inimigo, valorizam a meritocracia e entendem que a crise ética da sociedade não é resultado de vícios estruturais, e sim de mau comportamento individual, que deve ser resolvido, antes de mais nada, pela família.

A pesquisa foi feita entre 22 de novembro de 2016 e 10 de janeiro deste ano, baseando-se em entrevistas em profundidade com moradores de bairros periféricos de São Paulo, acima de 18 anos, com renda familiar mensal de até cinco salários mínimos e que deixaram de votar no PT. Ao menos 30% dos entrevistados são ou foram beneficiários de programas sociais implementados pelos governos petistas. Ou seja, é o perfil tido como característico do eleitor petista, ao menos no imaginário dos que consideram o PT representante natural dos “excluídos”.

Como hipótese, o estudo afirma que o padrão de vida na periferia melhorou como resultado direto das políticas dos governos petistas, mas essa melhoria levou os moradores a “se identificarem mais com a ideologia liberal, que sobrevaloriza o mercado”. Com a crise econômica, prossegue a hipótese, esses moradores, ao contrário do que os petistas certamente esperavam, reagiram movidos pela “lógica da competição”, isto é, pela ideia de que é preciso que cada um trabalhe duro para superar os problemas. Tal visão é incompatível com uma ideologia que anula o indivíduo em favor da “classe trabalhadora”.

De um modo geral, a pesquisa concluiu que a política “não é prioridade no cotidiano” dos entrevistados. Quando falam do tema, em geral abordam os escândalos de corrupção. O estudo constatou também que “as categorias analíticas utilizadas pela militância política ou pelo meio acadêmico não fazem sentido para os entrevistados”, isto é, os embates entre “direita” e “esquerda” ou entre “reacionários” e “progressistas” simplesmente “não habitam o imaginário da população”. Além disso, constatou a pesquisa, “a cisão entre a classe trabalhadora e a burguesia também não perpassa o imaginário dos entrevistados”. Isso significa, em outras palavras, que toda a discussão sobre a divisão da sociedade entre “nós” e “eles”, promovida incessantemente pelo PT, é significativa somente para as classes médias e as suas redes sociais.

O estudo é obrigado a reconhecer que “o principal confronto existente na sociedade não é entre ricos e pobres, entre capital e trabalho, entre corporações e trabalhadores”, e sim “entre Estado e cidadãos, entre a sociedade e seus governantes”. Para os entrevistados, “todos são vítimas do Estado que cobra impostos excessivos, impõe entraves burocráticos, gerencia mal o crescimento econômico e acaba por limitar ou sufocar a atividade das empresas”. A maioria, ademais, se disse favorável a “uma atuação mais integrada entre poder público e iniciativa privada em favor da coletividade”.

Dessa forma, segundo a Fundação Perseu Abramo, “abre-se espaço para o ‘liberalismo popular’, com demanda de menos Estado”. A entidade sugere que, se quiser voltar a prevalecer nas urnas, “o campo democrático-popular precisa produzir narrativas contra-hegemônicas mais consistentes e menos maniqueístas”. É o reconhecimento, afinal, de que a estratégia petista de hostilizar as “elites” fracassou, e é também a prova de que um projeto político que racionalize o Estado, estimule a iniciativa privada e premie os melhores e mais esforçados é eleitoralmente viável.

Imagem do Dia

Sunwapta Falls, Jasper National Park, Canada:
Sunwapta Falls, ( Canadá)

O remédio errado

Os políticos tentam uma manobra radical e perigosa. Querem tirar do eleitor a visibilidade do voto e ameaçam procuradores e juízes no momento do maior estranhamento do cidadão com os seus representantes. Esse divórcio entre o eleitor e o eleito tem raízes sérias, profundas, que não serão superadas nem com a intimidação da Lava-Jato nem com uma reforma apressada.

Os cientistas políticos Jairo Nicolau, da UFRJ, e André Borges, da UNB, alertam que não há sequer tempo hábil para uma reforma política que mereça este nome, já que até outubro as regras para as próximas eleições terão que estar aprovadas. Além disso, ambos são contra a lista fechada.

— Há uma coisa que não é dita de forma clara: quem vai formar as listas? Quem tem o poder de determinar a lista é quem tem o comando das estruturas do partido. Na Argentina, quem faz as listas são os governadores, os que têm o poder provincial. É o caso de se perguntar: é isso que a gente quer? Serão feitas convenções estaduais que decidirão a ordem na lista — afirma André Borges.

— Esse Congresso votou em 2007 contra a lista fechada. Em 2015, também. Foram 402 votos contra e 21 a favor. Os deputados são os mesmos e vão ter que mudar muito a visão que tinham há dois anos. Dado o pouco tempo que há para preparar as regras da próxima eleição, a prioridade deveria ser as regras de financiamento, porque as empresas passaram a ser proibidas de doar, e o Congresso não regulou ainda esse novo ambiente. Outra urgência seria combater a fragmentação partidária — diz Jairo.

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O Brasil tem vários problemas na sua política. É o país do mundo com mais partidos, a ponto de o sistema ter deixado de ser operacional. A corrupção na qual os políticos mergulharam chegou a uma dimensão tal que ameaça a própria democracia. Diante de um momento tão extremo, é um espanto que a solução que se discuta seja a de tirar do eleitor o direito de saber para quem vai o seu voto, através da lista fechada, e um projeto de abuso de autoridade que tem o objetivo explícito de intimidar os juízes e os procuradores que estão no combate à corrupção. Há inclusive um item bizarro, que pune o juiz que tiver sua sentença reformada. É da natureza do Poder Judiciário rever, mudar ou confirmar as sentenças em instâncias superiores. É para isso que existe o sistema recursal. Se estivessem com boas intenções em seu projeto de abuso de autoridade, os parlamentares teriam aceito a proposta do juiz Sérgio Moro que evitava esse equívoco de crime de hermenêutica. Ou aceitariam a proposta do procurador-geral da República que amplia o crime de abuso para todas as autoridades, inclusive do Legislativo. Mas eles fizeram um projeto com endereço certo e objetivo claro.

Jairo Nicolau acaba de lançar o livro “Representantes de quem?”, pela Zahar, que é um guia para entender os caminhos, ou descaminhos, do voto da urna ao Congresso. Ele começou a escrever o livro em 17 de abril de 2016, no dia da votação pelo impeachment da então presidente Dilma:

— As pessoas olhavam para aqueles 513 deputados e se perguntavam: quem são essas pessoas? Elas não têm nada a ver comigo. Mas, como eu estudo o sistema representativo brasileiro há muitos anos, eu lembrava que um quinto dos eleitores havia deixado os votos em branco ou nulo nas eleições que elegeram aquelas figuras. Que metade das pessoas já tinha esquecido, um mês depois, dos candidatos nos quais tinham votado para deputado federal. Aí eu reuni as minhas pesquisas e comecei a escrever.

André Borges lembra que o PSDB escolhe seus candidatos a presidente “num jantar e com uma garrafa de vinho”, e que se tivesse havido primárias no PT a candidata em 2010 talvez não fosse a Dilma. Há muito a mudar nos partidos, e alterar a maneira como se vota não resolve o problema.

Esta semana o sistema político terá mais um dos seus picos de tensão com o voto do ministro Herman Benjamin sobre a ação pela cassação da chapa Dilma-Temer. Os dois, da chapa, estarão novamente juntos querendo que o julgamento se prolongue a ponto de a ação perder o objeto. O grande drama, contudo, continua sendo como consertar o sistema político. Os remédios errados vão agravar os sintomas.
Míriam Leitão

Jetons distribuíram 85,6 milhões para apadrinhados desde 2013

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Os jetons, honorários pagos a membros de conselhos administrativos e fiscais das empresas estatais e bancos públicos, e que não se sujeitam ao teto, já renderam mais de R$ 85,6 milhões desde 2013 a servidores do alto escalão dos governos Dilma Rousseff e Michel Temer. O objetivo é turbinar os salários de ministros e outros funcionários pela participação em reuniões, mensais ou mesmo bimestrais, sem que se submetam ao teto constitucional.

Os valores dos jetons são, em grande parte dos casos, maiores que o próprio salário, ultrapassando os R$ 50 mil na Itaipu Binacional.

Um mês antes de acabar, o governo Dilma pagou jetons ao recorde de 501 servidores. Em dezembro, Temer havia reduzido o número a 396.

Em média, os 400 abastados com jetons recebem R$ 1,7 milhão. Esse valor é suficiente para pagar salário mínimo a dois mil desempregados.

Renan é a prova de que o ilógico rege a política

Há três meses, seria chamado de maluco alguém que dissesse que Renan Calheiros, tido como pilar da governabilidade sob Michel Temer, viraria líder da oposição no Brasil. Em dezembro de 2016, a pretexto de salvar o país do Apocalipse que sobreviria ao afastamento de Renan da presidência do Senado, o Supremo Tribunal Federal agraciou o personagem com uma punição meia-sola. Réu em ação criminal, Renan foi retirado da linha de sucessão da Presidência da República, mas foi mantido no comando do Senado, posto que exerceria até 2 de fevereiro de 2017.

O ministro Marco Aurélio Mello, dono da toga que ordenara a saída de Renan da poltrona de presidente, rendeu homenagens àquele que rasgara seu judicioso despacho. “Hoje, pensa o leigo que o Senado da República é o senador Renan Calheiros'', disse Marco Aurélio, na sessão do Supremo em que a maioria dos colegas deu de ombros para a desobediência de Renan. ''Diz-se que, sem ele, tomado como um salvador da pátria amada, não teremos a aprovação de medidas emergenciais visando combater o mal maior, que é a crise econômico-financeira. Quanto poder! Faço justiça ao senador Renan Calheiros. Tempos estranhos os vivenciados nesta sofrida República.”

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Súbito, Renan Calheiros, agora na pele de líder do PMDB, o partido do presidente da República, põe-se a torpedear as reformas que prometia carregar sobre os ombros. Vira a cara para a terceirização da mão-de-obra. Faz careta para a reforma da Previdência. Tacha o governo de “errático” o governo que supostamente apoiaria. Faz troça da propalada habilidade política do pseudo-aliado Michel Temer: “Quem não ouve erra sozinho.”

Em tempo recorde, a tese de que o réu Renan seria o esteio do governo no Congresso virou um conto do vigário no qual o seis ministros do Supremo caíram. “Em benefício do Brasil e da Constituição da qual somos guardiões, neste momento impõe-se de forma muito especial a prudência do Direito e dos magistrados”, dissera, por exemplo, a presidente da Corte, ministra Cármen Lúcia, na fatídica sessão. “Estamos tentando reiteradamente atuar no máximo de respeito e observância dos pilares da República e da democracia.”

Antes das manifestações de Marco Aurélio e Cármen Lúcia, o ministro Luiz Fux mencionara a “anomalia institucional” que enxergava no cenário. E acrescentara que o afastamento de Renan seria mais ruinoso que sua permanência. Sem ele, estaria comprometida toda uma agenda nacional que exigia deliberação imediata do Congresso.

Deve-se a migração de Renan da condição de Salvador-Geral da República para o posto de Puxador-Geral de Tapetes a um sentimento que pode ser batizado de ostracismofobia. Investigado em 12 inquéritos, nove dos quais relacionados à Lava Jato, o senador convive com o medo de não ser reeleito em 2018. Sem mandato, seus processos desceriam do Supremo para a Vara de Sergio Moro, em Curitiba. Daí em diante, o risco do cárcere e do ostracismo seriam o limite. É por medo de fracassar nas urnas que Renan toma distância da impopularidade de Temer. Preocupa-se também com o futuro do seu herdeiro político, Renan Cilho, candidato à reeleição ao governo de Alagoas.

Renan notabiliza-se como um desses políticos admiráveis que conseguem atravessar a vida sem fazer nada de admirável. Repete com Temer o que já fez com Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso e Dilma. Enquanto os governos estão em boa situação, o mandarim de Alagoas se oferece para como voluntário sofrer na própria pele as mais insuportáveis vantagens. Quando o mar fica revolto, Renan salta da embarcação. Age sempre com a desenvoltura de um transatlântico que abandona os camundongos. No momento, Renan se recompõe com Lula, cuja popularidade em Alagoas continua roçando as nuvens.

Renan aposta na volta de Lula. O senador cospe num prato em que já não há muito o que comer, com a perspectiva de retornar à mesa em momento de maior fartura. A reincidência com que Renan reaparece nos arredores dos cofres do poder é a maior evidência do ilógico que rege a política. Sua capacidade de regeneração é um atestado da inconsequência de um país que ainda confunde prontuários com biografias. A Lava Jato ensinou à oligarquia política e econômica que a desfaçatez passou a dar cadeia. Mas Renan resiste. A exemplo de correligionários como Eduardo Cunha, Renan passou a impressão de atear fogo às próprias vestes durante o ciclo do PT no poder. A grande diferença em relação a Cunha é que Renan sempre se despe antes de riscar o fósforo.

Elogio da dilética

A injustiça passeia pelas ruas com passos seguros.
Os dominadores se estabelecem por dez mil anos.
Só a força os garante.
Tudo ficará como está.
Nenhuma voz se levanta além da voz dos dominadores.
No mercado da exploração se diz em voz alta:
Agora acaba de começar:
E entre os oprimidos muitos dizem:
Não se realizará jamais o que queremos!
O que ainda vive não diga: jamais!
O seguro não é seguro. Como está não ficará.
Quando os dominadores falarem
falarão também os dominados.
Quem se atreve a dizer: jamais?
De quem depende a continuação desse domínio?
De quem depende a sua destruição?
Igualmente de nós.
Os caídos que se levantem!
Os que estão perdidos que lutem!
Quem reconhece a situação como pode calar-se?
Os vencidos de agora serão os vencedores de amanhã.
E o "hoje" nascerá do "jamais".

Bertolt Brecht

Nostalgia

As utopias morreram, as ideologias agonizam, e eu também não ando me sentindo muito bem. “Esquerda” e “direita” são termos obsoletos. Vêm da divisão física entre os progressistas e os conservadores nas assembleias legislativas francesas depois da Revolução. Quer dizer, têm mais de 200 anos. Não significam mais nada. Ou significam?

Nostalgia (Foto: Arquivo Google)

Mesmo com outros nomes, como centro A e centro B, esquerdistas e direitistas ainda pensariam de modos diferentes, e entenderiam e desejariam coisas opostas. Mas há um sentimento que une direita e esquerda. Uma nostalgia comum que nenhum lado confessa, e da qual talvez nem se dê conta. É a saudade do século XIX.

Ah, o século XIX. Foi quando a História, por assim dizer, entrou na história, e tudo recebeu seus nomes verdadeiros. Uma segunda Criação. Hegel ainda quente, Marx pondo seus ovos explosivos, o passado e o futuro sendo redefinidos com rigor científico, e a modernidade tecnológica e modernidade social (ou, simplificando, a máquina a vapor e a nova consciência proletária) prestes a se fundir para transformar o mundo. “Bliss it was in that dawn to be alive” (Êxtase era estar vivo naquela aurora), escreveu o poeta Wordsworth sobre a Revolução Francesa. A esquerda poderia dizer o mesmo do século XIX. Naquela aurora não havia dúvida sobre a inevitabilidade histórica do socialismo.

Mas êxtase também espera a direita numa volta idílica ao século XIX. Foi o século de reação à Revolução Francesa, da restauração conservadora na Europa depois do terremoto republicano e do nascente capitalismo industrial sem remorso. Os que propõem a “flexibilização” dos direitos dos trabalhadores conquistados em anos de luta, como a que pretendem hoje em Brasília, babariam com o que veriam no velho século: homens, mulheres e crianças trabalhando 15 horas por dia, sem qualquer amparo, e sem qualquer direito legal ou moral, fora seus magros salários. A perfeição. Antes que a pregação socialista a estragasse.

Século XIX, terra de sonhos. Para a esquerda e a direita, juntas.

Luis Fernando Verissimo