quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Brasil do Messias acima de todos e tudo


 

A que ponto chegamos

Nossa mais recente crise institucional, não a derradeira, é consequência da leniência com que as instituições vêm tratando os frequentes abusos autoritários do presidente Bolsonaro e de seus radicais seguidores. Chegamos a essa situação, e não é a primeira desse tipo, porque o Congresso aceitou que deputados bolsonaristas e milícias digitais promovessem, como continuam a fazer depois da prisão do deputado federal (ainda?) Daniel Silveira, ataques às instituições, e que as Forças Armadas aderissem acriticamente ao governo Bolsonaro e aceitassem, algumas vezes com o endosso tácito até mesmo do ministro da Defesa, diversas tentativas de transpor as linhas da legalidade, contra a democracia.

O general Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo encarregado das negociações com os parlamentares, quase nunca fundadas em bases republicanas, declarou que não se envergonha dessas negociações. Deveria, pois assumiu, na sua faceta civil, a parte apodrecida das relações políticas, a mesma tática que o leva, e a outros generais, a repudiar o lulopetismo e, anteriormente, o próprio Centrão. Lembram-se do general Heleno cantando na campanha eleitoral “se gritar pega ladrão, não sobra um no Centrão?”.

A revelação do general Villas Bôas de que a nota de pressão sobre o Supremo Tribunal Federal (STF) na véspera do julgamento de um habeas corpus a favor do ex-presidente Lula foi feita não em caráter pessoal, mas pelo Alto-Comando do Exército, é muito mais grave do que já parecia há três anos. Não importa se você gosta do Lula ou não, se acha que ele merecia o habeas corpus ou não. É um absurdo que o Alto-Comando do Exército respalde uma declaração daquelas às vésperas de um julgamento do STF.


É por isso que gente como esse deputado bolsonarista se acha em condições de fazer o que fez, de afrontar o Supremo. É inexplicável, também, a ironia atual do general em relação à nota que o ministro Edson Fachin soltou, de repúdio à revelação. Fachin não falou há três anos porque falou pelo STF o decano Celso de Mello, rebatendo vigorosamente a tentativa de pressão ilegal.

Esta crise que estamos vivendo, política e institucional, vem da aceitação de um governo autoritário, antidemocrático, que usa as Forças Armadas para se respaldar nessas ações e usa milícias digitais, que podem se transformar em milícias reais com os decretos de liberação de armas. Bolsonaro está armando a população claramente com o intuito de ter uma militância armada para se impor, como aconteceu com Trump nos Estados Unidos.


Trump tinha milícias armadas que desfilavam pelas ruas. Nos EUA é mais comum o porte de arma, então os militantes andavam altamente armados nas ruas e invadiram o Capitólio por incitação do ex-presidente Trump, que agora será processado civilmente por essa atitude, já que, politicamente, o Partido Republicano não permitiu que fosse impedido de continuar atuando na política.

Estamos chegando ao ponto em que as autoridades terão que tomar uma decisão, porque a democracia está permanentemente sob ataque neste governo Bolsonaro. O mais importante hoje é saber como a Câmara se comportará. No caso de Delcídio do Amaral, o Senado aprovou imediatamente a decisão do STF. Neste caso, há muita resistência, inclusive na base bolsonarista radical que está atuando e continua atacando o Supremo e a democracia, continua atacando os representantes das instituições que consideram agir como agentes da esquerda internacional, numa das várias teorias conspiratórias que espalham.

O importante é saber se a nova base do governo Bolsonaro vai se impor, a ponto de não aceitar a prisão do deputado (ainda?), um sujeito desqualificado, já investigado em dois outros inquéritos no STF, por atitudes antidemocráticas e por espalhar fake news. Saber se o corporativismo que protege uma deputada acusada de homicídio e outro, um senador, apanhado em flagrante com dinheiro escondido nas suas partes íntimas, chega ao ponto de acobertar ataques antidemocráticos de um autoritário que, ironicamente, foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional da ditadura militar que tanto venera.

Sonho de milicianos

Quem está feliz com os decretos sobre armas: 1. Quem as fabrica e vende; 2. Milícias e quadrilhas, pois haverá mais armas em circulação; 3. Quem pode pagar R$ 3 mil ou mais por armas; 4. Malucos que sonham com uma nova ditadura no Brasil
Flávio Dino, governador do Maranhão

Silveira é surto febril de uma democracia doente

As manifestações criminosas veiculadas pelo deputado Daniel Silveira na internet podem ser comparadas a um surto febril. A prisão do parlamentar bolsonarista funciona como uma medicação antitérmica. A temperatura pode aumentar ou diminuir dependendo das reações da Câmara e do Planalto. Mas está claro que será necessário tratar da infecção para curar a doença. O paciente não é o deputado insano. Quem está doente é a democracia brasileira.

No vídeo que disparou o termômetro, o deputado se escorou em declarações que um ex-comandante do Exército não deveria ter feito. Defendeu um AI-5 que, se voltasse a existir, fecharia o Congresso, interrompendo o seu próprio mandato. Xingou e ameaçou um STF que o investiga por participar de um esquema de difusão de notícias falsas com ramificação no Planalto e por ajudar na organização de manifestações antidemocráticas das quais o presidente da República participou.



Nesse contexto doentio, Daniel Silveira é mera reação adversa de uma moléstia muito maior. A cura exigiria um tratamento multidisciplinar e simultâneo. Seria necessário varrer a política dos quarteis, expurgar o quartel da Saúde, devolver os magistrados aos autos processuais, desligar os extremistas da tomada, retirar os negacionistas do mundo da Lua, trocar decretos sobre armas por contratos de compra de vacinas. Tudo isso e mais uma cirurgia de redução de estômago no centrão.

A grande vantagem da democracia é que, se nada funcionar, o eleitor pode transformar a UTI numa maternidade, dando à luz algo novo. A magia dos momentos politicamente doentios é a possibilidade de redescobrir uma verdade que dá sentido ao regime democrático. Para os eleitos inconscientes, o eleitor impaciente é um santo remédio. Gente como Daniel Silveira e assemelhados não surgem por geração espontânea. No limite, quem controla o bisturi é você.

Efeitos permanentes da crise

Recessões são eventos recorrentes. Por diferentes razões, de tempos em tempos, a atividade econômica cai e com ela o investimento, consumo e emprego. Em algum momento, observa-se uma recuperação e a vida volta ao normal. Esta pode ser rápida - em V, como dizem os economistas - ou lenta, mas os efeitos das crises costumam ser transitórios. A crise atual, entretanto, a mais grave das últimas décadas, deverá ter efeitos de médio e longo prazo que vão muito além do roteiro acima. O país tende a ficar mais pobre, mais desigual, e o crescimento pode se tornar permanentemente mais lento. O impacto duradouro se dará principalmente através da educação.

Embora os indicadores educacionais tenham melhorado, a educação no Brasil permanece, em geral, de baixa qualidade. O problema atinge particularmente crianças e jovens mais pobres. Vindos de um ambiente doméstico menos escolarizado, eles já iniciam a vida estudantil em desvantagem, pois a evidência revela que a educação dos pais é fundamental na educação dos filhos. O problema poderia ser parcialmente sanado na escola, mas os indicadores de qualidade do ensino mostram que escolas públicas, onde os pobres estudam, são piores que as privadas frequentadas pelas crianças mais ricas.


A situação se agrava no Ensino Médio, onde um currículo voltado ao acesso à universidade, contendo muitas matérias (mal ministradas) aliena ainda mais o aluno pobre. Ao atingir o Ensino Médio, e pouco aprender, muitos jovens pobres escolhem abandonar o estudo e entrar no mercado de trabalho. Como não obtiveram qualquer qualificação estão fadados, por toda a vida profissional, a trabalharem em empregos ruins e de baixa remuneração. A recente reforma do Ensino Médio de 2016 busca corrigir isso, mas o panorama ainda é desanimador.

Esse quadro piorará muito com a pandemia, pois muitas escolas públicas não funcionaram no ano passado, devido ao isolamento necessário para evitar o contágio. Ao contrário das escolas privadas, que adotaram prontamente o ensino à distância, na maioria das públicas não houve ensino remoto. E nas poucas em que houve, o baixo acesso à rede móvel e à banda larga não permitiu às crianças pobres assistir de forma satisfatória às aulas em seus computadores - muitos alunos sequer possuem computadores ou tablets em casa - ou celulares. Assim, perdeu-se um ano inteiro de ensino.

Se em condições normais muitos jovens já não terminavam o Ensino Médio, agora o abandono será ainda maior. Como tudo indica que a volta ao ensino presencial não ocorrerá (plenamente) em 2021, haverá uma geração permanentemente menos educada que a anterior, que já não estava bem na foto. O problema não será revertido quando a covid-19 for derrotada. Depois de um ou dois anos fora da escola, e já trabalhando por algum tempo, dificilmente os jovens voltarão a estudar.

Haverá uma geração menos qualificada que as anteriores permanentemente presa a ocupações e empregos de baixa remuneração. Como aprenderam pouco e muitos sequer terminaram o Ensino Médio, as opções no mercado de trabalho para esses jovens serão piores do que já eram para as gerações anteriores. Muitos irão para a informalidade e outros pularão, durante sua vida profissional, de trabalhos precários para outros igualmente precários. Esses jovens não terão jamais acesso a bons empregos. A pobreza no futuro será maior do que seria se não houvesse ocorrido a pandemia.

Além da maior pobreza, também a desigualdade aumentará em relação a um quadro de normalidade. As crianças das classes médias e ricas, mal ou bem, continuaram estudando, e suas perspectivas futuras no mercado de trabalho foram muito menos afetadas. Esse grupo, provavelmente, não sofrerá a mesma perda de renda no futuro, o que aumentará a distância em relação aos mais pobres.

O choque da covid-19, além de aumentar a pobreza e a desigualdade, terá um efeito deletério permanente no ritmo de expansão da economia, pois há hoje forte evidência de que a educação é um importante determinante do crescimento de longo prazo dos países.

Haveria algo a fazer para amenizar essa situação? Talvez, desde que houvesse alguma coordenação ou plano federal para enfrentar o problema. Mas, em 2020, mal se ouviu falar do Ministério da Educação, de onde parece não ter saído nenhuma ideia útil para amenizar ou corrigir, mesmo que parcialmente, a interrupção quase que total do ensino público.

Parte dos gastos com auxílio emergencial, por exemplo, poderia ter sido utilizada para subsidiar a compra de tablets e o acesso à banda larga, como observado em outros países. Professores poderiam ter sido treinados para dar aulas remotas - muitos lavaram as mãos e se abstiveram de buscar soluções -, e algum esquema de recuperação escolar poderia ter sido implementado. Aulas presenciais, para turmas menores, poderiam ter sido tentadas já no segundo semestre. Entretanto, pouco foi feito e as crianças foram basicamente abandonadas à própria sorte.

Muitos parecem crer que a situação, embora gravíssima, seja temporária. E uma vez terminada a pandemia, tudo voltará ao normal. Não será o caso. Além do déficit de ensino das crianças menores, que exigirá um grande esforço para ser corrigido, haverá um número enorme de jovens que não retornarão à escola. Trata-se de um choque permanente que afetará não só a renda e a vida futura dessas pessoas, mas também as perspectivas de longo prazo do país. Este será ainda mais pobre e desigual.
Pedro Cavalcanti Ferreira, diretor da FGV Crescimento e Desenvolvimento/ Renato Fragelli Cardoso, professor da EPGE-Fundação Getúlio Vargas

Ilegal, inoportuno e muito perigoso

No dia 12 de fevereiro à noite, uma sexta-feira, véspera do feriado de carnaval, o governo federal divulgou quatro decretos alterando outros quatro atos do próprio governo, editados em 2019, com o propósito de ampliar ainda mais o acesso a armas de fogo e afrouxar o seu controle pelo poder público. Os novos decretos vão muito além de mera regulamentação da legislação aprovada pelo Congresso. Eles desrespeitam o objetivo e as disposições do Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/2003). São, portanto, ilegais, merecendo pronta revogação.

O governo de Jair Bolsonaro não apenas desrespeitou os limites do poder de regulamentação do Executivo. Os novos atos do governo federal em relação às armas são extremamente perigosos, facilitando a vida das milícias e de quem deseja utilizar as armas de fogo para além das coordenadas legais. Por exemplo, as novas medidas tornam mais precário o rastreamento de munições, o que, entre outros danos, pode dificultar a elucidação dos crimes.


Os quatro decretos dão a exata dimensão das prioridades do governo de Jair Bolsonaro. No meio de uma gravíssima crise de saúde pública, com mais de 240 mil mortos pela covid-19, com consequências devastadoras sobre a situação social e econômica do País, o presidente Bolsonaro atua não para prover vacina para a população, mas para desregulamentar o acesso e o uso de armas de fogo.

Para agravar o quadro, Jair Bolsonaro tem sugerido que a ampliação do porte e uso de armas de fogo não tem relação apenas com a defesa pessoal. Ele já deu a entender que defende o uso desse armamento contra inimigos políticos. Em reunião ministerial de abril de 2020, Jair Bolsonaro foi explícito, ao exigir, em meio a muitos palavrões, “que o povo se arme”, pois isso seria a “garantia” de que ninguém ousará “impor uma ditadura aqui” – referindo-se explicitamente a prefeitos e governadores que haviam imposto medidas restritivas de movimento para enfrentar a pandemia. “Se estivesse armado, (o povo) ia para a rua” e, assim, desobedeceria à ordem desses governantes, disse o presidente.

Na ocasião, ele pressionava o então ministro da Justiça, Sérgio Moro, e o ministro da Defesa, Fernando de Azevedo e Silva, para que ampliassem o acesso da população a armas de fogo, o que afronta a legislação em vigor. Com a Lei 10.826/2003, o Congresso procurou promover precisamente o desarmamento.

Ainda no primeiro semestre de 2019, Bolsonaro havia defendido “o armamento individual para o povo”, mas não para que o indivíduo preserve a própria vida, e sim para defender “algo muito mais valoroso que a nossa vida, que é a nossa liberdade”. Essa campanha para armar a população, ainda mais com fins explicitamente políticos, não encontra nenhum respaldo na Constituição e nas leis do País.

Tal é o disparate dos quatro decretos de Jair Bolsonaro que até lideranças do Centrão se mostraram avessas à nova regulamentação. Deputados do PL, PSD e MDB disseram ser contrários às novas disposições do governo federal sobre as armas de fogo. “Mais grave que o conteúdo dos decretos relacionados a armas editados pelo presidente é o fato de ele exacerbar o seu poder regulamentar e adentrar numa competência que é exclusiva do Poder Legislativo”, escreveu, em sua conta no Twitter, o vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos (PL-AM).

No início da semana, foi proposto na Câmara um projeto de decreto legislativo para derrubar o Decreto 10.630/2021, um dos quatro novos atos relativos às armas de fogo. De fato, é preciso que o Legislativo ponha fim ao descalabro do governo de Jair Bolsonaro de liberar, fora dos limites da lei, a posse e o uso de arma de fogo e ainda dificultar o seu controle.

Além de defender as competências constitucionais do Congresso, trata-se de evitar que o País fique refém de um presidente da República que, alheio às responsabilidades do cargo, tenta criar confusão e, no limite, o caos.