segunda-feira, 17 de abril de 2017

A face cruel

Apesar de ofuscada pela divulgação da lista da Odebrecht, a prisão do ex-secretário de Saúde de Cabral não me surpreendeu. Desde 2010, quando imaginei poder competir com essa gigantesca e sedutora máquina de corrupção, apontei, diretamente, para os desvios na Saúde. Minha ideia era simples. Havia corrupção em toda a parte, mas era preciso priorizar as denúncias. Na Saúde, a corrupção mata. É mais fácil passar a mensagem, embora em outros setores ela também produza grandes estragos.

A variedade de escândalos, desde aluguéis de carros que valiam mais do que os próprios carros, ao superfaturamento da compra de material elementar, como gaze, até equipamentos complexos, não deixava dúvida: roubava-se em tudo. No fundo, todas as pessoas informadas estavam alertas como a vizinha de Sérgio Côrtes, na Lagoa. Ela pediu ao porteiro que a acordasse, a que hora fosse, quando a Polícia Federal viesse prender o assecla de Cabral. O interessante nas gravações reveladas pela Lava-Jato é constatar como a equipe de Cabral pensa, agora que foi descoberta. Sérgio Côrtes queria combinar uma delação premiada com o cúmplice, tomando o cuidado de omitir as cifras roubadas, senão teria que devolver o dinheiro. A condenação pública e a própria cadeia não são os fatores que preocupam Côrtes, mas, sim, uma fórmula de reter o dinheiro acumulado. Tudo de valor que poderia ter sido apreendido em sua casa foi vendido, inclusive obras de arte. Para que servem as obras de arte, senão para serem convertidas em dinheiro? Por isso são compradas pelos corruptos brasileiros. Na verdade, a prisão de Côrtes não surpreendeu a ninguém, nem mesmo a ele. A demora serviu apenas para que se preparasse e salvasse um pouco da grana, uma vez que sempre contam com cadeia curta.

A lista da Odebrecht saiu num momento difícil para mim. Meu avião partia às 6h para Roraima. A opção era dormir ou pesquisar todos os detalhes dos pedidos de inquérito. Matérias tão amplas e vazadas parcialmente acabam trazendo um pouco de confusão. É o ônus do mundo on-line. Lula e Dilma não estavam na lista. Não têm foro privilegiado. Mas alguns admiradores que, no passado, defendiam-nos com o argumento de que todos recebiam dinheiro foram um pouco mais longe: insinuaram, agora, que todos, menos o Lula e a Dilma, receberam. São um espanto.


O tempo vai mostrar que o sistema político brasileiro sofreu um grande baque, e só sua renovação interessa. A esquerda sonha com a vitória de Lula porque acha que vitória na eleição absolve. Nesse quadro mental, a aplicação das leis passa pela contagem de votos. É um caminho para a instabilidade, porque processos legais seguem seu ritmo. Urnas não lavam um passado de crimes. Da mesma maneira, o PSDB terá que reduzir seu leque de candidatos. Os que foram denunciados pela Odebrecht estariam sujeitos também à mesma instabilidade no poder. A diferença entre os dois partidos é o fato de a esquerda se apoiar apenas no nome de Lula. Como é um líder carismático, milhares acreditam nele, mesmo com tantas evidências contrárias. A estratégia é vencer as eleições para escapar da prisão. No caso do PSDB, sem líderes messiânicos, os eleitores tendem a se comportar de uma forma mais severa. Uma candidatura, apenas para se salvar da polícia, seria tão desastrosa que morreria ao nascer. Não foi apenas o quadro da eleição presidencial que se abalou com as delações da Odebrecht. Foi todo o sistema partidário, o modo de fazer eleições — esses temas que já estavam no ar antes da aparição da lista.

Os jornalistas pediram tempo de análise, diante de tantos nomes e fatos surgidos na delação da Odebrecht. Apesar da rapidez que a tecnologia impõe, faria bem a todos que discorrem sobre o tema ler com cuidado toda a massa de informações. Por isso, divido a prisão de Côrtes com a lista. Esta última ainda merece reflexão e debate, algo difícil para mim agora, trabalhando na fronteira com a Venezuela. O caso de Côrtes e da quadrilha de Cabral, no entanto, é um terreno mais seguro. Algumas pessoas costumam dizer que não se alegram com a prisão do outro. Compreendo que sejam assim, mas seria falso admitir esse sentimento em mim. Certas prisões me alegram. Pessoas que roubam na Saúde, superfaturam remédios e próteses, inventam desnecessárias cirurgias e ficam podres de ricas com isso, merecem cadeia. Muitos anos de cadeia.

A sofrida população do Rio, por exemplo, os milhares de rostos anônimos, de corpos doloridos jogados em macas nos corredores dos hospitais, todos estão incluídos no conceito de ser humano. E às vezes escapam dos radares dos autointitulados progressistas que votaram em Cabral, com a bênção de Lula. Vivemos um momento pantanoso, o país precisa de tolerância e alguma unidade para enfrentar seus problemas. Mas existe uma linha divisória incontornável. Os brasileiros precisam responder qual é o seu lado: o de quem roubou ou de quem foi roubado.

Fernando Gabeira

O mal infinito

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O bem que o Estado pode fazer é limitado; o mal, infinito. O que ele pode nos dar é sempre menos do que nos pode tirar
Roberto Campos

Salvem os palhaços

Em detalhes, explicaram como o circo foi montado. Narraram a subida da lona, tendo como mastro a certeza da impunidade. Não foram econômicos na descrição do espetáculo. Apontaram o dono do circo. Descreveram as atrações. Anunciaram os personagens. Revelaram os bastidores do picadeiro.

Sorrindo sempre, falaram de tudo. Mas tiveram o cuidado de não dar nome aos palhaços. Poderiam nos ofender. Mais ainda.

Foi overdose. Gravações, vídeos, imagens, documentos, tudo à disposição, exposto em praça pública. Não faltam opiniões, analises, comentários. Acompanhar tudo isso é trabalho para tempo integral. Impossível para aqueles que, por desenho, destino, ou desejo são obrigados a trabalhar para ganhar a vida.

Ouvindo tudo, ou um pouco, dependendo do tempo disponível e da força do estomago de cada um, vem os sentimentos naturais. Revolta, náusea, indignação, desejo de justiça. Tudo isso. De tudo um pouco. Ou melhor, de tudo, um muito.

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Passada a reação inicial, não dá para esconder o arrependimento. Nosso, claro. Arrependimento de não tomar atitudes no momento certo. Das mais simples as mais trabalhosas. De votar a protestar. De apoiar a controlar. A verdade é que fizemos muito pouco para evitar o desastre. Como, aliás, é natural em lugar que trata improvisação como qualidade.

De todos os arrependimentos, talvez um dos maiores tenha sido levar a sério o que diziam os donos do picadeiro. Quanto tempo perderam os analistas econômicos e políticos discutindo as orientações ideológicas de cada medida, argumento, ou política econômica. Foi desperdício de tempo, tinta, papel, pixels. Nem direita, nem esquerda. Eram simplesmente uma questão de preço.

As revelações merecem arrependimento maciço nas redes sociais. Tanta energia gasta sem sentido, defendendo este ou aquele personagem. Desentendimentos desnecessários. Inúteis por natureza. Amizades perdidas. Talvez não seja tarde demais para reata-las.

Alguns argumentam que está melhorando. Dizem que as instituições funcionaram ou funcionam. Visão otimista. Nesta altura, o máximo que dá para dizer é que o circo pegou fogo. Com a lona em chamas, os donos do circo se desesperam. E muitos são carbonizados pelas chamas.

Mas atenção. Todo o cuidado é pouco nesta hora. É bom não se animar. O enredo ainda é imprevisível.

Não está claro se os palhaços morrem no fim.

Como é que fica? Ou não fica?

Há 418 políticos, de 26 partidos, só na lista do Facchin, envolvidos na contravenção da Odebrecht, e um terço deles, segundo os jornais, dobrou o patrimônio, em 15 anos, quando não triplicou, quadriplicou e aumentou em enésimo valor o que possuía quando assumiu cargos. Tudo com as benesses de um caixa 2 pródigo de apenas uma grande empresa, quando ainda há outras prontas a dedurar ainda mais a ladroagem pública.

Os números deixam de cabelo em pé mesmo notórios corruptos da história, que lamentam não ter conseguido tanto e ainda menos prestigiado tão imensa folha de correligionários.

Paixão

Ninguém tem ainda como levantar o prejuízo do país com a enxurrada de quantias imensamente expressivas mesmo para os maiores bilionários da lista da Forbes, que nunca conseguiram tanto sucesso em tão pouco tempo de trabalho.

Serão anos para se dimensionar o prejuízo provocado pela corrupção endêmica protagonizada pelos anos de desvario criminoso. E se está apenas no começo do levantamento das fortunas desviadas do contribuinte para bolsos privados da ratatuia.

Até lá haverá sofrimento e quem pagará? Em tempos não tão politicamente corretos, seria caso de se pedir cabeças. No entanto, apontam juristas, o país tem a mais moderna legislação para punir corruptos inclusive em cumprimento à exigência internacional de combate ao terrorismo. Não é consolo para um país de violentados em seus direitos por assalto político ao cofre de todos, nem garantia de aplicação máxima da lei - aqui sempre em doses menores conforme a escala social.

Há ampla movimentação, e se revela na mídia, para que muitos criminosos sejam absolvidos pela prescrição ou faltas de provas, independente do evidente enriquecimento ilícito e do conluio com a corrupção, que até hoje não foi enquadrada como assassinato, no caso público, por seu alto teor de criminalidade.

O que vem por aí, depois da tempestade de delações, infelizmente, deve ser mesmo uma anistia só não é estendida ao contribuinte, que continuará a pagar bem caro pelo enriquecimento ilícito dos políticos. Tudo em nome de que é preciso haver políticos, como se só estes que aí estão são os únicos no mundo. Pena haver um país que precisa salvar políticos criminosos em nome da tão discutível governabilidade.
Luiz Gadelha

Gente fora do mapa

More street photography...:

Mar de lama

No dia 5 de Novembro de 2015, a barragem do Fundão, da empresa Samarco Mineração, em Mariana, Minas Gerais, rompeu, lançando um mar de lama com resíduos tóxicos que arrastou tudo e todos no seu caminho. Povoações inteiras foram arrasadas, campos e rios contaminados, e pelo menos duas dezenas de pessoas morreram, naquele que se configura como o maior desastre ambiental do Brasil.

As delações da Odebrecht no âmbito da operação Lava Jato, reveladas a semana finda, têm, em termos simbólicos, efeito não menos devastador.

Em depoimentos gravados, os mais altos responsáveis (Emílio e Marcelo Odebrecht) e dezenas de executivos da empresa expõem – por vezes com espantosa candura - um universo de corrupção que ultrapassa tudo o que a antiga musa canta.

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O último cômputo das verbas implicadas rondaria os 3,3 mil milhões de dólares – aproximadamente 10 mil milhões de reais – distribuídos pelos mais diversos partidos (do poder e da oposição), quer para financiar campanhas eleitorais, quer para literalmente comprar medidas legislativas – da presidência ou do parlamento - favoráveis à empresa.

Dos municípios e órgãos locais ao parlamento e governo da república, passando por governadores e executivos estaduais – é todo o aparelho do poder no conjunto do país que aparece, num ou noutro grau, de alguma forma comprometido.

Para gerir tudo isso, a Odebrecht tinha até um departamento de operações especiais, que distribuía as verbas e fazia a contabilidade, atribuindo a cada político envolvido um nome de código de acordo com alguma característica distintiva particular.

E não foi só a Odebrecht que sustentou essa captação do interesse público pelo interesse privado – outras grandes construtoras - OAS, Andrade Gutierrez, Dersa... - aparecem também envolvidas, financiando políticos em troca de licitações marcadas, pagando percentagens sobre grandes negócios dentro e fora do Brasil.

O fenómeno é tão vasto que outras revelações poderão ainda estar pela frente. Eliana Calmon, juíza aposentada do Superior Tribunal de Justiça e ex-corregedora nacional de Justiça, prevê inclusive que o próprio Judiciário acabará por ser envolvido.

Segundo ela, a Lava Jato só não o fez ainda por uma questão de estratégia, para não prejudicar as investigações em curso. “Muita coisa virá à tona” – previu Calmon, que em 2011, quando ainda corregedora, afirmou que havia bandidos escondidos atrás da toga. “De então para cá – afirmou – as coisas não melhoraram”.

É um verdadeiro mar de lama exposto aos olhos do país inteiro, que assiste, atónito, pela rádio e pela televisão, a sucessivas denúncias, qual delas a mais comprometedora.

E praticamente ninguém escapa: estão denunciados uma dezena de ministros do núcleo duro do atual governo, bem como nada mais nada menos que cinco ex-presidentes - Sarney, Collor, FHC, Lula e Dilma – além dos atuais líderes do Senado e da Câmara dos Deputados.

Temer, o atual chefe de Estado, também foi citado nas delações, e só não será de imediato investigado porque goza de imunidade temporária: enquanto estiver na presidência não poderá ser julgado por actos praticados antes do exercício do cargo.

O leque de políticos envolvidos é tão amplo e o seu número tão grande, que não dá para acentuar culpas neste ou naquele - todos são de uma forma ou de outra igualmente responsáveis.

A aparente facilidade com que – segundo as denúncias - praticamente todos se envolveram, em maior ou menor medida nos esquemas de financiamento ilícito parece indicar que esse modus faciendi estava (está) profundamente enraizado, sendo encarado como quase natural por aqueles que nele participa(va)m.

Os efeitos imediatos desta enxurrada são claros – o governo, já de si muito contestado por defender mudanças impopulares (contenção de despesas, aperto fiscal, aumento da idade da reforma, liberalização das leis laborais...), terá ainda maior dificuldade para as concretizar.

Por outro lado, os nomes apontados para concorrer às presidenciais de 2018 – do ex-presidente Lula, pelo PT, ao senador Aécio Neves ou ao governador de São Paulo Geraldo Alckmin, pelo PSDB, passando pela ex-senadora Marina Silva, da Rede, poderão estar comprometidos, abrindo assim caminho a nomes mais marginais – como os do ex-ministro Ciro Gomes, à esquerda, ou do militar na reserva e atual deputado pelo PP, Jair Bolsonaro.

Mas o mar de lama da corrupção, se não for debelado (e não basta mudar nomes), pode ter efeitos mais profundos e deletérios sobre todo o sistema político.

Sendo manifestamente um grave problema sistémico, só com uma profunda reforma política, quiçá até uma nova Constituição - revendo todo o financiamento dos partidos e respectivas campanhas eleitorais - poderá ser eventualmente reparado.

Sob pena do já grande descrédito da classe política se acentuar ainda mais, pondo em perigo a própria democracia.

No que respeita ao meio ambiente, as consequências do desastre de Mariana de 2015 estão longe, ainda hoje, de terem sido ultrapassadas. Sê-lo-ão as da política, a tempo de se evitar o pior?

Desorientados na avalanche

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Nunca tivemos tantos meios de informação ao nosso alcance, mas, paradoxalmente, duvido que já tenhamos estado tão atordoados e desorientados quanto estamos agora sobre o que deveria ser feito, em nome da justiça, da liberdade, dos direitos humanos, em boa parte das crises e conflitos que afligem a humanidade
Mario Vargas Llosa

Os ganhos com o saneamento

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O atendimento de 100% da população com água tratada e com coleta e tratamento de esgotos reduziria substancialmente o número de internações na rede do Sistema Único de Saúde (SUS) por infecções gastrointestinais, diminuiria ainda mais o índice de mortalidade infantil e eliminaria graves problemas de saneamento básico que ainda afetam milhões de brasileiros. Esses esperados impactos positivos do saneamento básico na saúde pública e nas condições de vida da população já deveriam ter estimulado os gestores públicos a concentrar mais recursos na construção ou ampliação de redes de água e de coleta de esgotos e nos sistemas de tratamento dos resíduos, para que a universalização desses serviços seja alcançada em 20 anos, como prevê o plano nacional para o setor lançado em 2014. Mas há outros possíveis benefícios que igualmente justificam a aceleração dos planos de saneamento básico no País. Além dos efeitos sociais óbvios, o atendimento de toda a população com sistemas públicos de água e esgotos propiciaria resultados financeiros que o Instituto Trata Brasil estima em mais de R$ 500 bilhões em 20 anos.

Formado por empresas do setor, o Trata Brasil vem fazendo estudos periódicos sobre a situação do saneamento básico no País que mostram a lentidão da melhora dos índices de atendimento da população, a escassez dos recursos investidos nos sistemas de água e esgotos e as dificuldades para alcançar a universalização dos serviços no prazo estabelecido pelo plano nacional para o setor. Estudo divulgado no início deste ano, com dados até 2015 – os últimos disponíveis –, por exemplo, deixa claro como será difícil cumprir a meta no prazo previsto, por causa da morosidade das obras e da timidez dos investimentos.

Entre 2007 – ano em que foi sancionada a Lei do Saneamento Básico, que unificou a legislação para o setor com o objetivo de criar um marco que estimulasse e balizasse os investimentos – e 2015, a população atendida por sistemas públicos de água passou de 80,9% para 83,3%. Embora o índice de cobertura seja relativamente alto, o avanço é muito lento para prever a universalização até 2033. Já o índice de atendimento com coleta de esgoto evoluiu mais depressa, de 42% para 50,3%, mas continua miseravelmente baixo, a imensa distância da universalização. Mais baixo ainda é o índice de tratamento do esgoto, que passou de 32,5% para 42,7%.

Estimativas citadas com frequência pelas autoridades do setor são de que o custo para a universalização dos serviços de água, esgoto, drenagem de águas pluviais e manejo de resíduos sólidos em 20 anos alcance cerca de R$ 500 bilhões. Para a universalização de água e esgoto, estimam-se investimentos de R$ 303 bilhões.

O mais recente trabalho do Instituto Trata Brasil sobre os custos e os benefícios da universalização acrescenta aos investimentos (que estima em R$ 316,8 bilhões, pouco acima do valor geralmente citado pelo governo) o aumento das despesas familiares com as tarifas de água e esgotos, chegando ao total de R$ 537 bilhões.

O trabalho estima também os benefícios decorrentes da universalização, como a redução das despesas com saúde, os ganhos da produtividade do trabalho decorrentes da melhora das condições físicas e de habitação das pessoas, a valorização imobiliária e a renda propiciada pelos investimentos na expansão da rede de água e esgoto. O valor a que o trabalho do instituto chega é de pouco mais de R$ 1 trilhão nos próximos 20 anos. Feitas as contas, a universalização, de acordo com o estudo, propiciaria a diferentes beneficiários ganhos superiores a R$ 500 bilhões no período. Seriam os efeitos financeiros diretos e indiretos do atendimento de toda a população com rede de água e sistemas de coleta e tratamento de esgotos.

Independentemente de sua dimensão monetária, porém, qualquer desses benefícios somente será alcançado se os administradores públicos, nos três níveis de governo, tiverem consciência da necessidade e, em particular, da urgência de estender a rede de saneamento básico. Não é isso, infelizmente, o que se tem visto.

Odebrecht anuncia o epitáfio do mito: 'bon vivant'

As ruas já haviam descanonizado Lula em 2015, quando um gigantesco boneco do morubixaba do PT, vestido de presidiário, passou a ornamentar os protestos contra a corrupção. Os delatores da Odebrecht providenciaram o enterro do mito ao confirmar que Lula deixou mesmo o socialismo para cair na vida. E o dono da empreiteira, Emílio Odebrecht, pronunciou algo muito parecido com um epitáfio: “Bon vivant”.

Um dos principais provedores dos confortos de Lula, Emílio evocou no seu depoimento à força-tarefa da Lava Jato uma frase que diz ter ouvido do general Golbery do Couto e Silva, criador do SNI e chefe do gabinete militar nos governos Ernesto Geisel e João Figueiredo: ''Emílio, o Lula não tem nada de esquerda. Ele é um bon vivant.''

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Em 1968, já lá se vão 49 anos, Lula foi atraído para a militância trabalhista pelo irmão mais velho: José Ferreira de Melo, o Frei Chico. Nessa época, Lula tinha 25 anos. Com a velocidade de um raio, virou diretor de sindicato. Frei Chico era militante do Partido Comunista. Imaginou-se que Lula se enrolaria na mesma bandeira. Engano.

Em entrevista registrada no ótimo livro “Lula, o Filho do Brasil”, da jornalista Denise Paraná, o pajé do PT afirmaria muitos anos depois: ''A minha ligação com o Frei Chico é uma ligação biológica. Ou seja, um negócio evidentemente de irmão para irmão. Não tinha nenhuma afinidade política com Frei Chico.''

Com Emílio Odebrecht, Lula desenvolveu um relacionamento fisiológico-patrimonial, do tipo uma mão suja outra. Coisa tão profunda que acabou virando matéria-prima para a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba. Suprema ironia: além de forrar a conta bancária de Lula com os milhões das pseudo-palestras e de providenciar confortos como a reforma do sítio de Atibaia, a Odebrecht bancava até uma mesada de R$ 5 mil mensais para o ex-comunsita Frei Chico.

Depois que Lula declarou que, “se a Odebrecht resolveu dar R$ 5 mil de mesada para Frei Chico, o problema é da Odebrecht”, ficou todo mundo desobrigado de fazer sentido no Brasil. O próprio Lula abusou do vale-tudo semântico ao desafiar qualquer empresário a dizer que ele pediu cinco centavos ou dez centavos em benefício próprio. A conta roda na casa dos milhões, não dos centavos.

Na época em que o Brasil ainda era um país lógico, ''lealdade'' e “ética” não eram sinônimos de ''submissão'' e ''conivência”. Nesse tempo, políticos sérios eram leais aos interesses da sociedade, não às conveniências negociais da Odebrecht.

No livro “A Ditadura Acabada”, quinto volume da extraordinária obra do repórter Elio Gaspari, há um relato sobre a passagem de Lula pela cadeia. Deu-se em 1980, nas pegadas de uma greve que eletrificou o ambiente no ABC paulista. Gaspari obteve a transcrição do interrogatório de Lula.

Verificou-se que o oficial que o inquiriu tinha uma enorme curiosidade. Queria porque queria saber se o preso, na época um líder sindical de mostruário, reunira-se secretamente com Golbery. Lula respondeu que jamais estivera com o general. Supondo-se que disse a verdade, o bruxo da ditadura, mesmo sem conhecê-lo pessoalmente, soou premonitório no comentário feito ao dono da Odebrecht: ''Emílio, o Lula não tem nada de esquerda, é um bon vivant.''

Nos 13 anos que o PT passou no poder, Lula fez consigo mesmo o que seus inimigos tentavam há quatro décadas, sem sucesso: desmoralizou-se. Ofereceu em holocausto, em altares como o da Odebrecht, o maior patrimônio que um político pode almejar: a presunção de superioridade moral. Foi para o beleléu aquela aura de diferença heróica que o distinguia. O mito morreu. Reluz sobre a lápide, com o patrocínio da Odebrecht, o epitáfio constrangedor: “Aqui jaz um bon vivant”.

Imagem do Dia

Praia vermelha em Panjin, China, no pântano do delta do rio Liaohe.:
Pântano no delta do rio Liaohe, em Panjin (China)

Na corrupção, a Odebrecht acabou comprando parte do poder do país

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Esta é a constatação – ao mesmo tempo chocante e revoltante – que parte da população brasileira faz, ao assistir a reprodução dos videos em que aparecem delatores da Odebrecht revelando com a maior naturalidade ao subornos que pagaram no mar da corrupção que atingiu o país. Observa-se que o comportamento tanto dos subornadores como dos subornados refletia uma prática normal, comum. Com a maior insensibilidade, pessoas dos campos políticos e administrativos procuravam os dirigentes da empresa para oferecer seus serviços. Tudo isso que veio à tona expõe uma situação degradante.

O patriarca Emílio Odebrecht, ao depor perante o Ministério Público, chegou ao ponto de dizer que os casos de suborno eram uma ajuda que a empresa proporcionava àqueles que a procuravam oferecendo trocas compensatórias. Isso de um lado. De outro, um dos ex-executivos da Odebrecht calculou na escala fantástica de 3 bilhões de dólares a soma aproximada do total das concessões.

O que os delatores não dizem, pelo menos não disseram até o momento, foi o montante dos sobrepreços e superfaturamentos que constituíram a fonte dos sombrios desembolsos. Não é difícil calcular. Pelo menos custaram o dobro dos pagamentos feitos para consolidar e conquistar obras públicas.

O ex-presidente da empresa Emílio Odebrecht, ao depor, assumiu uma posição de um homem cordial e bondoso. Mas esta é uma outra questão. No fim de tudo, a Odebrecht vivia irrigando seus campos de operação através de canais que atraiam cada vez mais candidatos a receber dinheiro ilícito. O perfil psicológico do simpático patriarca não exclui a empresa dos crimes de que participou.
 A corrupção assumiu um caráter avassalador e, como era de prever, atingiu a Previdência Rural. Reportagem de Geralda Doca, em O Globo de domingo, focaliza esta questão com base em dados da própria Previdência Social. Em quatro anos, 37 mil benefícios foram cancelados, por serem falsos custando 406 milhões de reais. A atuação do INSS no meio rural tornou-se extremamente vulnerável com a distribuição a torto e a direito de aposentadorias pelo menos duvidosas.

Este é um tema só agora abordado pelo próprio Ministério e que ilumina uma face oculta do sistema. Portanto qualquer reforma da Previdência tem que começar a partir deste ponto, ao invés de restringir direitos consolidados.
O Brasil vive um período extremamente crítico e que inevitavelmente terá que expor fatos concretos e respectivas responsabilidades. As ondas estão batendo forte demais na estrutura política e administrativa do país. A corrupção desvendada mostra bem o atraso que atingiu a sociedade brasileira. Os culpados estão surgindo e nesse processo o país terá que adotar um novo comportamento.

No presente e para o futuro.

A fome dos crocodilos

A conversa animal se deu entre dois gigantes, na era pré-­Dilma. O presidente da maior empreiteira, Emílio Odebrecht, disse ao pai dos pobres, Lula, o presidente mais popular do Brasil: “Seu pessoal está com a goela muito aberta. Eles estão passando de jacaré a crocodilo”. Os crocodilos são maiores, mais pesados e de focinho mais longo que os jacarés, e seu quarto dente do maxilar inferior aparece mesmo com a boca fechada. Diz-se que crocodilos não existem no Brasil. Parece que sim. Saíram do Planalto Central. Rastejam.

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Seria menos penoso para nosso país carcomido se os crocodilos fossem apenas vermelhos ou azuis, se pertencessem a só uma espécie. Seria mais fácil erradicá-los. Mas as delações de 77 executivos da Odebrecht – incluindo a mais explosiva, do ex-presidente da empresa, Marcelo, preso há quase dois anos pela Operação Lava Jato – expõem a crocodilagem do sistema político brasileiro. A cada mordida de 98 políticos e aliados, milhões de reais ou dólares passaram de mão em mão, de conta em conta, de gaveta a mochila. Os crocodilos são insaciáveis.

Nem percamos tempo com a declaração bombástica do empresário de que “não existe eleito no Brasil sem caixa dois”. Dois terços dos casos investigados se referem a corrupção mesmo, não a caixa dois. Atingem oito ministros, 24 senadores e 39 deputados, além de governadores e ex-presidentes. Os casos mais chocantes envolvem venda de medidas provisórias e propinas em obras para favorecer a empreiteira.

Michel Temer não pode ser investigado por ser presidente da República e ter imunidade. Mas foi acusado pelo executivo Márcio Faria de presidir em seu escritório de vice-presidente uma reunião em julho de 2010. Segundo Faria, Temer delegou a Eduardo Cunha e Henrique Eduardo Alves a missão de pedir da Odebrecht 5% de um contrato internacional de US$ 800 milhões da Petrobras. Temer se ausentou entre a sobremesa e o cafezinho. Foram US$ 40 milhões de propina.

Os casos mais prosaicos envolvem mimos para parentes, como a mesada de R$ 5 mil para um irmão de Lula, o financiamento para o filho de Lula criar uma liga de futebol americano (que não deu em nada) e o pedido pessoal de Lula para financiar o estádio de seu time de coração, o Corinthians, cujo valor dobrou de R$ 400 milhões para R$ 800 milhões para servir de sede para a Copa do Mundo. É surreal escutar isso no Brasil de hoje.

O ministro de Lula e Dilma Guido Mantega usou o expediente de escrever “50” num papel e mostrar para Marcelo Odebrecht, já sem ousar pedir de viva voz R$ 50 milhões para a primeira campanha de Dilma Rousseff em 2010. Também redigiu a letra “V”, pedindo dinheiro para João Vaccari Neto, então tesoureiro do PT. Era só o começo, porque depois pediu mais R$ 100 milhões. Segundo Emílio Odebrecht, não dava para chamar essas solicitações de “pedidos”. Eram “exigências”. Em troca, a Odebrecht levava vantagem nas obras e nas isenções fiscais. O montante desses acordos choca a nação.

Deve ser complicado um ministro da Fazenda e do Planejamento não poder falar o que quer, com medo da prisão. Mantega chama os vídeos e áudios das delações de “vazamentos criminosos”. Não são. São autorizados pelo Supremo Tribunal Federal. Deve ser complicado para Dilma ver, na televisão, Marcelo Odebrecht dizer que ela sabia de tudo. Não que restasse alguma dúvida na imensa maioria da população. Mas deve doer. Mexeu com ela. Mexeu com o Lula ouvir que Dona Marisa pediu a reforma no sítio de Atibaia, que custou R$ 700 mil segundo Marcelo Odebrecht.

Deve ser complicado para o senador Aécio Neves, do PSDB, aquele mineirinho que um dia sonhou em ser presidente do Brasil, ouvir seu grande amigo Marcelo dizer que ele pediu e recebeu pelo menos R$ 50 milhões em troca de vantagens indevidas para a Odebrecht na área de energia. Fica clara, na delação gravada, a simpatia de Marcelo Odebrecht por Aécio, que ele considerava “o futuro” do país. Os tucanos passados, entre eles o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, também não foram poupados.

Pode parecer mesmo o fim do mundo. Talvez não. Se juntarmos a lista do relator da Lava Jato Edson Fachin à Operação Fatura Exposta no Rio de Janeiro, com a prisão da quadrilha encabeçada pelo médico e ex-secretário de Saúde Sergio Cortes – acusado do crime hediondo de subtrair R$ 300 milhões de doentes –, torço para o país estar velando um defunto em decomposição.

Aqui jaz o velho Brasil. Trinta anos de uma República corrompida. O sentimento é de luto, mais que indignação. Mas só uma democracia consegue desvendar tanta sujeira. Por enquanto, são inquéritos. Que se condenem os crocodilos culpados. Que o dinheiro do roubo seja repatriado. Que nasça um novo Brasil. Boa Páscoa para quem tem consciência limpa.

A falácia que pesa no bolso

A mão pesada do Estado tem colocado, frequentemente, o brasileiro contra a parede para dissipar ainda mais a renda familiar por meio de aumento ou criação de impostos. Nessa linha, o atual ministro da Fazenda protagoniza um jogo de tentativa e erro em busca da melhor chance de empurrar goela abaixo dos contribuintes uma nova CPMF ou elevação dos tributos já praticados.

O argumento do ministro é que, sem elevar os impostos, a meta fiscal do ano será descumprida e, por isso, haverá prejuízo para o Brasil. Trata-se de uma falácia que a OAB enfrentará na Justiça e com uma campanha nacional, como a que fez no governo anterior contra a CPMF em parceria com mais de 100 entidades representativas de diversos setores da sociedade.

Fica de fora da conta do governo o fato de o brasileiro já arcar com uma das mais altas cargas tributárias do mundo sem ter, em contrapartida, acesso a serviços públicos de qualidade. Os serviços, na verdade, estão longe do nível mínimo aceitável justamente por falta de investimento em estrutura e recursos humanos para áreas fundamentais como saúde, educação e segurança.

Curioso é que, só neste primeiro trimestre, nós brasileiros já pagamos mais de R$ 545 bilhões em impostos, segundo estimativa da Associação Comercial de São Paulo no famoso Impostômetro. No ritmo atual, até dezembro, teremos transferido aos cofres geridos pelo governo cerca de R$ 2,2 trilhões. Em 2016, foram mais de R$ 2 trilhões.

É preciso esclarecer ainda que sucessivas gestões federais têm camuflado o aumento do Imposto de Renda, sem transparência com a população. Isso acontece porque a tabela do IR não é atualizada — a defasagem supera os 80%. Quem deveria ser isento paga. E os demais pagam mais do que deveriam.

O que acontece então com a montanha de dinheiro que entra nas engrenagens públicas?

Grande parte é bem empregada. A explicação da falta de dinheiro para os setores essenciais e para o cumprimento da meta está na outra parcela, também robusta, muito mal gerenciada.

Só a corrupção corrói algo em torno de R$ 200 bilhões anuais. Por outro lado, no fim de 2016, a Operação Lava-Jato, considerada a mais bem-sucedida no combate ao colarinho branco, tinha conseguido reaver pouco mais de R$ 500 milhões dos muitos bilhões desviados. O Brasil precisaria fortalecer a prevenção à corrupção para combater esse mal com eficácia.

Outro ponto é a sonegação fiscal que, neste ano, já subtraiu mais de R$ 135 bilhões do país, segundo estimativa do Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda. Como a meta do governo é fechar o ano com R$ 139 bilhões negativos, dotar os órgãos de combate à sonegação de estrutura adequada resultaria num montante capaz de cumprir a meta e fechar no azul, como é desejável em qualquer engrenagem eficiente.

Isso leva a outro ponto: a urgência de aumentar a eficiência do Estado. Muitos projetos gestados na máquina pública fracassam e, com eles, centenas de milhões de reais são desperdiçados. Aumentar o grau de profissionalização da estrutura, reduzindo o número de cargos de indicação política é um bom começo para liberar verba para as áreas que precisam.

Em vez de tirar mais dinheiro dos cidadãos, o governo deveria pensar em gastar melhor a enorme quantidade já arrecadada, combatendo males como a corrupção e a ineficiência.

Paisagem brasileira

Edgar Walter

Aula do profe$$or

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Não quero que vocês deixem de dar notícia, só não quero que vocês fiquem explorando a notícia
Emílio Odebrecht, "professor" em doar propina à impren$a

O famigerado Caixa 2 ou a tolerância delitiva

Há alguns decênios se ouve falar em Caixa 2 em campanhas eleitorais. Muitos não se deram ao trabalho de investigar o conceito. É abstrato e muito fluido. Os atores desta algaravia contábil é que sabem precisar a profundidade da farsa.

Agora, com a investigação promovida pelo Ministério Público Federal acolitado pela ágil Polícia Federal, é que os brasileiros ficaram conscientes da extensão deste dano moral, cívico e legal que representa o Caixa 2, e se aperceberam de que, de fato, ele existe, e tem muito mais de concreto, material (e nocivo) do que imaginava nossa vã inocência.

Pois é, o patriarca da Odebrecht (hoje ela monopoliza o noticiário), com sua autoridade de empresário vitorioso, com largos anos de janela – empreiteiro engalanado mundo afora – sem o mínimo constrangimento ante uma inquisição do investigador destas tramoias, disse, com todas as letras, que o uso do Caixa 2 é do tempo das calendas, isto é, de quando se escrevia farmácia com ph. Em todas as campanhas realizadas, de norte a sul do país, o interrogado deixou bem claro para o ouvinte esta verdade - sim, porque é um relato que encerra verdade nua - que provoca, que incomoda, é certo, os custodiantes da lei e os garantidores de um processo eleitoral legítimo. A vigilância da autoridade importa em que a vontade do eleitor seja suprema (ou devia ser), para que selemos a atividade eleitoral como livre de todo vício que possa tisnar o sufrágio do eleitor.

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Esta afirmativa de Emilio Odebrecht converge para o noticiário subsequente, que informa o brasileiro da reação dos políticos incluídos nesta lista de centenas de figuras receptoras de colaborações, nela citados nominalmente o ex-presidente Fernando Henrique e outros menos votados, que, até o momento, não haviam sido apedrejados. Agora, todos se mobilizam, ensaiando uma resposta, material se possível, à sociedade brasileira. Ora, então, se o ministério público provocou a delação, haverá preço a pagar pela verdade. Se o Caixa 2 era um exercício reiterado em todas as frentes, por todos os grupos e em todo o território, há tantos decênios, era forçosamente uma estratégia eleitoral consentida. E se tal manejo extracontábil era da ciência da autoridade eleitoral ou judiciária, constava quase como uma prática tolerada, ou mesmo consentida, e então converter-se num costume, daí sim, o que apazigua a ilicitude, ou diminui o potencial ofensivo. 

Vivemos muito tempo no Brasil testemunhando os costumes políticos, desde o coronelismo, a predizer que em política o que não se permite é perder eleição, e esta ordem foi emanada de um grande estadista e homem público que foi Juscelino Kubitscheck. Suas hostes souberam bem cumprir este comando. O depoimento levado a público valeu como uma cutucada em todos, e todos acordaram para esta resultante: como me julgar culpado por uma prática quase institucionalizada, tolerada, consentida ? Que se rasgue esta fantasia e se mostre aos moços, estes que não conhecem o passado desta República, que, até hoje, não se condenou ninguém pela infração do Caixa 2, e esta prática exorbitou para a propina e para a corrupção generalizada porque, na falta de apuração ou de pena, ela se disseminou.

No tempo da escravidão, os negros eram vendidos, comprados, surrados, maltratados, seviciados, mortos. Não ocorria pena para o senhor, embora, quando pouco, houvesse o direito natural a impedir e condenar aquelas barbaridades. Os possuidores de escravos não se envergonhavam diante da sociedade por seus abusos e nem a sociedade os cobrava por algo. E mesmo após o emblemático maio de 1888, a escravatura era constatada (e tolerada) até os albores do século XIX.

Não valeu a pena para o esforço investigativo veicular a afirmativa incontestável de Emilio Odebrecht.

José Maria Couto Moreira

Falta a revogação da Lei Áurea

Está por dias a aprovação da chamada reforma trabalhista na Câmara dos Deputados. Reforma para tirar os últimos direitos do trabalhador, como a substituição do legislado pelo negociado. Patrões e empregados vão negociar acima e além da lei. Será a negociação da guilhotina com o pescoço. A imposição do interesse do mais forte sobre o mais fraco. Em especial quando 13 milhões de desempregados clamam pela oportunidade de trabalhar.

Trata-se de uma das mais abjetas alterações no que restou nas relações entre capital e trabalho. Ou o trabalhador aceita a redução de suas derradeiras prerrogativas ou será mandado embora. A garantia do direito ao trabalho virou fumaça. Até 1964 prevalecia a determinação de que depois de trabalhar por dez anos na mesma empresa, o cidadão adquiria a estabilidade, ou seja, apenas por falta grave poderia ser dispensado. Os governos militares também acabaram com o salário-família e a indenização por tempo de serviço.

Agora, vão-se as obrigações do empresariado, como a jornada de oito horas, as férias remuneradas e o décimo-terceiro salário. Vale mais o negociado do que o legislado, porque se o trabalhador não aceitar a proposta do patrão, nenhuma garantia terá de preservação do emprego.

Indaga-se porque a Câmara se encontra prestes a aprovar essa que parece a supressão final dos direitos trabalhistas, e a resposta surge simples: porque os deputados, salvo honrosas exceções, nada tem a ver com a classe trabalhadora. Cada um cuida de si, seus vencimentos estão garantidos conforme legislação especial. A bancada do PT lava as mãos, os demais partidos também. Até os sindicatos se omitem. Não demora muito para alguém sustentar a revogação da Lei Áurea.

O que espanta


A solidariedade no mal, eis o que espanta
Georges Bernanos

A fantasia do doutor Sérgio Côrtes

À primeira vista, mocinho e bandido se confundem. Não fosse a legenda nas fotos da prisão do ex-secretário de Saúde do Rio de Janeiro, seria difícil distingui-lo dos agentes que o escoltavam. Isso porque Sérgio Côrtes apostou em um visual “neutro” para o momento da detenção. Fantasiou-se de Federal.

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De físico enxuto, vestia um par de jeans desbotado semelhante ao dos agentes, e uma camiseta lisa preta com logomarca fazendo às vezes do emblema da PF. Trazia um boné liso enterrado na cabeça e ostentava uma barba e bigode seriíssimos que coincidiam com os do agente a seu lado, favorecendo a confusão. Também cuidou de carregar a sacola que separara para a prisão com a desenvoltura de agentes que levam aquelas maletas pretas repletas de material apreendido.

Nestes tempos de celular, o dr. Côrtes deve ter calculado que um descuido de imagem pode sair tão caro quanto um crime — afinal, ele é um dos fotografados de guardanapo amarrado na cabeça num restaurante parisiense, em gáudio com outros acusados de corrupção da quadrilha do ex-governador Sérgio Cabral.

A foto que ornamenta o seu perfil profissional na rede de negócios Linkedin permanece a mesma: mostra-o bastante imponente, focado de baixo para cima. Ao fundo, neve e um dos prédios da Harvard Business School, onde consta ter feito cursos de Administração e Finanças em 2014.

Mais cedo do que tarde, contudo, ele terá de atualizar a relação de seus vínculos empregatícios. Até a noite de quinta feira, quando esta coluna foi concluída, o cirurgião ortopedista continuava listado como vice-presidente médico da Rede D’Or, uma das maiores do país, apesar de a empresa hospitalar tê-lo desligado de seus quadros no mesmo dia em que foi preso.

É cedo para dizer onde mais o vasto esquema de corrupção na Saúde vai respingar, mas a transferência de logradouro do ortopedista está preventivamente consumada: de uma cobertura na Lagoa, Zona Sul do Rio, para uma cela em Bangu 8, no mesmo presídio da Zona Oeste onde Sérgio Cabral está preso desde novembro.

A Operação Fatura Exposta que resultou na prisão de Côrtes e dois grandes empresários do setor com quem teria atuado — Miguel Skin e Gustavo Estellita — tem componentes tão doentios que em qualquer país remotamente civilizado sua dimensão, causa e desdobramentos seriam o maior escândalo em pauta. Mas num Brasil com 8 ministros, 12 governadores, 24 senadores, 39 deputados, 5 ex-presidentes, governadores, cúpula partidária e centenas de atores menores sob suspeição — a maioria por corrupção, lavagem de dinheiro ou caixa 2 — nada é normal. Apenas os depoimentos gravados dos delatores — ora detalhistas, jocosos ou corriqueiros, mas sempre serenos — mantêm um tom de absoluta calmaria. Uma calmaria assustadora, diga-se.

O apocalipse em Brasília que desviou o foco da Operação Fatura Exposta no Rio com certeza é mais tentacular, causa incerteza nos três poderes da República e compromete toda uma visão de futuro do país. Mas se houvesse uma gradação moral de baixezas, o esquema de corrupção na Saúde da quadrilha Cabral, esmiuçado em reportagem de Chico Otávio e Daniel Biasetto, é mais vil. Não em volume de dinheiro desviado (R$ 300 milhões, segundo as primeiras apurações), mas por roubar de quem padece em fila ou no chão de hospital público.

O titular da Saúde fora anunciado como grande promessa de higienização e moralidade em 2006: “Fico muito tranquilo em deixar a pasta nas mãos desse médico intolerante com a incompetência, inimigo da corrupção”, garantira Cabral após sua primeira eleição por 68% dos votos. Côrtes fabricara perfil de bom gestor no Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (Into), que dirigiu por quatro anos e notabilizou-se por frases como “O meu sonho é que R$ 1 da Saúde valha realmente R$1".

Na manhã de 4 de janeiro de 2007, com menos de três dias no cargo de novo governador, Cabral levou Côrtes para uma visita de inspeção ao Hospital estadual Albert Schweitzer, em Realengo. À época, indignara-se com as humilhações sofridas pela população que precisava de melhorias na saúde:

“É uma calamidade pública... Uma coisa é criminoso matando inocentes. Outra é o estado cometer genocídio.... Com certeza o Ministério Público vai verificar as causas e tomar providências... É um verdadeiro caso de polícia... Aqui não tem governo. O problema não é dinheiro, é gestão... O que o estado faz aqui é cometer assassinatos...”

Hoje, as mesmas exigências de seu discurso de dez anos atrás estão sendo ouvidas. Mas pela Operação Fatura Exposta. Segundo as denúncias sob investigação, todos os contratos da secretaria da era Cabral desviavam 5% para o governador, 2% para o titular da pasta, 1% para os conselheiros do Tribunal de Contas do Estado, 1% para o esquema de corrupção e 1% para o autor da delação, Cesar Romero Vianna.

Em tempo: o Hospital Universitário Pedro Ernesto, vinculado à Universidade do Estado do Rio de Janeiro, tem capacidade para 512 leitos. Ele opera há 10 anos com no máximo 370 e no momento são apenas 200. Está em estudo um plano de contingência para o funcionamento da unidade.

Dorrit Harazim

A reconstrução da casa comum

Não faz sentido subestimar a controvérsia sobre a reforma política, até porque, todos sabem, o País dela precisa, e muito. São bem-vindas as ideias sobre a racionalização do sistema partidário, o financiamento da democracia, as mudanças na forma de captar o voto e transformá-lo em cadeiras parlamentares, ainda que a divergência sobre cada um desses tópicos não seja pequena e pareça ilusória a aposta numa grande reforma, advinda de uma Constituinte exclusiva, em desfavor de mudanças mais precisas e controláveis, mas capazes de encurtar o presente abismo entre governantes e governados, dirigentes e dirigidos, ruas e instituições.

Não custa lembrar que a crise das democracias está longe de ser exclusividade nossa, ignora limites geográficos e mecanismos eleitorais. O voto distrital americano ou inglês, o distrital misto alemão ou o proporcional em outros países não têm imunizado as respectivas democracias contra surtos perturbadores de populismo – com sua guerra fingida contra as “elites” – e tentativas de dilapidação das instituições. E há mesmo razão para desconfiar de patologias mais graves. Afinal, depois de Trump ou Putin, não se sabe o que será da verdade ou, para ser menos enfático, o que acontecerá às “narrativas” bem argumentadas que pressupõem um universo comunicativo compartilhado por pessoas diferentes entre si, mas sensatas e razoáveis.

Há, pois, um vasto problema de cultura política sob a superfície imediata de nossos problemas. Decerto, eleições proporcionais com lista aberta, sem nenhum tipo de barreira, incentivam a fragmentação partidária e tornam opacas as relações entre quem vota e quem deveria representá-lo. Decerto, ainda, a desastrada emenda da reeleição, aprovada sem a cláusula que limita sua possibilidade a dois mandatos, segundo o modelo norte-americano pós-Roosevelt, submete-nos à tutela de líderes carismáticos que, sejam quais forem e seja lá o que representem, terão o condão de nos assombrar por um tempo superior ao de uma geração histórica, freando a renovação e infantilizando a cidadania.
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Tomando o pulso das modernas democracias, o que se encontra é um terreno minado por polarizações radicais. As sociedades estão divididas de forma talvez inédita, uma vez que se associam, em caráter explosivo, novas e crescentes desigualdades e “guerras de valores” aparentemente inconciliáveis. Parece impossível reconstituir algum tipo de unidade moral, ainda que em termos minimalistas. O lema de nossos dias, America first, com seu poder de contaminação, prenuncia um recuo de poderosas elites nativas para o campo puramente econômico-corporativo. Pode-se supor que o interesse material bruto pretenda tomar a frente e relegar a (grande) política a papel secundário.

Na polarização irracional, um papel destacado tem cabido às redes sociais. Evidentemente, elas alteraram nossa percepção do mundo e vieram para ficar. Abriram imensas possibilidades para a vida democrática ao pôr quase tudo ao alcance de quase todos. Alimentam o ativismo digital, suscitam a participação, fazem circular a informação em fração de segundos. Mas, como tem sido a experiência global e, obviamente, também a brasileira, carregam consigo riscos evidentes de uniformização e sectarização de grupos sociais inteiros.

As seitas descobriram a internet e suas redes – esse o perigo que tocamos com as mãos e contribui para a criação de mundos comunicativos separados uns dos outros por barreiras invisíveis, mas nem por isso pouco eficazes. Um professor de Harvard, Cass R. Sunstein, adverte-nos em livro recente (#Republic: Divided Democracy in the Age of Social Media, editora da Universidade de Princeton) sobre a realidade monocórdica dos “casulos de informação” e das “câmaras de eco”, ambientes artificiais em que se exaspera a tendência humana à “homofilia”, o amor ao que é igual a si mesmo e a aversão ao que é diferente.

Narciso sempre acha feio o que não é espelho e certamente não entende outra voz além da sua. Nas “câmaras de eco”, o que cada indivíduo ouve é sua própria opinião amplificada exponencialmente pelos demais. O vozerio ensurdecedor não esconde que se está no reino do pensamento único – seja “progressista”, seja “reacionário”. E assim é porque se vive em guetos de comunicação, não em cidades virtuais em que haja esquinas livres, encontros inesperados e convivência de opostos. Experiências e valores compartilhados estão como que proibidos a priori, eles que dão substância à ideia democrática por excelência de recíproco reconhecimento da legitimidade entre adversários, mesmo afastados uns dos outros.

Tais preocupações não são abstratas, pois, de fato, permeiam a crise brasileira. Em princípio, seria papel da esquerda, que jamais encabeçou os recorrentes regimes autoritários entre nós, portar a boa-nova democrática, rejeitando a contraposição binária, a lógica infernal de amigos e inimigos irredutíveis. Não foi assim. Ao contrário, empregaram-se categorias anacrônicas, imaginou-se fabulosamente “tomar o Estado”, em vez de bem governar e promover mudanças reais – e hoje se chega a lamentar, em autocrítica capenga, o “erro” de não ter substituído partidariamente estruturas públicas do sistema de controle. E de tanto gritar “direita” diante de qualquer crítica, acabou-se por criar uma virulenta direita real – e virtual –, tão doutrinária e hostil à ideia de uma “casa comum” quanto a esquerda que esteve no poder.

No fundo, temos em ambos os casos o enclausuramento nas próprias “verdades”, o vezo de liquidar o inimigo – menos mal que, por ora, só retoricamente –, a incapacidade de produzir grupos com função dirigente “intelectual e moral”, para usar expressão antiga. Sair do círculo vicioso desta esquerda e desta direita, relegando-as às margens, será a missão dos democratas, sem exceção. Estamos proibidos de falhar.

Luiz Sérgio Henriques