terça-feira, 4 de março de 2025
Melhor ser 'fraca'
Costuma dizer-se que as democracias são frágeis. Mas ainda bem que são, porque fortes são as ditaduras!
Bruno Vieira Amara
Bruno Vieira Amara
'O Conto da Aia': 40 anos da distopia de Margaret Atwood
Em 1985, Margaret Eleanor Atwood publicava O Conto da Aia (Handmaid’s Tale) no Canadá, pela Editora McClelland and Stewart – distopia que receberia diversos prêmios literários de relevo internacional nos anos seguintes. Não será por mera coincidência que em março deste ano (2025), a série homônima televisiva levará ao ar a sexta e última temporada da história protagonizada por June Osborne.
Para quem não está familiarizado com o enredo do romance, a elite de Gilead (vasto território localizado em partes dos outrora Estados Unidos) submete um grupo de mulheres à condição de gerar filhos para casais de Comandantes e Esposas. As Aias são coagidas mediante variadas formas de violência: física, emocional e psicológica. Na residência de cada família, encontram-se as Marthas (a dar conta do inesgotável trabalho doméstico) e os Guardiões (que servem especialmente aos mandos e desmandos dos Comandantes).
Como o topônimo sugere, a vida em Gilead é pautada pelas escrituras (o nome do território remete ao Gênesis). Estruturado de modo rigorosamente hierárquico, esse regime patriarcal e fundamentalista conta com a severa cumplicidade das Esposas e a tirânica intervenção das Tias (instrutoras/supervisoras que, aparentemente, ensinam como as Aias devem se portar, ao frequentar tais propriedades) e Olhos (observadores cuja função é reportar desvios de conduta aos Comandantes). Destituídas de sua antiga identificação civil, as Aias são chamadas pelo nome do Comandante a que estão subordinadas. Para citar apenas um exemplo, Offred nomeia uma Aia pertencente a Fred = Of Fred, de Fred.
O que está por detrás dessa história que evoca o período inquisitorial? Como a escritora reconheceu em mais de uma ocasião, o desejo de produzir ficção deve seu tanto a obras literárias que leu e releu desde a infância: O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Brontë (1847); Nós, de Evgéni Zamiátin (1924); Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley (1932); O Zero e o Infinito, de Arthur Koestler (1940); A Revolução dos Bichos e 1984, de George Orwell (publicados respectivamente em 1945 e 1949), entre outros. Graças à coletânea Alvos em Movimento (traduzida e lançada no Brasil em 2023), que reúne vários textos críticos da autora, essas e outras informações estão ao alcance do público leitor interessado.
Comparado às distopias de Huxley e Koestler, Atwood supõe que o romance 1984 lhe “pareceu mais realista, provavelmente porque Winston Smith era mais parecido” com ela – tanto por conta de seus atributos físicos, quanto pelo fato de o protagonista sobreviver “em conflito com as ideias e o estilo de vida proposto para ele” e, dentre outras ações, “escrever seus pensamentos proibidos em um caderno em branco e secreto, deliciosamente tentador”.
De algum modo, as obras de George Orwell acompanharam Margaret Atwood ao longo da vida, pois, ele “passou a ser um modelo direto” para a escritora “no verdadeiro 1984”, ano em que ela começou a redigir o próprio romance, narrado por June. A autora desejava “escrever uma distopia da perspectiva feminina – o mundo segundo Julia, por assim dizer. Mas isso não faz de O Conto da Aia uma ‘distopia feminista’.” A despeito da diferença de enfoque, Atwood ressalta diversos paralelos entre 1984 e O Conto da Aia, tanto por conta dos regimes totalitários, quanto pela perversa utilização da linguagem por reduzidos grupos formados por sujeitos megapoderosos (quase todos hipócritas).
Um dos excertos mais reveladores do drama por vir se encontra no terceiro capítulo da segunda parte (“Compras”). Nele, Offred descreve a parte externa da residência dos Waterford: “O jardim é o domínio da Esposa do Comandante. Olhando para fora por minha janela com vidro inquebrável, com frequência a vejo nele, os joelhos sobre uma almofada, um véu azul atirado sobre as abas largas do chapéu de jardineiro, uma cesta ao lado com podadeiras e pedaços de barbante para amarrar as flores no lugar. Um Guardião destacado para servir o Comandante faz o trabalho pesado de cavar, a Esposa do Comandante dá instruções, apontando com sua bengala”.
Afora a simbologia das cores (Aias usam vermelho; Esposas vestem azul), o fato de as Esposas manterem as “flores no lugar” parece aludir à condição das próprias Aias, cuja indumentária (em branco e vermelho) leva a protagonista a associá-las a tulipas. Dentro ou fora da residência dos Waterford, o clima é de opressão quase absoluta. Na ausência do Comandante – que passa a maior parte do tempo fora de casa devido a compromissos políticos –, o regime doutrinário de Gilead repercute com desmedida violência sob a batuta de Serena Joy.
A questão é que, antes mesmo de integrarem a casa de uma família, as Aias passam maus bocados no Centro Raquel e Lia, liderado com mãos de ferro pela Tia Lydia. Após o “treinamento” das Aias, a residência para onde elas são levadas se revela como um ambiente igualmente inóspito, onde as Esposas reproduzem o autoritarismo de seus maridos. Nem mesmo as saídas diárias para fazer compras oferecem maior sensação de liberdade, pois as Aias percorrem o trajeto em duplas, de maneira que uma vigie as palavras, os gestos e as atitudes da outra.
Por esses e outros motivos, O Conto da Aia ultrapassa em muito o que se espera da chamada “literatura de entretenimento”. Como sugere a autora, trata-se de uma “ficção especulativa” que estimula a reflexão e, em certa medida, alerta-nos sobre a propagação de pseudoargumentos extremistas empunhados por homens e mulheres de suposta boa-fé. Feito o lembrete, suspendo a palavra e reforço o convite para que os leitores experienciem a poderosa distopia de Margaret Atwood.
Para quem não está familiarizado com o enredo do romance, a elite de Gilead (vasto território localizado em partes dos outrora Estados Unidos) submete um grupo de mulheres à condição de gerar filhos para casais de Comandantes e Esposas. As Aias são coagidas mediante variadas formas de violência: física, emocional e psicológica. Na residência de cada família, encontram-se as Marthas (a dar conta do inesgotável trabalho doméstico) e os Guardiões (que servem especialmente aos mandos e desmandos dos Comandantes).
Como o topônimo sugere, a vida em Gilead é pautada pelas escrituras (o nome do território remete ao Gênesis). Estruturado de modo rigorosamente hierárquico, esse regime patriarcal e fundamentalista conta com a severa cumplicidade das Esposas e a tirânica intervenção das Tias (instrutoras/supervisoras que, aparentemente, ensinam como as Aias devem se portar, ao frequentar tais propriedades) e Olhos (observadores cuja função é reportar desvios de conduta aos Comandantes). Destituídas de sua antiga identificação civil, as Aias são chamadas pelo nome do Comandante a que estão subordinadas. Para citar apenas um exemplo, Offred nomeia uma Aia pertencente a Fred = Of Fred, de Fred.
O que está por detrás dessa história que evoca o período inquisitorial? Como a escritora reconheceu em mais de uma ocasião, o desejo de produzir ficção deve seu tanto a obras literárias que leu e releu desde a infância: O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Brontë (1847); Nós, de Evgéni Zamiátin (1924); Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley (1932); O Zero e o Infinito, de Arthur Koestler (1940); A Revolução dos Bichos e 1984, de George Orwell (publicados respectivamente em 1945 e 1949), entre outros. Graças à coletânea Alvos em Movimento (traduzida e lançada no Brasil em 2023), que reúne vários textos críticos da autora, essas e outras informações estão ao alcance do público leitor interessado.
Comparado às distopias de Huxley e Koestler, Atwood supõe que o romance 1984 lhe “pareceu mais realista, provavelmente porque Winston Smith era mais parecido” com ela – tanto por conta de seus atributos físicos, quanto pelo fato de o protagonista sobreviver “em conflito com as ideias e o estilo de vida proposto para ele” e, dentre outras ações, “escrever seus pensamentos proibidos em um caderno em branco e secreto, deliciosamente tentador”.
De algum modo, as obras de George Orwell acompanharam Margaret Atwood ao longo da vida, pois, ele “passou a ser um modelo direto” para a escritora “no verdadeiro 1984”, ano em que ela começou a redigir o próprio romance, narrado por June. A autora desejava “escrever uma distopia da perspectiva feminina – o mundo segundo Julia, por assim dizer. Mas isso não faz de O Conto da Aia uma ‘distopia feminista’.” A despeito da diferença de enfoque, Atwood ressalta diversos paralelos entre 1984 e O Conto da Aia, tanto por conta dos regimes totalitários, quanto pela perversa utilização da linguagem por reduzidos grupos formados por sujeitos megapoderosos (quase todos hipócritas).
Um dos excertos mais reveladores do drama por vir se encontra no terceiro capítulo da segunda parte (“Compras”). Nele, Offred descreve a parte externa da residência dos Waterford: “O jardim é o domínio da Esposa do Comandante. Olhando para fora por minha janela com vidro inquebrável, com frequência a vejo nele, os joelhos sobre uma almofada, um véu azul atirado sobre as abas largas do chapéu de jardineiro, uma cesta ao lado com podadeiras e pedaços de barbante para amarrar as flores no lugar. Um Guardião destacado para servir o Comandante faz o trabalho pesado de cavar, a Esposa do Comandante dá instruções, apontando com sua bengala”.
Afora a simbologia das cores (Aias usam vermelho; Esposas vestem azul), o fato de as Esposas manterem as “flores no lugar” parece aludir à condição das próprias Aias, cuja indumentária (em branco e vermelho) leva a protagonista a associá-las a tulipas. Dentro ou fora da residência dos Waterford, o clima é de opressão quase absoluta. Na ausência do Comandante – que passa a maior parte do tempo fora de casa devido a compromissos políticos –, o regime doutrinário de Gilead repercute com desmedida violência sob a batuta de Serena Joy.
A questão é que, antes mesmo de integrarem a casa de uma família, as Aias passam maus bocados no Centro Raquel e Lia, liderado com mãos de ferro pela Tia Lydia. Após o “treinamento” das Aias, a residência para onde elas são levadas se revela como um ambiente igualmente inóspito, onde as Esposas reproduzem o autoritarismo de seus maridos. Nem mesmo as saídas diárias para fazer compras oferecem maior sensação de liberdade, pois as Aias percorrem o trajeto em duplas, de maneira que uma vigie as palavras, os gestos e as atitudes da outra.
Por esses e outros motivos, O Conto da Aia ultrapassa em muito o que se espera da chamada “literatura de entretenimento”. Como sugere a autora, trata-se de uma “ficção especulativa” que estimula a reflexão e, em certa medida, alerta-nos sobre a propagação de pseudoargumentos extremistas empunhados por homens e mulheres de suposta boa-fé. Feito o lembrete, suspendo a palavra e reforço o convite para que os leitores experienciem a poderosa distopia de Margaret Atwood.
A nossa metade não humana
Cerca de metade das células do nosso corpo não são humanas. Pertencem a bactérias, fungos, vírus e outros seres invisíveis aos nossos olhos — o microbioma.
Desconfio que a melhor parte de alguns humanos é a sua metade não humana. Outros talvez não sejam bons (ou felizes) porque têm um mau microbioma. O microbioma influencia o nosso comportamento através do eixo intestino-cérebro. Certas bactérias intestinais produzem dopamina, serotonina e outras substâncias que ajudam a regular o humor e a ansiedade. Um microbioma desequilibrado pode provocar situações de ansiedade e depressão. No limite, até doenças neurodegenerativas.
A cada avanço do conhecimento, a arrogância humana recua — ou deveria recuar. Não somos o centro do Universo. Somos parte dele. Não estamos apartados da natureza. Somos a natureza. Não somos uma forma de vida superior. Somos a conjunção harmoniosa de inumeráveis formas de vida.
Os avanços da ciência parecem confirmar o que muitas filosofias antigas já sugeriam. Por exemplo, que a ideia do eu é falsa, uma teimosa ilusão — algo defendido desde há longos séculos pelo budismo.
O animismo — essa cosmogonia ou visão do mundo, desenvolvida por povos indígenas em diferentes regiões do planeta, da África às Américas, passando pela Austrália — também defende a ideia de que o ser humano é um organismo coletivo, uma comunidade, uma constelação de vidas. Mais uma vez se comprova a extraordinária atualidade de muitas culturas consideradas arcaicas, que, durante séculos, a “modernidade ocidental” desprezou e humilhou.
Se alguns dos nossos estados emocionais, e até eventuais decisões, resultam da atividade de vírus e bactérias, organizados em vastas e complexas redes, então somos menos seres individuais e muito mais um produto do diálogo e da interação. O que nos define não é tanto uma identidade única, uma alma singular, mas sim a relação dinâmica entre múltiplas forças biológicas, sociais e ambientais. Admitindo que a nossa identidade pode ser moldada por uma infinidade de minúsculas criaturas, isso significa que é fluida — ou seja, estamos, a cada instante, nos tornando outros.
Não sou hoje quem fui ontem, nem serei amanhã quem sou agora, porque o meu microbioma mudou, o meu corpo mudou, as minhas conexões e experiências mudaram. Além disso, a minha capacidade para apreender a realidade também vai mudando.
Esta ideia parece-me mais libertadora do que assustadora. Em vez de nos agarrarmos a uma identidade fixa, imutável, seríamos mais felizes se fôssemos capazes de aceitar que a mudança é parte essencial do que significa ser humano — ser vivo. Assim como o microbioma, a identidade é um equilíbrio dinâmico, um jogo festivo entre diferentes formas de experimentar a vida. A identidade faz-se caminhando. Somos seres em mutação.
Fernando Pessoa ficaria feliz com esta conclusão. “Sou mais variado que uma multidão de acaso”, escreveu o poeta: “Sou mais diverso que o universo espontâneo,/ Todas as épocas me pertencem um momento,/ Todas as almas um momento tiveram seu lugar em mim.”
Desconfio que a melhor parte de alguns humanos é a sua metade não humana. Outros talvez não sejam bons (ou felizes) porque têm um mau microbioma. O microbioma influencia o nosso comportamento através do eixo intestino-cérebro. Certas bactérias intestinais produzem dopamina, serotonina e outras substâncias que ajudam a regular o humor e a ansiedade. Um microbioma desequilibrado pode provocar situações de ansiedade e depressão. No limite, até doenças neurodegenerativas.
A cada avanço do conhecimento, a arrogância humana recua — ou deveria recuar. Não somos o centro do Universo. Somos parte dele. Não estamos apartados da natureza. Somos a natureza. Não somos uma forma de vida superior. Somos a conjunção harmoniosa de inumeráveis formas de vida.
Os avanços da ciência parecem confirmar o que muitas filosofias antigas já sugeriam. Por exemplo, que a ideia do eu é falsa, uma teimosa ilusão — algo defendido desde há longos séculos pelo budismo.
O animismo — essa cosmogonia ou visão do mundo, desenvolvida por povos indígenas em diferentes regiões do planeta, da África às Américas, passando pela Austrália — também defende a ideia de que o ser humano é um organismo coletivo, uma comunidade, uma constelação de vidas. Mais uma vez se comprova a extraordinária atualidade de muitas culturas consideradas arcaicas, que, durante séculos, a “modernidade ocidental” desprezou e humilhou.
Se alguns dos nossos estados emocionais, e até eventuais decisões, resultam da atividade de vírus e bactérias, organizados em vastas e complexas redes, então somos menos seres individuais e muito mais um produto do diálogo e da interação. O que nos define não é tanto uma identidade única, uma alma singular, mas sim a relação dinâmica entre múltiplas forças biológicas, sociais e ambientais. Admitindo que a nossa identidade pode ser moldada por uma infinidade de minúsculas criaturas, isso significa que é fluida — ou seja, estamos, a cada instante, nos tornando outros.
Não sou hoje quem fui ontem, nem serei amanhã quem sou agora, porque o meu microbioma mudou, o meu corpo mudou, as minhas conexões e experiências mudaram. Além disso, a minha capacidade para apreender a realidade também vai mudando.
Esta ideia parece-me mais libertadora do que assustadora. Em vez de nos agarrarmos a uma identidade fixa, imutável, seríamos mais felizes se fôssemos capazes de aceitar que a mudança é parte essencial do que significa ser humano — ser vivo. Assim como o microbioma, a identidade é um equilíbrio dinâmico, um jogo festivo entre diferentes formas de experimentar a vida. A identidade faz-se caminhando. Somos seres em mutação.
Fernando Pessoa ficaria feliz com esta conclusão. “Sou mais variado que uma multidão de acaso”, escreveu o poeta: “Sou mais diverso que o universo espontâneo,/ Todas as épocas me pertencem um momento,/ Todas as almas um momento tiveram seu lugar em mim.”
'2025 pode ser como 1968 e 1989: um ano em que a história uda e nada mais é mais como antes'
Há anos em que o mundo passa por alguma mudança fundamental e convulsiva.
Um deles foi 1968, marcado pela invasão da União Soviética à Tchecoslováquia, a revolta estudantil em Paris, e protestos contra a Guerra do Vietnã nos Estados Unidos.
Outro foi 1989, ano do massacre da Praça da Paz Celestial, da queda do Muro de Berlim e da implosão do império soviético.
Eu vivenciei cada um destes acontecimentos e, a partir desta perspectiva, me parece que, após apenas algumas semanas, 2025 pode ser um ano deste tipo: um momento em que os pressupostos básicos sobre a maneira como nosso mundo funciona são colocados no triturador.
Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, cada um dos 13 presidentes americanos anteriores a este segundo mandato de Trump defendeu, pelo menos da boca para fora, um conjunto de princípios geopolíticos fundamentais. Entre eles, que a própria segurança dos Estados Unidos dependia de proteger a Europa da Rússia, e os países não comunistas da Ásia, da China.
Trump mudou essa abordagem. Ele diz que está colocando os interesses dos Estados Unidos em primeiro lugar, antes de qualquer outra coisa. Na maioria das vezes, isso se resume à questão de quanto custa para os Estados Unidos proteger a Europa e a Ásia da Rússia e da China, respectivamente.
Isso, por si só, é muito difícil para os países aliados dos EUA, especialmente na Europa. Mas se torna muito mais difícil devido à própria personalidade de Trump. Nenhum presidente dos EUA nos tempos modernos, nem sequer Richard Nixon, deixou suas características pessoais influenciarem suas políticas como Trump faz.
"Ele é como Luís 14", me disse um diplomata americano aposentado, referindo-se ao pretensioso rei Sol da França.
Críticos como este acreditam que Trump é incrivelmente vaidoso e, ao mesmo tempo, incrivelmente sensível. Como resultado, os indicados para cargos que o cercam, pessoas como Elon Musk e J.D. Vance, talvez pensem que sua posição depende inteiramente do quanto eles o elogiam e apoiam suas opiniões.
Quando o presidente Trump afirma, sem nenhuma evidência, que o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, é corrupto e tem um baixo índice de aprovação, Musk vai mais além: ele acrescenta que Zelensky é desprezado pelo povo ucraniano, e está se alimentando dos cadáveres dos soldados ucranianos.
Ninguém no círculo de Trump hoje, ao que parece, vai tossir discretamente e dizer: "Presidente, talvez o senhor devesse considerar voltar atrás nessa declaração".
A julgar por seu mandato anterior, podemos ter certeza de que cada uma das pessoas ao seu redor sabe como ele detesta que discordem dele. Elas também sabem que muitos eleitores apoiam incondicionalmente a abordagem de Trump, e sentem que estão financiando a segurança em um continente distante.
Ele se comprometeu a acabar com a guerra na Ucrânia até a Páscoa. E tem toda razão quando diz que o presidente russo, Vladimir Putin, está interessado nisso.
Embora as tropas russas estejam avançando lentamente no leste da Ucrânia, graças ao seu enorme número, suas perdas humanas são imensas.
Se a guerra continuar, a Rússia pode ter que recorrer ao recrutamento obrigatório, o que seria perigosamente impopular, e poderia até desestabilizar o regime de Putin. Tudo o que Trump diz sobre alcançar a paz é música para seus ouvidos.
John Bolton, o nada subserviente conselheiro de segurança nacional de Trump durante seu primeiro mandato, disse outro dia que o Kremlin deve ter estourado um champanhe quando ouviu sobre o plano de paz do governo Trump. Sem dúvida, pareceu um momento histórico — não apenas em Moscou, mas em todo o mundo.
Putin apoiou claramente a ideia de que Trump realmente venceu a eleição de 2020. Pode não ser verdade, mas Putin sabe que Trump favorece qualquer um que apoie sua visão das coisas.
Por que, em contrapartida, Trump e as pessoas que o cercam pegaram tão pesado com Zelensky? Em parte, deve ser porque Zelensky não faz obedientemente o que pedem a ele, como voltar à mesa de negociações e fechar um acordo para que os Estados Unidos possam ter acesso a minerais essenciais da Ucrânia.
Ao mesmo tempo, Trump entende que Zelensky é o elo mais fraco do trio formado por Estados Unidos, Rússia e Ucrânia — e pode ser pressionado de uma forma que Putin não pode. Quanto mais pressão for exercida sobre Zelensky, mais rápido será o acordo de paz.
Trump nunca parece, pelo menos em público, demonstrar muito interesse nos detalhes de qualquer acordo. O que importa para ele é o acordo em si, mesmo que a Ucrânia e seus aliados acreditem que seja claramente injusto, e permita que a Rússia volte em uma data futura e recomece a guerra.
Diplomatas britânicos e alemães que eu conheço ficaram furiosos com a forma como Trump agiu para levar a Rússia à mesa de negociações. "Ele tinha duas cartas importantes na mão", afirmou um deles. "A primeira era o isolamento da Rússia. Putin teria feito muitas concessões para poder participar das negociações com os Estados Unidos — só que Trump não insistiu em nenhuma concessão. Ele simplesmente o deixou sentar (na mesa de negociações) e começar a falar."
A outra carta, segundo o diplomata, era insistir que a Ucrânia deveria ter permissão para aderir à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). "Trump poderia ter discutido sobre isso, e extorquido todos os tipos de acordos de Putin, antes de finalmente dizer: OK, a Ucrânia não vai entrar para a Otan neste caso." Nas capitais europeias, há a sensação de que ele jogou fora estas duas cartas essenciais antes mesmo de as negociações começarem, sem nenhuma condição prévia.
No entanto, alguns diplomatas europeus com experiência em política americana já estão advertindo seus governos de que esse período monárquico na presidência de Trump, em que seus assessores acatam suas opiniões (ele literalmente se referiu a si mesmo como um "rei" na semana passada), não vai durar muito.
Atualmente, Trump tem o controle de um Congresso maleável e de uma Suprema Corte conservadora — mas daqui a apenas 20 meses, em novembro de 2026, haverá eleições de meio de mandato nos Estados Unidos.
Há sinais de que a inflação está começando a subir no país, e é bem possível que haja gente suficiente afetada para querer punir o partido Republicano de Trump nas urnas.
Se ele perder o controle de uma ou de ambas as casas do Congresso, o poder que ele tem no momento de fazer aprovar todos os planos e políticas, por mais controversos que sejam, vai diminuir.
Mas muita coisa pode acontecer nos próximos 20 meses. O expansionismo de Trump pode encorajar a China. Uma grande guerra comercial internacional, desencadeada pelas tarifas de Trump, pode começar. E parece provável que a União Europeia se torne política e economicamente mais fraca do que nunca.
Fechar um acordo de paz na Ucrânia nos termos da Rússia será algo totalmente novo para os Estados Unidos. Na grande maioria das negociações desde 1945, a Rússia teve dificuldades para conseguir o que queria devido à força econômica e militar americana.
Agora, Putin, que tomou a decisão onerosa de invadir a Ucrânia há três anos, parece que vai se safar, e prosperar.
Se isso acontecer, então 2025 será de fato lembrado como um ano chave: um momento em que a história do mundo mudou, e nada mais foi como antes.
John Simpson
Um deles foi 1968, marcado pela invasão da União Soviética à Tchecoslováquia, a revolta estudantil em Paris, e protestos contra a Guerra do Vietnã nos Estados Unidos.
Outro foi 1989, ano do massacre da Praça da Paz Celestial, da queda do Muro de Berlim e da implosão do império soviético.
Eu vivenciei cada um destes acontecimentos e, a partir desta perspectiva, me parece que, após apenas algumas semanas, 2025 pode ser um ano deste tipo: um momento em que os pressupostos básicos sobre a maneira como nosso mundo funciona são colocados no triturador.
Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, cada um dos 13 presidentes americanos anteriores a este segundo mandato de Trump defendeu, pelo menos da boca para fora, um conjunto de princípios geopolíticos fundamentais. Entre eles, que a própria segurança dos Estados Unidos dependia de proteger a Europa da Rússia, e os países não comunistas da Ásia, da China.
Trump mudou essa abordagem. Ele diz que está colocando os interesses dos Estados Unidos em primeiro lugar, antes de qualquer outra coisa. Na maioria das vezes, isso se resume à questão de quanto custa para os Estados Unidos proteger a Europa e a Ásia da Rússia e da China, respectivamente.
Isso, por si só, é muito difícil para os países aliados dos EUA, especialmente na Europa. Mas se torna muito mais difícil devido à própria personalidade de Trump. Nenhum presidente dos EUA nos tempos modernos, nem sequer Richard Nixon, deixou suas características pessoais influenciarem suas políticas como Trump faz.
"Ele é como Luís 14", me disse um diplomata americano aposentado, referindo-se ao pretensioso rei Sol da França.
Críticos como este acreditam que Trump é incrivelmente vaidoso e, ao mesmo tempo, incrivelmente sensível. Como resultado, os indicados para cargos que o cercam, pessoas como Elon Musk e J.D. Vance, talvez pensem que sua posição depende inteiramente do quanto eles o elogiam e apoiam suas opiniões.
Quando o presidente Trump afirma, sem nenhuma evidência, que o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, é corrupto e tem um baixo índice de aprovação, Musk vai mais além: ele acrescenta que Zelensky é desprezado pelo povo ucraniano, e está se alimentando dos cadáveres dos soldados ucranianos.
Ninguém no círculo de Trump hoje, ao que parece, vai tossir discretamente e dizer: "Presidente, talvez o senhor devesse considerar voltar atrás nessa declaração".
A julgar por seu mandato anterior, podemos ter certeza de que cada uma das pessoas ao seu redor sabe como ele detesta que discordem dele. Elas também sabem que muitos eleitores apoiam incondicionalmente a abordagem de Trump, e sentem que estão financiando a segurança em um continente distante.
Ele se comprometeu a acabar com a guerra na Ucrânia até a Páscoa. E tem toda razão quando diz que o presidente russo, Vladimir Putin, está interessado nisso.
Embora as tropas russas estejam avançando lentamente no leste da Ucrânia, graças ao seu enorme número, suas perdas humanas são imensas.
Se a guerra continuar, a Rússia pode ter que recorrer ao recrutamento obrigatório, o que seria perigosamente impopular, e poderia até desestabilizar o regime de Putin. Tudo o que Trump diz sobre alcançar a paz é música para seus ouvidos.
John Bolton, o nada subserviente conselheiro de segurança nacional de Trump durante seu primeiro mandato, disse outro dia que o Kremlin deve ter estourado um champanhe quando ouviu sobre o plano de paz do governo Trump. Sem dúvida, pareceu um momento histórico — não apenas em Moscou, mas em todo o mundo.
Putin apoiou claramente a ideia de que Trump realmente venceu a eleição de 2020. Pode não ser verdade, mas Putin sabe que Trump favorece qualquer um que apoie sua visão das coisas.
Por que, em contrapartida, Trump e as pessoas que o cercam pegaram tão pesado com Zelensky? Em parte, deve ser porque Zelensky não faz obedientemente o que pedem a ele, como voltar à mesa de negociações e fechar um acordo para que os Estados Unidos possam ter acesso a minerais essenciais da Ucrânia.
Ao mesmo tempo, Trump entende que Zelensky é o elo mais fraco do trio formado por Estados Unidos, Rússia e Ucrânia — e pode ser pressionado de uma forma que Putin não pode. Quanto mais pressão for exercida sobre Zelensky, mais rápido será o acordo de paz.
Trump nunca parece, pelo menos em público, demonstrar muito interesse nos detalhes de qualquer acordo. O que importa para ele é o acordo em si, mesmo que a Ucrânia e seus aliados acreditem que seja claramente injusto, e permita que a Rússia volte em uma data futura e recomece a guerra.
Diplomatas britânicos e alemães que eu conheço ficaram furiosos com a forma como Trump agiu para levar a Rússia à mesa de negociações. "Ele tinha duas cartas importantes na mão", afirmou um deles. "A primeira era o isolamento da Rússia. Putin teria feito muitas concessões para poder participar das negociações com os Estados Unidos — só que Trump não insistiu em nenhuma concessão. Ele simplesmente o deixou sentar (na mesa de negociações) e começar a falar."
A outra carta, segundo o diplomata, era insistir que a Ucrânia deveria ter permissão para aderir à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). "Trump poderia ter discutido sobre isso, e extorquido todos os tipos de acordos de Putin, antes de finalmente dizer: OK, a Ucrânia não vai entrar para a Otan neste caso." Nas capitais europeias, há a sensação de que ele jogou fora estas duas cartas essenciais antes mesmo de as negociações começarem, sem nenhuma condição prévia.
No entanto, alguns diplomatas europeus com experiência em política americana já estão advertindo seus governos de que esse período monárquico na presidência de Trump, em que seus assessores acatam suas opiniões (ele literalmente se referiu a si mesmo como um "rei" na semana passada), não vai durar muito.
Atualmente, Trump tem o controle de um Congresso maleável e de uma Suprema Corte conservadora — mas daqui a apenas 20 meses, em novembro de 2026, haverá eleições de meio de mandato nos Estados Unidos.
Há sinais de que a inflação está começando a subir no país, e é bem possível que haja gente suficiente afetada para querer punir o partido Republicano de Trump nas urnas.
Se ele perder o controle de uma ou de ambas as casas do Congresso, o poder que ele tem no momento de fazer aprovar todos os planos e políticas, por mais controversos que sejam, vai diminuir.
Mas muita coisa pode acontecer nos próximos 20 meses. O expansionismo de Trump pode encorajar a China. Uma grande guerra comercial internacional, desencadeada pelas tarifas de Trump, pode começar. E parece provável que a União Europeia se torne política e economicamente mais fraca do que nunca.
Fechar um acordo de paz na Ucrânia nos termos da Rússia será algo totalmente novo para os Estados Unidos. Na grande maioria das negociações desde 1945, a Rússia teve dificuldades para conseguir o que queria devido à força econômica e militar americana.
Agora, Putin, que tomou a decisão onerosa de invadir a Ucrânia há três anos, parece que vai se safar, e prosperar.
Se isso acontecer, então 2025 será de fato lembrado como um ano chave: um momento em que a história do mundo mudou, e nada mais foi como antes.
John Simpson
Uma lição de dignidade
Acho que a discussão entre Zelensky, Trump e Vance na Casa Branca vai ficar na História e até na Mitologia como uma lição de dignidade.
Falamos muito em bullying mas faltam-nos exemplos que se possam ensinar.
No caso de Zelensky, temos um dois contra um, em que os dois são quem mais manda no país mais rico e poderoso do mundo. Têm a faca e o queijo na mão. E estão em casa, na sede desse poder.
Nos pesadelos dos ucranianos, muito antes da invasão russa, a figura que mais aparece é um monstro bicéfalo, em que uma cabeça é a do pistoleiro do Oeste e a outra é do pistoleiro do Leste, ambas cheias de apetite para comer tudo o que a Ucrânia tem.
Na Casa Branca, este horror tornou-se tricéfalo – e Zelensky não estava a dormir. Ninguém acredita que Trump e Vance eram anfitriões.
Ninguém acredita que não saibam as regras mais elementares da educação. Não há no mundo uma única sociedade, do passado ou do presente, tribal ou cosmopolita, em que Trump e Vance não tenham sido as duas pessoas mais malcriadas, mal-formadas e mal comportadas de toda a história da humanidade.
Perante aqueles dois broncos inchados, Zelensky não pestanejou.
Foi buscar força a todos os ucranianos que morreram por causa da invasão russa. Foi buscar força ao fato de estar em guerra, comparando essa violência e esse medo à mera truculência verbal daqueles dois pavões obesos à frente dele.
O homem pequenino mostrou que não se curva – e que foi por não se curvar que a Ucrânia continua a lutar contra o monstro que o invadiu.
O homem pequenino e vestido de preto fez pouco daquelas fatiotas empoderadas, daqueles cabelos esticados, daquelas gravatas intermináveis que escondem tanto a barriga como uma fila de cabras esconde os Alpes.
Deu-nos uma lição de dignidade que jamais será esquecida.
Miguel Esteves Cardoso
Falamos muito em bullying mas faltam-nos exemplos que se possam ensinar.
No caso de Zelensky, temos um dois contra um, em que os dois são quem mais manda no país mais rico e poderoso do mundo. Têm a faca e o queijo na mão. E estão em casa, na sede desse poder.
Pode até dizer-se que não são dois, antes três contra um. Porque também está presente o imperador da Rússia, exultando com o serviço que lhes prestam os imperadores americanos.
Nos pesadelos dos ucranianos, muito antes da invasão russa, a figura que mais aparece é um monstro bicéfalo, em que uma cabeça é a do pistoleiro do Oeste e a outra é do pistoleiro do Leste, ambas cheias de apetite para comer tudo o que a Ucrânia tem.
Na Casa Branca, este horror tornou-se tricéfalo – e Zelensky não estava a dormir. Ninguém acredita que Trump e Vance eram anfitriões.
Ninguém acredita que não saibam as regras mais elementares da educação. Não há no mundo uma única sociedade, do passado ou do presente, tribal ou cosmopolita, em que Trump e Vance não tenham sido as duas pessoas mais malcriadas, mal-formadas e mal comportadas de toda a história da humanidade.
Perante aqueles dois broncos inchados, Zelensky não pestanejou.
Foi buscar força a todos os ucranianos que morreram por causa da invasão russa. Foi buscar força ao fato de estar em guerra, comparando essa violência e esse medo à mera truculência verbal daqueles dois pavões obesos à frente dele.
O homem pequenino mostrou que não se curva – e que foi por não se curvar que a Ucrânia continua a lutar contra o monstro que o invadiu.
O homem pequenino e vestido de preto fez pouco daquelas fatiotas empoderadas, daqueles cabelos esticados, daquelas gravatas intermináveis que escondem tanto a barriga como uma fila de cabras esconde os Alpes.
Deu-nos uma lição de dignidade que jamais será esquecida.
Miguel Esteves Cardoso
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