domingo, 19 de agosto de 2018

Relaxe, é domingo

A refundação necessária

Há formas e formas de encarar situações críticas, e lá diz o poeta que mesmo um copo vazio, bem observado, está cheio de ar. Em meio às agruras presentes, pressentimos, às vezes sem plena e cabal consciência, que a Carta de 1988 é o que impede sobressaltos, como a convocação de constituintes exclusivas para tal ou qual finalidade, especialmente a reforma política - que há de vir, mas por outros meios. Entre candidatos presidenciais bem posicionados, existem os afeitos à ideia de aumentar perigosamente a eletricidade ambiente, tornando-a mais “intensa”, seja qual for o significado disso.

Afinal, vivemos tempos de crise das democracias e os remédios que se aviam em laboratórios de fundo de quintal nem sempre trazem a cura, quando não são, como no caso dos populismos, piores do que o próprio mal.


Paradoxos não faltam. As instituições de controle se ativaram como nunca. Excessos à parte, puseram a nu mecanismos de financiamento político-partidário de cuja existência suspeitávamos, sem ter a exata noção de seu amplo poder corrosivo. Grupos dirigentes inteiros foram chamados às barras da lei, o que desarticulou alguns dos mais importantes partidos da redemocratização e os respectivos projetos de poder. Ao mesmo tempo, o ambiente de terra arrasada daí nascido é o mais propício a aventureiros de todos os matizes, que se alimentam da antipolítica que eles mesmos semeiam, ao se colocarem “contra tudo o que está aí”. Esta é a hora clássica dos demagogos.

Se as instituições de fiscalização vieram para ficar, com suas exigências de controle e transparência, o sistema político reage e se reagrupa como pode. Tem a seu favor o fato óbvio de que não existe democracia sem partidos e sem Parlamento digno do nome.

Velhos comunistas costumavam dizer que a mais medíocre das “democracias operárias” era preferível à mais pujante das “democracias burguesas”. Devemos parafraseá-los em outro sentido: do ponto de vista de uma vida civil moderna, como a que precisa existir no Brasil, não haver democracia parlamentar, verdadeiramente livre e plural, é o pior dos mundos.

Como dissemos, o establishment reage, vale-se das regras de financiamento exclusivamente público, aposta na maior visibilidade dos detentores de mandato, de modo que se vislumbra um nível baixo de renovação do Congresso e das assembleias estaduais. Eppur si muove, e algo como um processo constituinte, nada espalhafatoso, mas quem sabe promissor, pode estar ocorrendo sob nossos olhos. Este processo, distante de qualquer subversivismo rupturista, atinge um dos pilares da vida institucional: exatamente, o sistema de partidos, às vésperas de ser - em parte - racionalizado com a cláusula de barreira já prevista para este outubro.

Regras, quando pertinentes, costumam ser bem mais do que meros artifícios técnicos. Já que o voto é livre e as urnas são imprevisíveis, impossível dizer quantos e quais partidos terão plena existência parlamentar e assim poderão condicionar, positiva ou negativamente, o futuro programa de reformas.

Sabe-se apenas que serão em número bem menor do que as atuais três dezenas. Deixando de lado qualquer previsão minuciosa, aqui propomos um mapa provisório do sistema de forças em surgimento, apontando alguns dos prováveis rumos à frente.

Já temos de nos haver com uma extrema direita competitiva - e agressiva - pela primeira vez desde a redemocratização. O partido ou grupo de partidos que nesta área se firmarem estarão em linha com tendências globais. Não por acaso seu líder se derrama em elogios à figura tutelar de Trump e tenta capitanear uma versão nativa da Christian Right, com “Deus acima de tudo”. Será capaz de dirigir toda a sociedade com base em valores que dificilmente seriam os de uma apregoada “sociedade aberta”?

Partidos tradicionais, como PP, DEM e em certa medida MDB, vivem uma versão peculiar do dilema dos velhos partidos operários, quando se dizia que as ideias deviam vir “de fora” do aparelho partidário.

Veem-se assediados por vozes e movimentos que postulam um liberalismo distante das esferas do Estado, nas quais aqueles partidos se movimentaram até hoje com maestria e conhecimento de causa. A capilaridade que detêm parece condenar ao insucesso as novas vozes, mas, sem estas, organismos tradicionais caducam e morrem, antes de construir suas pontes para o futuro.

Este “centro ampliado”, de resto, é vital para barrar a pretensão hegemônica da ultradireita, mas não basta. A revitalização do PSDB será requisito para dar gravitação a uma frente democrática de novo tipo, com soluções positivas para as urgências econômicas e sociais do País. Nascido de notável constelação de intelectuais e com a vocação de representar as camadas médias modernas, um bom desempenho tucano nas urnas recolocaria o dilema deste partido, a saber, estar no governo e não desaparecer da sociedade. E desta vez sem espaço para o erro.

Tal como da extrema direita, pouco se pode esperar da esquerda dominante, pelo menos por ora. Até por uma questão geracional, teria cabido aos grupos dirigentes do petismo renovar a política e dar-lhe novo fôlego. Aqui, sim, teria sido necessária uma transformação que liquidasse mitos revolucionaristas e impedisse seu reaparecimento, ainda que só para fins de retórica ou de sustentação a toscos projetos externos, como o bolivarianismo. Uma missão que o petismo deixou de cumprir - e sem refletir sobre este descumprimento ele dará mil voltas sem sair do lugar.

Reconectar partidos e ideias - de preferência a ideologias -, ação e programa, sociedade civil e sociedade política requer a decisão de nos pormos nos marcos constitucionais livremente definidos há 30 anos. A República não precisa de refundação; os partidos que deveriam vertebrá-la, sim. Distinguir uma coisa da outra é um dos modos de separar amigos e inimigos da sociedade aberta.

Brasil lida com a ruína venezuelana sem método

Há duas semanas, a ministra Rosa Weber, do Supremo, torpedeou uma ordem de um juiz de primeira instância de Roraima. Mandou desbloquear a entrada de refugiados do derretimento econômico e institucional da Venezuela. Neste sábado, na cidade de Pacaraima, brasileiros enfurecidos atearam fogo em abrigos, barracas e pertences de venezuelanos, obrigando-os a cruzar de volta para o inferno a fronteira que Rosa mandara reabrir. A turba enxotou os refugiados em reação a um assalto violento à casa de um comerciante. Coisa atribuída a quatro venezuelanos.

No despacho em que derrubou a ordem do magistrado de Roraima, Rosa havia empilhado argumentos jurídicos —“A proteção ao refugiado é regra solidamente internalizada no ordenamento jurídico brasileiro”—, ao lado de razões humanitárias —“Fechar as portas'' equivaleria a ''fechar os olhos'' para o drama social que levou 40 mil venezuelanos a se abrigar no Brasil. A decisão de reabrir as portas foi sensata. Falta agora abrir os olhos das autoridades brasileiras, ainda semicerrados. Há no gerenciamento da crise dos refugiados muito gogó e pouco método.


Há dois meses, em visita a Roraima, Temer desfilou para as câmeras num abrigo de refugiados venezuelanos. Declarou: “Estamos mostrando ao mundo este sentido humanitário que o Brasil traz consigo.” Em verdade, o improviso federal e episódios como o surto de ódio deste sábado revelam ao planeta que o amor dedicado pelo Brasil aos seus vizinhos desesperados não é coisa para amadores. Um crime praticado por quatro venezuelanos serve de pretexto para tocar fogo no sonho de centenas. Neste domingo, Temer reúne ministros no Jaburu para rediscutir o exemplo que o Brasil dá ao mundo.

Em nota divulgada neste sábado, o governo de Roraima martelou novamente a tecla que Rosa Weber parecia ter desativado: “A solução para a crise migratória só acontecerá quando o governo federal entender a necessidade de fechar temporariamente a fronteira…” O texto cobrou providências que Brasília prometera adotar no início do ano. Por exemplo: “Realizar a imediata transferência de imigrantes para outros Estados e assumir sua responsabilidade de fazer o controle de segurança fronteiriça e sanitária”.

O governo federal não age, apenas reage. Confrontado com a crise humanitária, faz por pressão o que deixa de realizar por precaução. Temer só esteve em Roraima porque o governo estadual bateu bumbo, exigindo socorro. A engrenagem da União foi mobilizada para atingir três objetivos: fortalecer a presença federal na fronteira, para colocar ordem na chegada; fazer um censo dos venezuelanos; e distribuir os refugiados entre os Estados, tentando aproximá-los de oportunidades de trabalho. A chegada continua desordenada. Não há vestígio dos dados que revelariam o perfil dos refugiados. E a interiorização caminha em ritmo de jabuti tetraplégico.

Durante mais de uma década, sob Lula e Dilma Rousseff, o governo brasileiro bateu palmas para os malucos de Caracas —Chávez e Maduro— dançarem. Nessa época, vigorava em Brasília a diplomacia das empreiteiras, levadas à Venezuela com o dinheiro barato do BNDES. Sobraram os escândalos, o calote no bancão companheiro e a ruína que despeja venezuelanos como detritos no quintal dos países vizinhos.

Lula e Dilma continuam oferecendo demostrações de que são capazes de tudo, menos de dizer meia dúzia de palavras sobre o desastre venezuelano. Sempre que tem oportunidade, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, solidariza-se com o regime de Nicolás Maduro. Quanto aos 40 mil refugiados que escorreram para o Brasil, ainda não se ouviu do PT uma manifestação de solidariedade. E Temer, outra herança do petismo, faz o pior com os refugiados da melhor maneira que pode.

Lula é apenas um 'presodenciável'

Desde o final dos anos 1970, Luiz Inácio Lula da Silva está presente na cena política. Como presidente de sindicato liderou três grandes greves. Todas fracassadas. Porém, aparecia como vitorioso, o dirigente autêntico dos metalúrgicos, mesmo derrotado. Em 1982, ficou em quarto lugar, na eleição para o governo do estado de São Paulo. Mesmo assim, foi considerado o vencedor moral. Tinha na imprensa e na universidade devotos que o transformaram em símbolo maior do novo Brasil que surgia em pleno processo de redemocratização. Candidatou-se à Assembleia Constituinte. Foi eleito com uma grande votação — o PT fez campanha quase que exclusivamente para ele. Era uma forma de registrar que não aceitava qualquer tipo de concorrência, especialmente no “seu” partido. Teve uma atuação pífia na Constituinte. Notabilizou-se pelas noitadas acompanhado de parlamentares, um deles teve papel central na confecção da nova Constituição. Desiludiu-se do Parlamento. Lá tinha de apresentar qualidades que não possuía. Odiava ler, debater e encontrar saídas para as divergências. Desejava — e não conseguia — ser idolatrado. Desprezava ser “apenas” um constituinte.

Candidato à Presidência da República, surpreendentemente foi ao segundo turno, porém não conseguiu enfrentar as tensões daquele momento. No debate final que antecedeu à eleição, foi derrotado pelo seu oponente, Fernando Collor. Mas logo seus seguidores apresentaram outra versão: Lula estava abalado emocionalmente e foi prejudicado pela edição do debate, no dia seguinte, realizado pela emissora que promoveu o evento — o que é uma falácia.

Concorreu e perdeu duas vezes enfrentando Fernando Henrique Cardoso. Como de hábito, as derrotas — as duas no primeiro turno! — foram transformadas em vitórias. Na quarta tentativa, em 2002, apresentou-se com novo figurino. O ídolo tinha descido à terra. Era — momentaneamente — um simples mortal. Venceu. Contou com a ajuda indireta do seu opositor nas duas eleições anteriores que fez corpo mole, desinteressando-se em eleger seu sucessor. Governou despoticamente. Organizou o maior esquema de corrupção da história. Teve como princípio não ter princípio. Cooptou por meio do uso de recursos públicos grande parte da elite política e econômica. Elegeu duas vezes Dilma Rousseff. Graças à Lava Jato acabou na cadeia. Deve por lá permanecer. Hoje é um presodenciável, nada mais.
Marco Antonio Villa

Pensamento do Dia


A bordo

Numa das suas crônicas, o ótimo Antonio Prata lamenta que não é incomum ouvir-se, dentro de um avião, a voz de uma aeromoça perguntando se há um médico a bordo, mas, até hoje, ninguém ouviu uma aeromoça perguntar se há um cronista a bordo. Tenta-se localizar um médico para atender um passageiro que está mal, é óbvio. Mas que emergência exigiria a presença de um cronista no avião? É, Antonio. Como dizia aquela música de alguns anos atrás, a gente somos inútil. Somos espectadores dessa coisa terrível que se convencionou chamar de “isso que está aí”, ou, pior, isso que está se armando nos horizontes da pátria como as nuvens negras de uma ópera wagneriana. Fazer o quê, salvo crônicas?

E vai piorar. A próxima voz de aeromoça que se ouvir no nosso avião metafórico pode estar pedindo mais do que um médico para tratar um doente ou, vá lá, um palhaço ou uma odalisca para distraí-lo. O que, decididamente, ninguém quer ouvir a aeromoça dizer é:

— Tem alguém que saiba pilotar um avião a bordo?

Porque a sensação que se tem é a de estar num avião cujo piloto se jogou pela janela. Né, não?


Consolemo-nos, Antonio, enquanto o pior não vem. Você conhece a história da mãe judia que, no meio de um espetáculo teatral, levanta-se e grita:

— Há um médico na plateia?

O espetáculo é interrompido, três ou quatro médicos solícitos atendem ao chamado da senhora e perguntam o que ela quer. A senhora responde:

— Quero apresentar a nossa Sarinha, 19 anos, um mimo. E também cozinha...

E tem aquela do... Mas não adianta. Não dá para fingir que não vemos as nuvens negras no horizonte. Algumas dicas para sobreviver no temporal que se aproxima: em hipótese alguma assista aos debates políticos, para não se desencantar, não com os candidatos, mas com a espécie humana em geral. Beba muita água. Tenha pensamentos positivos ou, na falta deles, pense na Patricia Pillar. Se os sintomas persistirem, emigre.

O encanto do primeiro dia de escola na Alemanha

Cartão de 1925: "Boa sorte no primeiro dia de escola!"
Entre meados de agosto e o início de setembro, é comum ver crianças carregando cones de papelão coloridos pelas ruas acompanhadas dos pais, outros familiares e amigos. Alguns cones são do tamanho ou até um pouco maiores do que a própria criança. Este é considerado um dos dias mais importantes da vida infantil. É o primeiro dia de aula da primeira série do ensino primário.

A Schultüte é recheada de presentes: doces, artigos escolares, brinquedos, livros, gibis e o que mais a imaginação da família permitir. Cada criança vai à escola carregando o cone, mas só pode abri-lo em casa depois do primeiro dia de aula. É uma tradição de 200 anos na Alemanha para incentivar o início da vida escolar e torná-lo mais doce.

Na Alemanha, o ano letivo começa no segundo semestre. Nesse primeiro dia na escola, as crianças são recepcionadas pelos professores com brincadeiras e apresentações. Os alunos veteranos, geralmente os do quarto ano, também participam das atividades de boas-vindas aos novos estudantes.

Na volta para casa, os pais esperam a criança com um almoço especial, acompanhados dos padrinhos, ou um café da tarde. É então a hora de abrir a Schultüte e curtir todos os presentes.

Os cones podem ser comprados em lojas, mas na maioria dos casos são preparados em casa em família. Os pais compram o papelão para o cone e outros papéis coloridos para confeccionar figuras e o nome do mais novo estudante da família. Algumas escolas convidam os pais para montar o cone no local com a ajuda dos professores.

A mochila é tão importante, que muitas vezes
é dada na Páscoa ou no aniversário, por avós ou padrinhos
Os motivos são variados. Pode ser uma Schultüte em formato de uma aeronave espacial, um cone costurado em tecido com figuras de um jardim, ou enfeitado com figuras da profissão dos sonhos da criança.

O que não pode faltar é criatividade para tornar o primeiro dia de aula um evento inesquecível na vida dos pequenos. A Schultüte simboliza a entrada das crianças na "parte séria” da vida.

É claro que os irmãos mais novos do mais novo estudante podem ficar com ciúme e querer uma Schultüte antes da hora. Meu namorado ganhou o cone no primeiro dia do Kindergarten, o jardim de infância. Mas não ficou satisfeito. A Schultüte do irmão mais velho era bem maior. A espera pelo primeiro dia de aula foi ainda mais ansiosa.

Karina Gomes

Igrejas evangélicas e a internet cumprem função de escola no Brasil popular

Estamos atravessando um momento de polarização de pontos de vista e mesmo assim pouca gente discordaria da afirmação: “A solução para o Brasil é investir massivamente em educação pública de boa qualidade.” Educação é geralmente entendida como o remédio para mitigar a desigualdade que está na raiz de males como a violência urbana.

Eu morei durante 15 meses em um povoado trabalhador na “periferia da periferia da periferia” de Salvador. E aprendi que os maiores promotores da escolaridade no chamado “Brasil profundo” hoje não são as escolas e os professores, mas a Internet e as igrejas evangélicas.

Vou explicar essa afirmação resumidamente neste artigo, mas se você quiser saber mais, leia o capítulo 5 do meu livro Mídias Sociais no Brasil Emergente, lançado pela Educ e disponível a venda em papel ou gratuitamente em PDF.

Entre abril de 2013 e agosto de 2014, vivi em um povoado que vou chamar pelo nome fictício de Balduíno. Eu estava lá como antropólogo fazendo a pesquisa de campo para um projeto de doutorado sobre como o pobre brasileiro entende e usa as mídias sociais.

Sobre o tema da educação, eu aprendi que o acesso ao ensino público em Balduíno mudou radicalmente nos últimos 30 anos.

Os adultos do povoado tiveram à disposição 4 anos de curso, mas seus filhos hoje têm 12 e podem terminar o ensino médio. E o acesso à escola hoje é facilitado por causa de transporte, material e merenda oferecidos universalmente.

Por isso, o número de alunos que nos anos 1980 era de algumas dezenas de crianças passou hoje para mais de 2.000 jovens em um povoado de 15.000 habitantes. E isso inclui aqueles mais vulneráveis que precisam estar matriculados para receber auxílios como o Bolsa Família.

Apesar de todo esse avanço, a escola não é percebida pela maioria das famílias como um lugar para os filhos adquirirem tipos de treinamento para melhorar suas perspectivas profissionais.

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Na verdade, para muitos pais e mães, a escola é apenas uma espécie de creche para seus filhos não passarem o dia desacompanhados nas ruas, no período em que os adultos estão trabalhando. Ou seja, os locais querem ter onde deixar seus filhos, mas não se interessam pelo desempenho deles nas aulas.

Minha pesquisa registrou vários motivos para esse desinteresse:
*Os professores geralmente não moram na localidade e por isso pais e mães têm medo, por não conhecer a vida pessoal desses profissionais, que eles façam mal aos filhos (como predadores sexuais, por exemplo)
*A família popular frequentemente desconfia da consequência da educação formal que, para eles, torna filhos indispostos ao trabalho manual árduo e promove atitudes desrespeitosas às hierarquias familiares
*O currículo das escolas é produzido por educadores de classe média que, por isso, são distantes da realidade e dos valores do mundo popular
*Também professores geralmente trazem valores de classe média que se traduzem em atitudes ofensivas como reclamar abertamente da ignorância de estudantes que "passam anos na escola e não sabem nem ler direito"
A antropóloga Claudia Fonseca escreveu em seu Família, Fofoca e Honra sobre a segregação invisível que existe na sociedade brasileira.

Para ela, os únicos momentos de encontro entre pessoas escolarizadas das camadas médias e altas e o mundo popular se dá nas conversas de manhã com a empregada doméstica e no momento do assalto.

Por causa dessa distância, as camadas letradas percebem o pobre como se ele pensasse e visse o mundo pelas mesmas perspectivas, como se a única diferença entre ricos e pobres fosse a renda.

Mas esse brasileiro é um desconhecido íntimo. Historicamente e praticamente ele vive em outro mundo, com valores morais, normas, gostos e regras sociais e familiares próprias.

Mas se nesse contexto a escola geralmente não é eficiente em seu papel de educar, alguns tipos de conhecimento vem se tornando relevantes e chegam aos segmentos populares via internet e via igrejas evangélicas.

A internet é geralmente demonizada por professores e isso não é diferente em Balduíno. Professores locais acusam as mídias sociais de serem uma distração a mais para estudantes que já não têm muitas motivações para prestar atenção nas aulas.

Mas essas afirmações não levam em consideração alguns aspectos dessa questão:
*A internet é o primeiro motivo que esses estudantes têm para querer e poder praticar a leitura e a escrita fora das escolas. É a primeira geração que tem essa motivação
*Diferentemente do currículo feito a partir de valores alheios àquela realidade, a internet tem fartura de conhecimento relevante como ensinar a consertar um aparelho celular ou aperfeiçoar a técnica para quem é cabeleireiro
*Mais inusitado ainda: o jovem popular melhora sua redação ao usar as mídias sociais porque tem vergonha de ser ridicularizado por seus pares ao cometer erros de ortografia em arenas públicas como a linha do tempo do Facebook ou ao participar de grupos no WhatsApp.

Antes ainda da internet, havia uma situação em Balduíno que motivava a pessoa a aprender a ler e a escrever: passar a frequentar cultos evangélicos.

A igreja evangélica representa uma espécie de estado de bem-estar social alternativo que ajuda quem atravessa momentos difíceis –doença, desemprego, violência doméstica, casos de dependência química na família etc.

Mas, assim como acontece no Facebook, é também constrangedor para quem começa a frequentar essas igrejas perceber que todos ali acompanham o que o pastor está dizendo pelas páginas da Bíblia. Menos esses novatos.

Está na raiz da chamada Revolução Protestante a ideia de que o indivíduo deve ser capaz de ter um vínculo direto com o divino. E isso depende de ele ou ela ser alfabetizado para ler a Bíblia.

Por isso, não é raro que em lugares como Balduíno igrejas evangélicas ofereçam cursos de alfabetização de adultos. E a maioria dos universitários da região vem de famílias evangélicas.
Concluindo

Não estou argumentando aqui que a escola seja inútil. Ou que o poder público deva subsidiar a compra de smartphones e estimular a leitura distribuindo Bíblias.

Em primeiro lugar, eu quis demonstrar que a promoção do ensino de qualidade não depende apenas da abertura de escolas, e que uma parte do desinteresse pela escola vem de a educação disponível levar valores de classe média para estudantes que não são de classe média.

Também mostrei aqui como o constrangimento social –na internet e nas igrejas– tem sido um motivador para brasileiros das camadas populares darem o salto para usar cotidianamente a leitura e a escrita.

Há, nesse cenário, dois desafios. Em vez de alfabetizar o brasileiro popular a partir das nossas referências, podemos nos alfabetizar como educadores e cientistas sociais na farta bibliografia que existe sobre o Brasil popular. E se houver uma prioridade a ser estabelecida: ela seria formar professores das camadas populares para trabalhar nos bairros em que esses profissionais já vivem e são conhecidos.

Juliano Spyer