sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Brasil e o abismo


O preço da liberdade

A frase, muito repetida, é de 1790 e trata-se da adaptação do trecho de um discurso de um advogado irlandês pouco conhecido no Brasil, John Curran. “A condição sobre a qual Deus deu liberdade ao homem é a vigilância eterna; a qual, se quebrada, torna a servidão ao mesmo tempo consequência de seu crime e castigo de sua culpa”. O preço da liberdade, pois, é a eterna vigilância, como têm alertado recentemente governadores, dirigentes partidários e observadores da cena política brasileira.

Do PSDB ao PCdoB, do MDB ao Republicanos, do PL ao Psol, da sala de um banqueiro na Faria Lima a simpósios de cientistas políticos, ao longo do ano, a frase foi frequentemente citada quando os interlocutores foram convidados a refletir sobre o que tem significado este primeiro ano do governo Bolsonaro. São poucos os que não chegaram à constatação de que o atual presidente só não golpeia as instituições por falta de oportunidade. A estratégia é a de contenção permanente, em um ambiente onde o risco de um golpe não está sendo negligenciado.


O próprio presidente e seu entorno ajudam seus vigilantes nos momentos de grande vacilação, em que a tese do golpismo parece excessivamente frágil por não responder a perguntas essenciais. Por exemplo, qual seria um possível pretexto para uma ruptura institucional? A resposta não tardou. Ora, que dúvida! Um novo AI-5 se justifica em um cenário de conturbação social, em que a turba enlouquecida promova saques, incêndios, depredações e o caos absoluto. É o que os arautos do bolsonarismo supõem que esteja acontecendo no Chile.

Na realidade, até o momento, a classe política chilena procura saídas para a insatisfação popular dentro da institucionalidade. Uma demonstração disso é a convocação de uma assembleia constituinte. Outra demonstração foi a mudança de gabinete que o presidente Sebástian Piñera promoveu. Fala-se no país da construção de um sistema de seguridade social mais consistente. Se tudo isso irá ou não acalmar as ruas, cedo para dizer, mas o fato é que ninguém, por ora, tem apregoado um AI-5 naquele país.

Bolsonaro mantém o revólver sobre a mesa, até com certo deboche. Ontem foi flagrado pelo microfone aberto durante a cúpula do Mercosul, em uma brincadeira, perguntando se “não dava pra dar um golpe não?” e continuar na Presidência pro-tempore do bloco. O presidente exercita o bom humor em um momento em que a democracia e a tolerância são sentimentos em baixa no mundo.

Vive-se tempos de intolerância, de origem ainda a esclarecer. Há autores que ligam o desprestígio da democracia com a crise econômica global e outros com as desordens no Oriente Médio deste século, tudo tendo como catalisador o avanço da inteligência artificial e a multiplicação exponencial do arsenal de manipulação de informação de que se dispõe atualmente.

O medo é um sentimento poderoso que se espalha pelas redes. Uma pesquisa global coordenada no ano passado pela Fundação de Inovação Política do Instituto Republicano Internacional, um ‘think tank’ francês, realizou 36 mil entrevistas em 42 países e deixou evidente que as ondas de pânico não conhecem fronteiras. Segundo o levantamento, intitulado “Democracias sob tensão”, há mais brasileiros inquietos com uma potencial ameaça islâmica do que americanos e britânicos (62% a 54% e 53%, respectivamente), um dado que surpreende, já que no Brasil nunca houve atos terroristas de motivação religiosa.

Surpreende ainda mais, dado que o levantamento mostrou, mais uma vez, que o brasileiro é muito tolerante. O percentual de pesquisados que diz que não se incomoda com opiniões políticas diferentes das suas no Brasil simplesmente é o maior do mundo. Mas de cada quatro brasileiros, três preferem mais ordem, ainda que com quem menos liberdade. Só um em cada seis brasileiros confia na mídia. Já a percepção da Internet e das redes sociais é amplamente positiva.

Quem se dispõe a exercer a eterna vigilância sobre Bolsonaro - partidos políticos, o parlamento, a mídia, a Justiça - são instituições todas em crise. A eterna vigilância, neste caso, em tese, pode não ter o aval popular. O povo, de certa forma, estaria aberto a uma ditadura regeneradora. Se Bolsonaro é a pessoa capaz de exercer este papel messiânico é outra coisa. Falta ao presidente popularidade para tal - trata-se de um dirigente com taxas apenas medianas de aprovação, abaixo das obtidas por outros presidentes eleitos nos últimos anos, considerando o mesmo tempo decorrido de governo.

Não há, contudo, outro candidato a Bonaparte no horizonte. Em um movimento que pode ter sido definitivo para consolidar seu poder e o mais importante que fez desde a vitória nas urnas, o presidente neutralizou Sergio Moro, rival capacitado para atrair este tipo de idolatria, ao colocá-lo no Ministério da Justiça e obter a sua lealdade. Manter Moro próximo de si continua sendo crucial para o presidente.

O ano de 2019 se aproxima do fim com o Brasil vivendo sua guerra fria particular, onde um equilíbrio do terror se exerce. Nem Bolsonaro tem a força para golpear as instituições, nem as instituições contam com combustível suficiente para promover a contenção definitiva de seus ímpetos.

A posição do presidente, contudo, é a mais confortável. Ter colocado um revólver sobre a mesa de nenhuma maneira o obriga a utilizá-lo. E é questionável cravar que estamos em um ponto de ruptura. O Brasil ainda é um pais onde um juiz federal de uma pequena cidade do interior bloqueia uma nomeação presidencial, como acaba de ocorrer no caso da escolha de Sergio Nascimento para o comando da Fundação Palmares.

De embate em embate, de desautorização em desautorização que recebe dos eternos vigilantes, o presidente vai construindo o cenário para a reeleição. Tem pronto o discurso e terá um partido à sua imagem e semelhança. O Aliança pelo Brasil não será a primeira a sigla a nascer no Brasil pela e para a vontade de um mandatário e nada faz pensar que será o último.

É possível brincar com a democracia, e, ao mesmo tempo desfrutar dela. No Brasil, as instituições funcionam.

Brasil conectado

Este é um retrato de nossos dias. O garoto G.H.S., 10 anos, morador de uma comunidade pobre do Recife, precisava fazer o dever de casa, mas não tinha notebook ou tablet, onde pudesse pesquisar. Os poucos equipamentos da escola são compartilhados por todos os alunos. Não é fácil encontrá-los disponíveis.

Uma colega, da mesma idade, que mora perto da casa do menino, possui um smartphone. Mas, no dia de fazer o dever de casa, o sinal da internet, que normalmente pega mal onde eles moram, piorou. Sabe desses alunos que fazem questão de levar o dever de casa prontinho para a sala de aula e adoram estudar para tirar notas boas?

G.H.S. não teve dúvidas. Dirigiu-se a uma loja do shopping center que fica junto da comunidade. Entrou, viu um tablet na prateleira, ligou o aparelho e começou a fazer a pesquisa ali mesmo. Era tão bom que nem travava! Fez o exercício inteiro! No final, foi flagrado por um funcionário da loja. Ele, na verdade, observava enquanto o garoto anotava, num caderno, o que pesquisava na internet. Ficou curioso para saber do que se tratava.

Ao compreender o significado daquele momento, tratou o caso com sensibilidade. Mas, em tempos de redes sociais, achou interessante filmar e o vídeo viralizou. O uso do tablet da loja terminou sendo uma acusação de uma sociedade injusta e cruelmente desigual.

A atitude do garoto invocava a educação dependente da tecnologia como motivo para ele estar pesquisando num equipamento exposto para ser vendido. Fazer o exercício pressupunha, também, a força do desejo de estudar vencendo a barreira da falta de condições financeiras para realizar um sonho tão nobre. G.H.S. não queria levar o tablet, apenas fazer a incumbência que recebeu da professora.

A intenção do menino também estava longe de ser um protesto, ou uma atitude para tocar na consciência e na lucidez das pessoas. Pelo menos, não foi um protesto intencional. Mas, a situação por si foi, é e será uma denúncia de exclusão. Exemplo de uma lógica desumana no que diz respeito à distribuição desigual do acesso a computadores e internet.

É indiscutível que a tecnologia pode ser um instrumento de desenvolvimento e crescimento econômico. Mas, num país como o Brasil, onde grande parte da população mal tem o que comer, é um contrassenso imaginar que as pessoas possuirão computador, tablet ou smart. Há poucos dias saiu uma pesquisa dizendo que a metade do povo brasileiro vive com cerca de R$ 450 por mês.

Resumo da tragédia: os avanços tecnológicos nos reduzem aos que somos.

Dá para compreender o quanto a simples atribuição de um dever de casa tornou-se o detonador de uma atitudes inusitada para G.H.S.

As consequências sociais, econômicas e culturais dessa distribuição desigual são dolorosas. E os poderes públicos brasileiros, embora saibam que as faturas estão vindo com juros e correções, insistem em não oferecer políticas ou estratégias para reduzir o impacto negativo dessa dinâmica da exclusão digital.

Cícero Belmar

Foi um arraso!

Na verdade, ele não ganhou, nós perdemos, porque ficamos sem projetos que seduzissem os eleitores. Deixamos um país em crise e decadência, com a população descontente, milhões nas ruas contra nossa corrupção, incompetência e falta de inspiração para o futuro.

Perdemos por nossos erros. Estamos errando de novo ao nos perguntarmos por que ele ganhou, quais foram seus acertos táticos, suas manipulações de slogans e fake news e não por que nós perdemos, quais foram nossos erros estratégicos?
Cristovam Buarque

Faltou líder que dissesse: 'Gente, pode pegar mal!'

O Congresso fez uma opção preferencial pela autodesmoralização. É como se os parlamentares estivessem empenhados em revogar o direito do brasileiro ao otimismo. Se ninguém fizer nada —e tudo indica que nada será feito— o Legislativo aprovará uma elevação do fundo de financiamento para os candidatos a prefeito e a vereador em 2020 de R$ 2 bilhões para R$ 3,8 bilhões.

Para chegar a esse valor, os congressistas passaram na lâmina fatias de orçamentos de vários ministérios. Coisa de R$ 1,7 bilhão. Uma parte foi retirada da Saúde (R$ 500 milhões). Outro naco foi subtraído de projetos de infraestrutura em áreas como habitação popular e saneamento básico (R$ 380 milhões). Suprimiu-se dinheiro até da educação (R$ 280 milhões).


Repetindo: retirou-se verba de áreas como saúde, habitação, saneamento e educação para engordar o bolo de dinheiro público a ser torrado na campanha municipal do ano que vem. Experimente colocar essa transferência de verba social para a caixa eleitoral nas suas circunstâncias. Pense na reunião em que os líderes partidários optaram pelo escárnio. Não ocorreu a ninguém dizer "quem sabe na educação e na saúde a gente não mexe!". Nenhuma voz se levantou para ponderar: "Gente, cortar no saneamento pode pegar mal".

Treze partidos avalizaram a elevação da tunga. Anote aí: PP, MDB, PTB, PT, PSL, PL, PSD, PSB, Republicanos, PSDB, PDT, DEM e Solidariedade. Apenas quatro legendas se posicionaram contra: Podemos, Novo, Cidadania e PSOL. Se tudo correr como planejado, você paga a conta mais salgada e eles decidem que candidatos receberão a verba. Eles quem? Ora, os de sempre: Lulas e Valdemares, Jerffersons e outros azares.

Celebrava-se no início do ano, a posse do Congresso mais renovado das últimas três décadas. Chega-se no final do ano à conclusão de que o Parlamento novo era pão dormido.

New York Times diz ser a Amazônia, no governo Bolsonaro, 'terra sem lei'

“Quando a fumaça se dispersa, a Amazônia pode respirar novamente”. É com esta frase que se inicia a reportagem do jornal americano The New York Times publicada nesta quinta-feira, 5, sobre a situação da floresta após quase um ano de governo do brasileiro Jair Bolsonaro.

“Por meses, nuvens negras pairavam sobre a floresta, enquanto trabalhadores a incendiavam e a desmatavam”, continua o texto. “Agora, a época de chuvas chegou, dando à selva uma trégua e oferecendo ao mundo a visão dos danos”.

Os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram o tamanho do estrago: neste ano, o desmatamento na Amazônia chegou a 9.762 quilômetros quadrados, um aumento de 29% em relação ao mesmo período do ano passado e o maior em 10 anos. A área devastada equivale ao tamanho do Líbano, menciona o jornal.

Antes de divulgados os dados do Prodes, sistema do Inpe que realiza um relatório anual com os índices de desmatamento no período), Bolsonaro atacara os indicadores do Deter, outro sistema que divulga em tempo real o desmatamento, e demitira Ricardo Galvão, diretor do instituto à época. Após constatado o aumento de 29% no desmatamento, o presidente não deu o braço a torcer. “Você não vai acabar com desmatamento nem com queimadas, é cultural”, afirmou.


“Bolsonaro, que sempre argumentou que políticas de conservação impossibilitam o desenvolvimento econômico, vêm desdenhando das medidas ambientais que reduziram o desmatamento da Amazônia entre 2004 e 2012”, continua o jornal. “Seu governo enfraqueceu a fiscalização de leis ambientais ao cortar o orçamento, os funcionários em agências federais e reduziu o esforço em combater as madeireiras, o garimpo e a pecuária ilegal”.

O Times, contudo, diz que o desmatamento começou antes de Bolsonaro assumir a Presidência. O jornal cita a crise econômica de 2014, que forçou muitas pessoas a buscarem os recursos na floresta, além de uma onda de seca entre os meses de julho e agosto, que transformou o solo em atrativo para a exploração ilegal, seja por fazendeiros, madeireiros ou garimpeiros.

Os 80.000 focos de incêndio, segundo dados do governo brasileiro, chamaram a atenção internacional e culminaram em uma crise diplomática, principalmente com a França. O presidente francês, Emmanuel Macron, disse que Bolsonaro era mentiroso e ameaçou o acordo comercial entre União Europeia e Mercosul. O brasileiro rebateu com insultos à primeira-dama da França.

Além da imagem deteriorada do Brasil no exterior, o desmatamento é algo que pode implicar danos à economia brasileira. O Times entrevistou o ex-ministro da Agricultura Blairo Maggi, bilionário brasileiro conhecido por ser o “Rei da Soja” e principal exportador de grãos do país, que disse que “os agricultores, associações e a indústria terão de refazer o que foi perdido”, disse. “Recuamos 10 etapas e teremos de trabalhar para voltar para onde estávamos”.

O desmatamento desenfreado não somente dá golpes na imagem do Brasil no exterior e ameaça a economia brasileira, mas impõe risco à toda humanidade, diz o Times. A Floresta Amazônica é responsável por armazenar milhões de toneladas de dióxido de carbono. O fogo libera todo esse conteúdo tóxico na atmosfera, e o desmatamento diminui a capacidade de retenção desses elementos tóxicos, contribuindo para a mudança climática.

Segundo uma análise feita pelo Centro de Pesquisas Woods Hole e pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), só neste ano as queimadas liberaram de 115 até 155 milhões de toneladas de dióxido de carbono na atmosfera. Cientistas também alertam que, se a floresta sofrer perda de 25% de sua área, a Amazônia chegará a um ponto sem volta e se transformará em uma savana. A estimativa é de já ter perdido 17%, afirma o jornal americano.

Pensamento do Dia


Nacionalismo cristão tupiniquim

Fui ler o manifesto do partido de Bolsonaro. Antes de mais nada, explico: fui ler o manifesto do novo partido de Bolsonaro não por curiosidade mórbida ou por masoquismo — o fiz por dever de ofício. Há meses ando empenhada na elaboração de um livro sobre nacionalismo econômico com colegas do Peterson Institute for International Economics, onde trabalho. A primeira parte desse livro foi dedicada à formulação de uma metodologia para medir o grau de nacionalismo dos principais partidos dos países-membros do G20 antes e depois da crise de 2008. Para os leitores que estiverem interessados no resultado dessa pesquisa e na metodologia, sigam o link.


Ao todo, lemos plataformas e manifestos de 55 partidos antes e depois da crise. Cruzamos nossos dados com bases de informação que classificam os partidos como populistas ou não populistas, além de outras que identificam seu viés ideológico. Concluímos que os partidos de extrema-direita atuais, tanto em países emergentes quanto nas economias avançadas, tendem a ser populistas e nacionalistas. Essa mistura de nacionalismo com populismo é recente — antes da onda atual, muitos partidos com viés nacionalista não eram necessariamente populistas. Por essa razão, as referências aos movimentos de extrema-direita tendem a chamá-los de “populistas” ou de “nacionalistas”, a depender de quem está escrevendo sobre o assunto. Entre cientistas políticos e economistas, o uso do termo “populista” para designar esses partidos e líderes tornou-se bastante comum, evidentemente com razão. No entanto, como a própria definição de populismo é vaga e o termo carrega interpretações diferentes a depender de quem o utiliza, preferimos nos ater à ideia de nacionalismo e, em particular, ao conceito de nacionalismo econômico. Definimos nacionalismo econômico a partir de ampla literatura sobre o tema. Para nós, trata-se de uma postura que não apenas sobrepõe os interesses nacionais aos externos, mas o faz em contraposição a eles. Para um nacionalista típico, o comércio entre dois países, por exemplo, é sempre um jogo de soma zero: meu país só ganha se seu país perde. Trump é o exemplo claro dessa forma de pensar as transações externas.

Ao ler o manifesto do Aliança pelo Brasil — trata-se de um documento curto: sete páginas, não mais — algumas idiossincrasias chamaram a atenção. A primeira é a importância dada à religião e aos ditos “valores cristãos”: a primeira parte do documento versa sobre o respeito a Deus e à religião num tropeço de palavras que ignora as raízes multiculturais brasileiras. Esse destaque dado à religião, embora presente em alguns partidos de extrema-direita, é raramente encontrado nos manifestos ou nas plataformas apresentados e por nós analisados. Geralmente permanece circunscrito à retórica de alguns líderes, mas não faz parte da elaboração de documentos dos partidos. Portanto, o partido de Bolsonaro caminha à frente de seus pares, juntando religião e política de forma explícita.

O segundo ponto que me chamou a atenção foram as referências à “preservação da herança cultural do Brasil”. Apesar de esse clichê estar na moda entre os seguidores do ministro das Relações Exteriores depois de ele ter sido apresentado ao hoje irrelevante Steve Bannon, ex-Casa Branca, o fato é que a tal da herança cultural é nada mais do que um factoide. O que seria essa herança diante das misturas que caracterizam o Brasil? Novamente, é a primeira vez que vejo tal destaque em um manifesto partidário da extrema-direita.

O documento, evidentemente, assume tom nacionalista na economia quando rejeita o “globalismo” a partir de uma equivalência para lá de falaciosa com o nazifascismo e o comunismo e reitera a soberania nacional. Quase brada: “A Amazônia é nossa!”. Contudo, ao tratar das políticas econômicas propriamente ditas, exalta a soberania do livre mercado como solução para todos os males, inclusive para a “luta de classes” que o manifesto explicitamente repudia. Até concordo que o termo “luta de classes” seja meio antiquado — mas onde há desigualdade, extrema pobreza e ausência de mobilidade social há luta de classes ou como preferirmos chamá-la para que não nos rotulem de marxistas, ó céus.

A grande inovação do extremismo bolsonarista é a invenção do "fundamercadolismo liberaloide", fugindo da regra nacionalista-econômica de seus pares mundo afora. Suspeito que esse "fundamercadolismo liberaloide" vá ceder rapidamente às inclinações nacionalistas cristãs tupiniquins do restante do documento. O que sobrará é um punhado de parágrafos de inspiração ernesta ou um palavrório sem pé nem cabeça mesmo. Eis nossa contribuição para o nacionalismo ressurgente.
Monica de Bolle

Tempos de surdez coletiva

Estamos em um tempo de muito barulho, que não é só da poluição sonora, mas também da poluição visual, da enxurrada de informação na Internet. Isso tudo nos deixa com uma espécie de doença, sempre querendo mais informação, mesmo não dando mais conta. Qual o problema desse mergulho? Cada vez menos estamos nos escutando
Emicida

Reforma dos militares é um grande aumento de salários

A reforma da previdência dos militares pode ser tratada como uma contrarreforma. O Senado aprovou na quarta-feira o texto que já havia passado pela Câmara, com a garantia de remuneração integral e aposentadoria sem idade mínima. Nesse momento de crise fiscal, o projeto eleva salários, mantém alguns benefícios existentes e aumenta outros. Na prática, houve um grande reajuste de salários e de reestruturação da carreira dos militares.

Os especialistas ainda contestam a transparência do projeto. O governo não abriu todos os dados como fez na reforma dos civis. O texto foi produzido nas próprias Forças Armadas, e não no Ministério da Economia.


A informação é que, já em 2020, as mudanças custarão R$ 4,7 bilhões. Em dois anos, o custo dobra para R$ 9,3 bi. A equipe econômica explica que está previsto um aumento na alíquota de contribuição previdenciária, o que vai elevar também a arrecadação do sistema. A taxa recolhida subirá de 7,5% para 10,5% até 2021. Os pensionistas passarão a contribuir também.

O tempo de serviço ainda subiu de 30 anos para 35. Mas os benefícios também cresceram. Com a reestruturação da carreira, haverá adicional para cada curso concluído pelo militar. O aumento na remuneração pode chegar a 73%. Haverá também o adicional de disponibilidade para quem entrar para a reserva. Nas patentes mais altas, o reformado vai se retirar com o último salário e com um adicional de até 32%. Ao se aposentar, o militar receberá também um abono de oito salários, o dobro dos quatro previstos na regra atual.

A categoria fez poucas concessões. Deixará de existir a figura da pessoa designada, que recebia a pensão do morto que não tem um familiar para receber o benefício. Daqui para frente não se pode mais fazer isso. Mas ainda assim as vantagens da reforma são muito maiores. A equipe econômica não conseguiu acabar, por exemplo, com a morte ficta. A esposa de um militar expulso continuará recebendo uma pensão das Forças Armadas. A diferença é que agora o benefício será proporcional ao tempo trabalhado. No caso de um servidor civil desligado por improbidade, não há qualquer pensão.

A ditadura do sr. Guedes

“Eu diria que, enquanto instituição de longo termo, sou totalmente contra ditaduras. Mas uma ditadura pode ser um sistema necessário durante um período de transição. Às vezes, é necessário para um país ter, durante certo tempo, uma forma de poder ditatorial. Como vocês sabem, é possível para um ditador governar de maneira liberal. E é possível que uma democracia governe com uma falta total de liberalismo. Pessoalmente, prefiro um ditador liberal a um governo democrático sem liberalismo”. Estas são frases de Friedrich Hayek, um dos pais do neoliberalismo e um de seus teóricos mais influentes. Não por acaso, tais frases foram enunciadas em um jornal chileno, El Mercurio, em 1981: ano em que a ditadura de Augusto Pinochet estava no auge. Hayek estava entusiasmado com a transformação do Chile no laboratório mundial das ideias que ele, Milton Friedman, Ludwig von Mises e outros pregavam com afinco.

Que o paraíso da liberdade neoliberal fosse uma ditadura, bem, isto não era exatamente um problema. Como diz Hayek, às vezes, para alcançar a liberdade é necessário se acostumar à violência de estado. Estranha concepção de liberdade esta, que não vê problemas em andar de mãos dadas com a tortura, a censura, a ocultação de cadáveres, o assassinato, o terrorismo de agentes públicos. O paraíso virá depois que trucidarmos aqueles que não concordam com nossa “liberdade”. Em um impressionante documentário sobre a experiência neoliberal no Chile, Chicago Boys (2015, Carola Fuentes e Rafael Valdeavellano), vemos a formação do grupo de economistas que implementaram o neoliberalismo em nosso continente pela primeira vez. Em dado momento, quando os entrevistadores perguntam ao futuro ministro da economia de Pinochet, o sr. Sergio de Souza, sobre o que ele sentiu quando viu o Palacio La Moneda ser bombardeado por aviões militares até a morte do então presidente Allende, ele afirma: “uma alegria imensa. Eu sabia que era isto que devia ser feito”.


Esta é a verdadeira história do neoliberalismo. Uma história de alegria com bombas, assassinato, golpes e aplausos à ditadura. Neste sentido, não é um acaso se encontrarmos, neste mesmo documentário, o mesmo sr. De Souza, quando falar de sua experiência no que alguns gostavam de chamar de “milagre chileno”, dizer que não sabia de nenhum crime contra a humanidade, que era apenas um técnico fazendo seu trabalho. Esta é outra maneira de dizer: “Eu realmente não estava importando. Eu sabia que meu real “trabalho” passava por fazer vista grossa à morte dos descontentes”. Pois só através desta violência ditatorial sua política econômica poderia ser implementada. Para massas empobrecidas e em luta contra experiências seculares de desigualdade extrema, toda a conversa a respeito de uma sociedade moldada na liberdade de empreender, na livre concorrência, no mérito era apenas mais um capítulo de um velho embuste. Cada época tem seu “emplastro Braz Cubas”. Esse era apenas o mais novo na praça.

Ou seja, a liberdade do mercado só pode ser implementada calando todos os que não acreditam nela, todos os que contestam seus resultados e sua lógica. Para isto, é necessário um estado forte e sem limites em sua sanha para silenciar a sociedade da forma mais violenta. O que nos explica porque o neoliberalismo é, na verdade, o triunfo do estado, e não sua redução ao mínimo.

Que lembrem disso aqueles que ouviram o sr. Paulo Guedes falar em AI-5 nos últimos dias. Isso não foi uma bravata, mas a consequência inelutável e necessária de sua política econômica. Como se costuma dizer, quem quer as causas, quer as consequências. Quem apoia tal política, apoia também as condições ditatoriais para sua implementação. O neoliberalismo não é uma forma de liberdade, mas a expressão de um regime autoritário disposto a utilizar todos os métodos para não ser contestado. Ele não é o coroamento da liberdade, só uma forma mais cínica de tirania. Por isto, é falaciosa a tentativa de alguns em vender uma diferença entre “economia” e “política” no Governo Bolsonaro, como se tudo estivesse bem na economia, enquanto o núcleo político do Governo afunda em flertes ditatoriais. Não: esta é a única política possível para tal economia.

Afinal, a “liberdade” defendida pelos neoliberais tem duas faces, e não é possível ficar com uma e apagar a segunda. Você precisa levar as duas para casa. Por um lado, os amigos de Hayek e Friedman vendem a falácia de que quanto menos estado na economia, maior liberdade. Quanto menos o estado pegar algo de você, estabelecer obrigações, mais você terá como decidir por você mesmo, fazer o que melhor lhe aprouver. Só que há um detalhe: isto vale para você e para o banqueiro, para o caixa de supermercado e a executiva de uma grande empresa. Você perde mais do que ganha porque perde seu serviço público de saúde, sua universidade pública, sua aposentadoria e ganha em troca uma desoneração de impostos que não dará para pagar nem um terço do que se tornou agora serviço privado. Já a executiva e o banqueiro só ganham porque não precisarão mais ter obrigação social alguma com ninguém.

Só que a população não é tão estúpida quando creem tais “economistas”. Por isto, eles sabem que necessitam de um poder que exploda presidentes de oposição, que decrete AI-5, que mate opositores até mesmo em situação “democrática”. E mais do que isto. Eles sabem que necessitam de um poder disposto a intervir em todos os poros da vida social a fim de impedir o desenvolvimento da contestação e da crítica. Eles precisa de um estado agora muito mais forte contra tudo o que lhe conteste, seja isto vindo da educação nacional, das artes ou das organizações sociais.

Vejam a política cultural do sr. Bolsonaro, sua nova pérola preciosa. Nunca vimos um nível tão explícito de interferência, isto a ponto de seu secretário da cultura se ver como ungido por uma missão de “renovar” a cultura nacional, “combater” seus desvios, “recuperar” os valores do belo e do complexo etc. No entanto, alguém deveria estranhar que um Governo que se diz lutar pela “liberdade” transforme o estado no enunciador dos valores culturais a serem realizados, do que é a verdade cultura nacional e qual é a expressão real do povo. Agora, o povo é aquilo que o estado decide como sendo o povo brasileiro, a cultura é aquilo que o estado decide o que é a “cultura da maioria”. O belo é aquilo que o estado decide como belo. Ou seja, temos agora mais estado, não menos.

No entanto, em uma democracia real, o estado se abstém de decidir o que é “verdade”, o que é “originário”, o que é “desvio”, o que é “belo” no campo das artes e da cultura. Ele apenas facilita a circulação daquilo que tem dificuldade em circular, seja porque o mercado não se interessa, seja porque as classes hegemônicas não se interessam. E ele não faz isto em nome da “verdade”, dos “valores morais do nosso povo” ou qualquer coisa que o valha. Ele o faz em nome da multiplicidade. Por isto, ele não usa dinheiro público para financiar posições religiosas (que não tem dificuldade alguma em circular pois tem tudo o que necessitam nas mãos: escolas, televisões, radios), não usa dinheiro público para louvar a si mesmo ou para calar os que são descontentes com o próprio estado e com sua própria política. Se alguns acham que isto não ocorria em governos passados, eles deveriam então tentar realizar isto agora, ao invés de construir falácias para justificar seus desejos de mando.

Mas sabemos muito bem que isto nunca ocorrerá porque este tipo de multiplicidade é o inverso de tudo o que o neoliberalismo procura impor. Neoliberais não suportam uma sociedade com contestação. Eles atiram quando o povo mostra seu descontentamento. Por isto, como diz Hayek, preferem um ditador “liberal” (mesmo que isto seja apenas uma contradição falaciosa) a uma democracia sem liberalismo ou seja a uma democracia que não acredita mais no embuste de uma liberdade apenas para os mais ricos.