segunda-feira, 12 de maio de 2025

Pensamento do Dia

 


O choque de realidade das contas 'certas'

As campanhas eleitorais são propícias a exageros. É o momento em que se prometem sonhos, mesmo que todos saibam à partida que não podem ser realizados – como acontece, aliás, com a maioria dos melhores devaneios que temos. Mas não há mal no exagero, desde que as promessas sejam sinceras e percetíveis na sua justa dimensão: a de que, embora sendo exageradas, indicam o caminho para se poder alcançar um futuro melhor, mais justo, mais solidário e, preferencialmente, mais feliz e próspero. É aquilo a que se chama sonhar alto, seguindo o exemplo do velho slogan popularizado nas ruas de Paris em Maio de 68, com um apelo transcendental e provocador: “Sejamos realistas, exijamos o impossível.”

Nada contra os sonhos nem contra os exageros, portanto. Se há algo que falta na política atual, na verdade, é essa urgência antiga de perseguir utopias, de sonhar com um mundo melhor, mesmo que, realisticamente, possamos reconhecer que se trata de um sonho impossível. Se virmos bem, o debate político era muito mais rico e estimulante quando estavam em confronto modelos ideológicos de sociedade, quase sempre utópicos e impossíveis. E, por isso, as campanhas conseguiam ser muito mais excitantes, aguerridas e, porventura, enriquecedoras e memoráveis, do que as discussões centradas a discutir percentagens do défice ou a esgrimir estatísticas de saúde, sem que se perceba, tantas vezes, a sua associação com a realidade ou o que isso implica na experiência quotidiana de milhões de pessoas.

Com as utopias atiradas para o canto das velharias e, por isso, ausentes do debate, temos assistido a uma campanha eleitoral demasiado centrada em promessas apenas exageradas e tantas vezes irrealistas. Não porque prometam o impossível, mas porque se baseiam numa realidade que, porventura, não existe agora e será até muito diferente, para pior, dentro de alguns meses, dada a conjuntura internacional em que mergulhámos.


De uma forma ou de outra, quase todos os principais organismos têm estado a rever em baixa as previsões de crescimento económico para o que resta do ano. Em todas as análises, leva-se em linha de conta o impacto das tarifas quase universais decretadas pela maior economia do planeta, liderada por Donald Trump, e as ondas de choque que elas estão a causar em todo o mundo. E acumulam-se os avisos sobre a necessidade de fazer previsões mais de acordo com a realidade que se adivinha e menos com a que se deseja.

Em tempo de campanha eleitoral, ninguém parece preocupado com esses avisos. E, como se aparentemente nada tivesse acontecido em Washington, continuamos a ouvir as mesmas promessas, baseadas em projeções que já se percebem ser irrealistas. Os sinais e a realidade aconselhavam prudência – mesmo que essa não seja uma “habilidade” que os diretores de campanha considerem útil para “caçar” votos. A verdade, no entanto, é que o FMI reviu em baixa as previsões de crescimento económico para Portugal (à semelhança do que fez para o resto do mundo) e os dados do Instituto Nacional de Estatística relativos ao primeiro trimestre confirmam o abrandamento da atividade económica no País. Apesar disso, o Governo enviou para Bruxelas uma estimativa de crescimento do PIB de 2,4%, bem superior aos 2,1% que tinha incluído, há poucos meses, na sua proposta de Orçamento do Estado, e que até o Conselho das Finanças Públicas considerou “provável, mas não prudente”.

Vale a pena brincar com o fogo? E prometer aquilo que o agravamento da situação internacional vai impedir de ser cumprido? Há muitas perguntas que precisam de ser feitas numa campanha eleitoral que decorre num momento demasiado volátil e imprevisível para o mundo. Mas quando não se prometem utopias nem grandes sonhos, o mínimo que devemos exigir é o compromisso de se falar verdade e com rigor. Não basta prometer “contas certas”. É preciso que as promessas estejam devidamente quantificadas, tanto no custo como no benefício. No fim, faremos as contas: quantas promessas vão resistir ao choque da realidade?

No horizonte


A utopia está lá no horizonte.
Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos.
Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos.
Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei.
Para que serve a utopia?
Serve para isso:
para que eu não deixe de caminhar.

Eduardo Galeano

Mamã, o que é um massacre?

Abraço os meus filhos, com força. Aperto-os e beijo-os muitas vezes. Fingem que fogem. Riem-se enquanto lhes faço cócegas, pedem-me que os tape com os lençóis e que fique mais um pouco antes de ir dormir. Fico. Não me sai da cabeça a imagem de uma menina palestiniana que vi umas horas antes na internet. Os olhos encovados, os ossos espetando-se nos ombros. “Só queria que tudo voltasse a ser como antes”. Foi tudo o que tive coragem de a ouvir dizer. Ela terá mais ou menos a idade dos meus filhos e suporta horrores que eu nem consigo imaginar. Fome, sede, medo. Mas foi a mim que me falharam as forças para a ouvir falar. E agora cresce-me no peito um aperto, enquanto deito os meus filhos e penso em todas as crianças que em Gaza não têm a mesma sorte.

“A lista de Schindler” estreou quando eu era miúda. Nesse filme também havia uma menina. Estava vestida de vermelho, quando tudo à sua volta era a preto e branco. Schindler vê-a ao longe, cambaleante, com passos hesitantes de criança pequena, atravessando as ruas por onde os soldados nazis vão matando a tiro homens que passam, saqueando casas, atirando objetos pelas janelas. A menina caminha até entrar num prédio. Sobe as escadas, entra numa casa abandonada e esconde-se debaixo de uma cama. Vemos-lhe, então, a cara de frente e acreditamos que vai sobreviver. Mas o casaco vermelho identifica-a numa pilha de cadáveres, umas cenas mais à frente. A fuligem dos corpos judeus incinerados, acumulando-se sobre o seu carro, não era mais do que um incómodo para Schindler, até ele perceber que a menina estava entre os mortos.

Cresci a ouvir dizer que o “Davim” vinha de uma trisavó judia. E não sei se foi por isso, mas passei parte da adolescência a ler e a ver tudo o que era possível sobre o Holocausto. Nessa altura, as atrocidades nazis pareciam uma suspensão da humanidade, impossível de compreender. “Never again”, dizia-se. E os filmes mostravam como os bons combatiam os maus.


Percebi muito mais tarde que a maldade extrema do nazismo sobre os judeus não foi um episódio isolado de extermínio. Na verdade, foi uma prática reiteradamente usada por regimes colonialistas, nomeadamente no séc. XIX em África, enquanto Adolf Hitler era ainda uma criança. É uma prática de aniquilação que só é possível quando deixamos de ver o exterminado como humano. É, por isso, que a menina de casaco vermelho é tão importante para acordar Schindler do torpor moral que o deixava assistir quase sem reação à perseguição dos judeus. Ela força-o a entender que os perseguidos são humanos.

É por isso que, por todo o mundo ocidental, têm sido cada vez mais reprimidas as manifestações contra o genocídio em Gaza. Os que nos querem lembrar a humanidade dos palestinianos são amordaçados, detidos, afastados com canhões de água, acusados de antissemitismo.

Há, porém, nas fileiras dessas manifestações muitos judeus. Alguns deles são mesmo sobreviventes do Holocausto ou descendentes diretos de quem passou por esse horror.

Stephen Kapos é um deles. Tinha apenas sete anos quando a Alemanha nazi invadiu a Hungria em março de 1944. Em abril de 2024 fez um discurso no Hyde Park, em Londres, para falar de como os nazis deportaram 400 mil judeus para Auschwitz e dos seus 15 familiares, incluindo o seu pai, que passaram por campos de concentração. “Nós, judeus, que sobrevivemos a toda esta dor, mortes, humilhação e destruição, estamos contra a utilização da memória do Holocausto pelo Governo de Israel como cobertura e justificação para o genocídio em curso contra o povo palestiniano em Gaza e na Cisjordânia”, disse, então, perante uma multidão que o ouviu em silêncio e o aplaudiu entusiasticamente no fim.

Quase um ano depois, Stephen Kapos foi detido para interrogatório pela Polícia em Londres para ser ouvido por ter participado noutro protesto pela paz em Gaza. Apesar dos seus 87 anos e de andar titubeante apoiado numa bengala, Kapos foi acusado de tentar furar uma barreira policial. Mas será mais difícil acusá-lo a ele ou aos milhares que fazem parte da Jewish Voice for Peace de antissemitismo. E é também por isso que os que agora gritam “never again for anyone” são tão importantes.

“O que é um massacre?”, perguntou a minha filha, da primeira vez que viu um outdoor onde se apela ao “fim do massacre na Palestina”. Vacilei na resposta. Como é que se explica a maldade a quem ainda nunca a viu? Não sei há quanto tempo foi isso. Mas foi há demasiado. Porque, agora, quando passamos pelo cartaz, ela pergunta, ansiosa: “O massacre ainda não acabou?”.

Envergonha-me dizer-lhe que não, mas tenho ainda mais medo que vá acabar em breve da pior forma possível, quando vejo nas notícias que há um plano de ocupação total de Gaza por Israel.

A “solução final” que os aliados travaram na Segunda Guerra Mundial, avança agora perante a indiferença quase generalizada dos que assistem a um conflito que – quaisquer que sejam as razões invocadas de um e de outro lado – está na prática a deixar milhares de civis encurralados, sem acesso a água, nem comida, nem medicamentos ou qualquer tipo de ajuda. Empurrados para uma morte certa, cruel e silenciosa. Enquanto nós fingimos não ver.

Abracadabramarajá

Em política, palavras e símbolos podem assumir dimensões mágicas. Principalmente quando são usadas no calor do clima eleitoral. A história está cheia de sugestivos exemplos.

Não custa recordar as eleições presidenciais de 1945, ocorridas oito anos após a ditadura estadonovista. Na época, os dois candidatos com chances efetivas de vitória eram o general Eurico Gaspar Dutra e o brigadeiro Eduardo Gomes.

O brigadeiro representava o novo. Já ostentava uma aura legendária de heroísmo marcada pelo episódio dos 18 de Copacabana (eram na verdade 12) e de esperança em relação aos novos tempos de liberdade e democracia que se descortinavam no horizonte político. Era apoiado pela UDN, partido que defendia o ideário liberal, congregava grande parte da elite pensante do país e se apropriava das inquietações de um Brasil urbano emergente. Era um candidato com charme e, teoricamente, com mais possibilidades do que Dutra.

Dutra, com seu ar carrancudo e destituído de maiores dotes estéticos, representava o velho regime de qual fora Ministro da Guerra e, depois, ao derrubá-lo, o seu próprio algoz. Curiosamente, tinha como base partidária o PTB de Getúlio, o ditador deposto, desde então recolhido em exílio voluntário na fazenda Itu (Município de Itaqui, RGS), e do PSD que, com o passar do tempo, transformou-se em escola política de pragmatismo e vocação para a conciliação e para o poder.


A opacidade do candidato, junto com o que representava, não estimulava previsões eleitorais otimistas. Pois bem, o brigadeiro, num arroubo retórico diante de entusiasmada plateia do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, cometeu um erro de consequências desastrosas quando disse: “Não necessito, para me eleger, desta malta de desocupados que apoia o ditador Vargas”.

A frase teve um efeito devastador. Em Campinas, habilmente, Hugo Borghi decodificou-a para o povo num grande comício, imputando ao brigadeiro o que, mais tarde, soaria como uma sentença: “O brigadeiro disse que, para se eleger, não precisava dos marmiteiros desempregados”.

“Marmiteiro” teve um competente uso semântico e semiótico contra o candidato da UDN. Passou a ser sinônimo de povo rude, trabalhador, uma espécie de boia-fria e, ao mesmo tempo, constituiu-se no símbolo da campanha de Dutra.

O brigadeiro amargou uma derrota que se repetiria nas eleições de 1950.

No Brasil, ao se falar neste assunto, não se pode passar ao largo das artes demoníacas de Jânio Quadros, sem dúvida, o político que mais eficazmente manipula palavras e símbolos.

Aliás o ex-presidente se comunica como o eleitorado predominante com símbolos. Um símbolo para cada conceito

Para o conceito de autoridade usava a reprimenda dos bilhetinhos, como presidente, ou o estardalhaço das multas de trânsito, como prefeito de São Paulo.

Para o conceito de moralidade, a famosa vassoura. Para o conceito de identificação popular, Jânio dispunha de um arsenal de símbolos, que ia do sanduíche que comia ostensivamente nos comícios, após fartas refeições, passando pelo desalinho dos cabelos polvilhados de caspas produzidas, até a adoção de uma farda presidencial que fez sucesso na década de sessenta: o blujânio.

O prestidigitador Jânio Quadros ainda é personagem da vida política. E que personagem!

Em 89, a história pode se repetir. E como repetição é, inevitavelmente, uma farsa. Está na praça, estourando a boca do balão e os percentuais das pesquisas, um jovem bruxo chamado Fernando Collor, com impecável acabamento da mídia eletrônica.

O ex-governador de Alagoas, embora inconsistente como algodão-doce e empostado como galã de novela das oito, descobriu uma palavra mágica como combustível da campanha: marajá, que também é símbolo do clientelismo, do privilégio odioso, da mutretagem e da esperteza, expedientes que irritam o cidadão comum.

O candidato do PRN descobriu o filão.

E pelo menos, por enquanto é o xodó do eleitor e a tábua de salvação do oportunismo cego dos profissionais do poder.

Sua cintilante imagem de justiceiro dos tempos românticos, montado no alazão televisivo, tem conseguido seduzir uma parcela da população que pode, perigosamente, trocar a aparência pela essência.

É certo que falta muito tempo para o dia do juízo eleitoral. No entanto, corre-se o risco real de o eleitor gritar na urna a palavra mágica: abracadabramarajá! e sair de dentro dela um Presidente da República. Logo depois, quando o eleitor descobrir que o presidente é obra do feitiço, será tarde demais.
Gustavo Krause

*Este artigo foi publicado na edição do Diário de Pernambuco de 25 de maio de 1989. O Primeiro turno foi disputado por 22 candidatos no dia 15 de novembro de 1989. Em abril, as pesquisas revelavam um empate técnico entre Brizola (PDT),13%, Lula (PT), 12% e Collor (PRN) 14%. Collor e Lula passaram para segundo turno com 30,47% e 17,18% dos votos válidos. A primeira eleição presidencial sob as regras da Constituição de 5 de outubro foi vencida por Collor com 53,03% e Lula com 46,97% dos votos válidos, em 17 de dezembro de 89. Na época, exercia o mandato de Vereador pela cidade do Recife. No primeiro turno votei em Aureliano Chaves candidato PFL e, no segundo turno, faço parte da lista dos votos em branco (1.793.224, 2,59% dos votos totais)