terça-feira, 16 de março de 2021

O crime compensa!

Perplexidade talvez seja o melhor termo para caracterizar a decisão do ministro do STF Edson Fachin de cancelar, por questões processuais, a condenação do ex-presidente Lula. Perplexidade ainda mais acentuada pelo segundo momento desse teatro do absurdo, quando a segunda turma põe em votação a imparcialidade ou não do ex-juiz Sergio Moro. Os papéis abruptamente se invertem, o decido torna-se inválido, o mocinho torna-se bandido. A continuar nessa toada, o ex-juiz será considerado ficha-suja, enquanto o responsável pela corrupção posará de vítima. Onde estão agora o “sujo”, o “lixo”, a “corrupção”, o desvio de recursos públicos, a compra de parlamentares? Vai tudo para debaixo do tapete?

Qual é a percepção do brasileiro, aquele que não compreende as firulas jurídicas? A resposta mais imediata, sem dúvida, é a de que o Judiciário condenou injustamente o ex-presidente da República. Pobre coitado, foi preso arbitrariamente, numa tramoia urdida por juízes e promotores. Evidentemente, não sabe a diferença entre anulação do “juiz natural” e anulação de “provas”. Politicamente é a mesma coisa!

Aliás, mesmo se compreendesse, ficaria confuso, porque é incompreensível que um ministro do Supremo, sete anos depois do começo da Lava Jato, decida de súbito considerar que a vara correspondente de Curitiba não era o lugar adequado de julgamento. E isso depois de ter ele mesmo, várias vezes, considerado que era tal. De repente, a “jurisprudência” começa a valer. Talvez um estagiário de Direito precisasse de 15 dias para chegar a essa conclusão.

Mais uma vez, conforme a já longa história jurídica e política brasileira, a impunidade é consagrada! Não se fala mais dos bilhões desviados da Petrobrás, da corrupção, dos recursos recuperados, mas do réu “inocentado”. A conclusão parece evidente: o crime compensa! E o “inocentado” pode ainda levar como recompensa a Presidência da República!

A elite brasileira, cansa-se de repetir, sempre escapa da condenação. O PT sempre lutou, ou aparentava lutar, contra essa forma social de impunidade. Ora, seu líder máximo, assim como seus dirigentes deveriam estar nela enquadrados. Para se livrar de condenações e da cadeia basta ter dinheiro, bons advogados e perseverança. O crime? Ora, o crime... Isso não importa! O que, sim, conta é apagá-lo, de preferência por questões processuais, que invalidem provas abundantes. A aposta dos advogados é simples – e historicamente bem-sucedida: um dia encontrarão um ministro que lhes dará razão, e o fará, de preferência, com uma linguagem jurídica pomposa e gótica para disfarçar o feito.

Um pobre, uma pessoa de poucas posses, jamais poderá arcar com esses custos e será abandonado à própria sorte. Pessoas assim serão condenadas e provavelmente presas. Os ricos e as elites políticas e partidárias sairão sorrindo, assobiando e declarando que foram injustiçados durante todos estes anos. Os advogados de Lula, entre ações, sentenças e recursos, devem ter tomado uma centena de iniciativas, se não mais, entupindo o Judiciário com suas medidas. É como se a instituição cuja função consiste na garantia e aplicação da lei devesse submeter-se a seus interesses e desígnios. Curioso um líder e um partido dito dos “trabalhadores” se terem colocado nessa posição.

O Supremo mostrou-se pequeno! Se seu prestígio já não era grande, sai agora diminuto. Expõe suas fraturas, suas contradições e sua lerdeza, apresentando-se como impróprio para cumprir sua função constitucional. O Poder que deveria ser o do equilíbrio, da moderação e da ponderação torna-se fonte de insegurança jurídica. Nem o passado lhe resiste. Sua hermenêutica é a da arbitrariedade.

A decisão do ministro Fachin desautoriza não apenas a si mesmo, o que já seria bastante grave do ponto de vista lógico e político, mas todas as instâncias do Judiciário que já haviam julgado o ex-presidente. Sete anos de trabalho foram simplesmente relegados por uma mera decisão monocrática, como se juízes e desembargadores nada valessem. Tribunais como o TRF-4 foram sumariamente desprestigiados. Ora, o trabalho desse tribunal foi primoroso, imparcial e independente, tendo várias vezes julgado improcedente a questão colocada pelos advogados de Lula a respeito do “juiz natural”. Subitamente, tudo é explodido! Será que são tidos por pessoas despreparadas? Assim o dá a entender a posição do Supremo, que se volta contra a sua própria instituição.

E o pior de tudo é que não pararemos por aí. A decisão relativa a Lula terá certamente efeito cascata, podendo alcançar outras pessoas condenadas na Lava Jato que se encontrem na mesma situação “natural. Os diferentes advogados já estão afiando suas facas, procurando incluir-se no caso em questão. Aproveitarão da nova “jurisprudência”, que seria uma “reafirmação” da anterior. Imaginem uma situação esdrúxula, porém possível neste cenário de valores invertidos: um delator, tendo sua delação anulada por um vício processual ou pela suspeição do juiz, poderá pedir o ressarcimento dos valores pagos! É isso a Justiça?
Denis Lerrer Rosenfield 

2022, o ano que vem chegando mais cedo

“Creio que nenhum homem tem plena consciência das engenhosas artimanhas a que recorre para escapar à sombra terrível do conhecimento de sua própria pessoa” (Joseph Conrad

Seria possível imaginar o mesmo de um país? Dizer, como o personagem de Shakespeare (em Macbeth): “Ai de ti, pobre país, quase com medo de conhecer a si próprio”.

O Brasil sob o bolsonarismo parece cada vez mais enredado no autoengano e na autocomplacência, empenhado em perder-se em engenhosas artimanhas para escapar ao conhecimento de si próprio.

Mas a terrível sombra está a ficar mais visível com o agravamento da pandemia, e com suas consequências. Paradoxalmente, é o que poderá talvez permitir que escapemos, nos próximos 18 meses, do autoengano coletivo, que seria trágico. Terrível como possa ser, o Brasil, a duras penas, pode estar se conhecendo melhor. Afinal, Bolsonaro e sua grei são parte integrante de nossa realidade.

Cumprirá a cada um de nós procurar construir coalizões – de pessoas, de partidos – aptas a apresentar-se à sociedade em geral (não apenas a nichos identitários, corporações estabelecidas e interesses consolidados) como alternativas de poder viáveis e construtivas.


Não será fácil. No presidencialismo à brasileira o poder incumbente dispõe de enormes vantagens, particularmente quando a busca da reeleição constitui sua inequívoca prioridade.

O poder que detém o presidente de nomear, demitir, vetar e cooptar não deve ser subestimado. Nem sua presença nas redes sociais ou o expressivo contingente do eleitorado que lhe confere o status de mito.

Em algum momento será preciso convergir para nomes, a política assim o exige. Mas tão importante quanto o quem é com quem mais (pessoas, partidos, grupos sociais), com que tipo de proposta sobre os principais desafios do País, com que tipo de interpretação sobre onde estamos, como até aqui chegamos e para onde se está propondo que caminhemos.

Carlos Pereira, em artigo recente (Folha 8/2), comenta a diferença entre montar uma coalizão para uma disputa eleitoral e gerenciar uma coalizão para efetivamente governar, à luz das dificuldades de coordenação, custos de governabilidade e perspectivas de sucesso legislativo.

Após um ano e meio de recusa, Bolsonaro foi obrigado a aceitar uma coalizão e a empenhar-se pessoalmente na eleição dos novos presidentes da Câmara e do Senado. Mas, como notou o autor, “estando o presidente disposto a jogar o jogo do presidencialismo multipartidário, precisa aprender a gerir a sua coalizão de forma profissional e não amadora”.

Sua forma de gerir a coalizão alcançada tem se mostrado volátil e estouvada, mas claramente concentrada em sua reeleição. Que depende da consolidação e ampliação de seu eleitorado fiel, do cultivo das corporações que tem como suas e da transferência de responsabilidades para governadores, prefeitos e para a mídia profissional.

A extraordinária disfuncionalidade do Executivo federal no combate à covid é o exemplo mais flagrante e doloroso dessa inépcia, mas não o único. Afinal, é de nosso presidente a afirmação: “O País está quebrado, e eu não consigo fazer nada”. Eis a continuação da mensagem, implicitamente sugerida: porque não me deixam fazer o que eu gostaria, ou o que precisaria ser feito, a culpa não é minha.

Em outra fala, saiu-se com variante muito mais grave: “Alguns acham que posso fazer tudo. Se tudo tivesse que depender de mim, não seria este o regime que nós estaríamos vivendo”. Nada surpreendente para quem em janeiro afirmara que “quem decide se um povo vive sob uma democracia ou uma ditadura são as Forças Armadas”.

As duas frases não deveriam surpreender a quem conheça sua trajetória, no Exército e no Congresso, ou a quem se dê ao trabalho de assistir, na íntegra, ao vídeo da famosa reunião ministerial de 22 de abril de 2020, verdadeira ressonância magnética de um organismo disfuncional.

A História ensina que uma sociedade enjaulada em acerbas polarizações é particularmente vulnerável a populismos fraudulentos. Existem sempre instigadores que despertam e incendeiam a ambição de populistas e tiranos em potencial. Como existem sempre os facilitadores que, ainda que percebam o perigo representado por aquela ambição, imaginam-se capazes de controlar os arroubos autoritários do populista (ou do tirano) enquanto se beneficiam de seu estilo de assalto a instituições estabelecidas.

Como aponta com pertinência Aung San Suu Kyi, “não é o poder que corrompe, mas o medo. O temor de perder o poder corrompe aqueles que o exercem. E o medo do açoite do poder corrompe aqueles que estão sujeitos a ele”. Persio Arida retomou o tema em excelente live recente, a propósito do Brasil de hoje.

Nos próximos 18 meses o Brasil deverá decidir se afinal deseja assumir-se como uma democracia vibrante, reconhecida como tal pelo resto do mundo; ou se persistirá na trajetória de incerteza crescente sobre nosso futuro econômico, social e político.

E a correr sério risco, à luz de eventos dos últimos dias, de reeditar o tipo de polarização que marcou tanto nossa experiência em 2018 como os últimos trágicos 12 meses de pandemia.

Carreata da Pátria Amada

 


Brasil só piora, mas finanças da família presidencial não param de melhorar

A família Bolsonaro prosperou na vida pelo trabalho duro —trabalho do contribuinte brasileiro. Jair Bolsonaro, patriarca do clã, é um defensor do patriotismo e da instituição familiar. Educou os filhos para amar a pátria. Os garotos não hesitaram em seguir os passos do pai. Adultos, casaram-se com a pátria. E foram morar no déficit público.

Ao cruzar os dados bancários obtidos a partir da quebra dos sigilos de assessores do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, a equipe de reportagem do UOL verificou que a rachadinha é, na verdade, uma rachadona. Auxiliares de Flávio migravam entre os gabinetes da família. E a movimentação bancária revela que a prática de morder verbas da folha salarial dos gabinetes era uma tradição familiar.

Além de Flávio, tudo faz crer que mastigaram nacos de contracheques de assessores também o irmão Carlos, vereador carioca, e o então deputado federal Jair Bolsonaro. Apenas quatro assessores do chefe da organização familiar, hoje presidente da República, retiraram em dinheiro vivo, na boca do caixa, 72% dos salários que receberam na Câmara. Coisa de R$ 551 mil de um total de R$ 764 mil.

O caso da rachadinha ganhou as manchetes em dezembro de 2018, dias antes da posse de Bolsonaro no Planalto. Ao reagir ao noticiário, o então presidente eleito incluiu-se instintivamente problema: "Se algo estiver errado", disse Bolsonaro na época, "seja comigo, com meu filho ou com o Queiroz, que paguemos a conta deste erro."

Hoje, Flávio guerreia nos tribunais para anular o processo em que é acusado de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa. E Jair Bolsonaro acha que não deve nada a ninguém —muito menos explicações. Já ameaçou encher de porrada a boca de um repórter que ousou perguntar de onde vieram os R$ 89 mil que o operador de rachadinhas Fabrício Queiroz e a mulher dele depositaram na conta da primeira-dama Michelle.

Ou o presidente tem uma estratégia capaz de causar inveja nos adversários políticos ou está conduzindo uma tática suicida. A protelação judicial e a desconversa com a imprensa empurram a amoralidade para dentro da campanha presidencial de 2022.

Os bolsonaristas costumam menosprezar a sujeira quando ela é exposta sob o tapete da primeira-família. Os devotos de Bolsonaro perguntam: "E a corrupção bilionária do PT?" Esse tipo de reação faz lembrar o "Sermão do Bom Ladrão", do padre Antônio Vieira. Nele, Vieira conta que, navegando numa poderosa armada, estava Alexandre Magno a conquistar a Índia quando trouxeram à sua presença um pirata que tinha o hábito de roubar os pescadores.

Alexandre repreendeu o pirata. E ele replicou: "...Eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador?" Vieira arrematou o sermão: "Se o rei da Macedônia, ou qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata, todos —rei, ladrão e pirata—merecem o mesmo nome. Ou seja: o desvio de nacos dos salários de servidores e o assalto de bilhões das arcas da Petrobras são irrupções de um mesmo fenômeno.

Alguém já disse que família é como varíola. A gente tem quando criança e fica marcado para o resto da vida. Na organização familiar dos Bolsonaro, quem sai aos seus não endireita. O pai abriu caminho na política. E instituiu uma espécie de filhocracia. Nesse regime particular, os Bolsonaro não se sentem pessoas públicas. O país é que lhes atrapalha a vida privada. O clã Bolsonaro luta para salvar o país. O Brasil só piorou. Mas as finanças da família presidencial não param de melhorar.

Catch-22

A escolha do substituto do general Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde é uma situação típica de Catch-22, expressão muito usada nos países de língua inglesa, especialmente nos Estados Unidos, oriunda de uma lei militar. Dá nome a um livro de Joseph Heller, “Ardil-22” na versão brasileira, que se passa no final da Segunda Guerra Mundial. Segundo o dicionário, caracteriza um problema cuja solução é negada por uma circunstância inerente ao próprio problema. No livro, o piloto que pede uma avaliação psicológica para escapar de missões perigosas de bombardeios estará mostrando sua sensatez e será considerado apto às mesmas missões perigosas.

É preciso mudar a política sanitária devido à repulsa provocada na população, fazendo cair a popularidade do presidente Bolsonaro. Mas como mudar a política sanitária, se o responsável por ela, o próprio presidente, não mudou a maneira de pensar em relação ao distanciamento social, ao uso da máscara ou à vacinação?


Se Bolsonaro escolhesse uma médica como Ludhmila Hajjar, estaria admitindo uma mudança de comportamento. Como não é esse o caso, a indicada pelo Centrão desistiu, incentivada por uma brutal guerrilha digital bolsonarista. O presidente Bolsonaro sempre alega que seus seguidores nas redes sociais são autônomos, não obedecem às suas ordens, o que é meia verdade. Veja-se a atuação do gabinete do ódio de dentro do Palácio do Planalto.

A solução seria escolher uma pessoa ligada a ele, que pensasse como ele, como o novo ministro escolhido, Marcelo Queiroga. Mas, para isso, por que demitir o general Pazuello, que já se humilhou publicamente afirmando, sem que lhe perguntassem, que “um manda, e o outro obedece”? O Centrão, por sua vez, também se encontra numa situação de Catch-22.

Indicou a médica rejeitada pelos bolsonaristas, tendo a demonstração clara de que seu peso político não decide tudo no governo Bolsonaro. Mas como continuar apoiando um presidente que os leva para o precipício da impopularidade, ainda mais agora que outro candidato forte se apresenta, o ex-presidente Lula, a quem já serviram com grandes vantagens? Mas, também, abrir mão das benesses do governo assim, de graça?

Típica situação de Catch-22 é a do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin, que, vendo que seria derrotado na Segunda Turma no julgamento da suspeição do então juiz Sergio Moro, resolveu chutar o pau da barraca e anulou quatro processos contra o ex-presidente Lula, mandando-os para a Justiça Federal de Brasília.

Como a solução de um problema Catch-22 será sempre negada pelo próprio problema, num conflito mútuo, Fachin pode perder tudo, não salvar a Lava-Jato, que parece ter sido sua motivação para ir para tudo ou nada. Salvar a Lava-Jato anulando as condenações do ex-presidente Lula é uma contradição em termos, pois ele era um símbolo do sucesso da operação de combate à corrupção.

Claro que anular os processos não significa dá-lo por inocente, mas, para efeitos políticos, Lula livre dá no mesmo. Fachin só poderá se livrar desse efeito Catch-22 se o Supremo, mais uma vez, decidir não decidir. O ministro Nunes Marques, que pediu vista do processo, pode ficar eternamente com ele, como o próprio presidente da Segunda Turma, ministro Gilmar Mendes, ficou dois anos até anunciá-lo na reunião da semana passada.

Se fizer isso, é sinal de que tem as costas quentes. Quem lhe esquenta as costas, o presidente Bolsonaro, também nesse caso se encontra numa situação de Catch-22. Para se vingar de Moro, seu inimigo mortal e talvez competidor em 2022, tem que aceitar a liberação de Lula, outro forte candidato contra Bolsonaro. Para se livrar de Lula, precisa que o plenário vote contra Fachin e que Nunes Marques segure o processo de suspeição até que o prazo para registrar candidaturas se esgote. Agindo assim, estará fortalecendo Moro. Difícil combinação, como é difícil, se não impossível, escapar do Catch-22.

Como todo brasileiro, terá que escolher a opção menos ruim para ele. Não foi assim que chegou à Presidência da República, nos colocando, a nós, brasileiros, numa situação de Catch-22? Para melhorar o país, só trocando o presidente. Mas trocar o presidente pode nos levar a uma convulsão social. Melhor deixá-lo sangrar até 2022. Lembram-se de Lula no mensalão?

A única vacina contra a Covid é o impeachment de Bolsonaro

O vírus da Covid não poupa os brasileiros, Jair Bolsonaro não poupa os brasileiros e os brasileiros que organizam e frequentam festas clandestinas não poupam os brasileiros. Na verdade, como o Brasil não poupa o Brasil desde sempre, é impressionante que ainda haja país e população. Mas fiquemos na atual questão.

O ministro Eduardo Pazzuelo é, no mais benigno dos adjetivos, um incompetente. E a incompetência dele mata, como fica demonstrado pelo número de cidadãos mortos de Covid. Não houve primeiro e segunda ondas da pandemia no país, simplesmente porque é a mesma onda desde o início, só que encorpada. A gestão da pandemia é um desastre de proporções bíblicas. O problema, no entanto, não é Pazzuelo, principalmente, é o chefe dele, o presidente Jair Bolsonaro — que, na sua sociopatia intrínseca e paranoia delirante, não se importa com as milhares de vidas ceifadas pelo vírus e acha que o enfrentamento do vírus, dentro das regras preconizadas pela ciência, é uma conspiração para derrubá-lo.

O grande empecilho, portanto, para que consigamos ter um mínimo de racionalidade e eficiência neste momento, o que implicaria um menor número de casos de Covid e, consequentemente, uma queda no número de óbitos, chama-se Bolsonaro. Não haverá ministro da Saúde capaz de dar conta das suas enormes tarefas, se não dispuser de autonomia para realizar o seu trabalho.


Ontem, Pazuello estava praticamente demitido, por pressão do Centrão, que não quer se ver amarrado a um governo sistematicamente chamado de “genocida”. O Centrão topa matar indiretamente o futuro do Brasil, por meio da corrupção, mas não diretamente no presente, com a demonização de medidas restritivas e do uso de máscara e a falta de qualquer planejamento digno desse nome para a vacinação em massa.

O Centrão queira emplacar a cardiologista Ludhmila Hajjar no lugar de Pazuello. Ela esteve com Bolsonaro ontem, disse que não defenderia o “tratamento precoce”, a cretinice assassina inventada pelo sociopata, e que precisava de autonomia para enfrentar a pandemia. Sem receber a garantia de que poderia executar o seu trabalho, Hajjar recusou o convite. O tamanho da encrenca, ela percebeu também pelos ataques que recebeu nas redes bolsonaristas — o único aspecto irreal que interessa ao inquilino do Planalto.

Não se sabe agora quem ocupará o lugar de Pazuello. Como nesta noite, e em todas as outras, se improvisa, o nome que o Centrão agora quer emplacar é o do deputado federal Doutor Luizinho, do PP do Rio de Janeiro — talvez, principalmente, por ter incorporado a palavra “Doutor” ao nome. Para além das pressões do Centrão, Bolsonaro tem de se haver com a queda vertiginosa de sua aprovação na condução do enfrentamento à pandemia e com os nefastos e crescentes efeitos que a propagação do vírus causa na economia. Por ele, Pazuello ficaria, porque no fundo e na superfície o atual ministro é um interino conveniente para o sociopata paranoico, que tem a sua própria ciência e acredita mesmo que a pandemia é uma criação da esquerda — agora, mais do que nunca, personificada no ex-condenado Lula.

Bolsonaro, sejamos claros, é o outro vírus a ser enfrentado imediatamente. Ele pode trocar de ministro, mas não deixará de sabotar toda e qualquer medida que possa diminuir dramaticamente o número de casos de Covid e de mortes por ela causados. É vital — e a palavra é mais do que uma metáfora — que o Centrão se convença de que é preciso remover Bolsonaro, sob pena de ser cúmplice na matança. A única vacina de que dispomos neste momento é a do impeachment.

Ameaças a governadores e a médica evidenciam democracia em xeque

No Brasil, já aprendemos, não se tem paz nem nos fins de semana. Os atos antidemocráticos de 2020, promovidos e frequentados por Jair Bolsonaro e apoiadores, voltaram neste fim de semana, quando o quadro da pandemia de covid-19 é o mais grave em um ano e o distanciamento social é necessário para evitar o colapso completo do sistema de saúde em todo o país.

E não foi só. Vários acontecimentos do fim de semana mostram que não é só a pandemia que avança sem vislumbre de controle: esses ataques à democracia foram visíveis em vários fatos deste domingo, e merecem igual preocupação por parte da sociedade.

Os atos insuflados por apoiadores do presidente tiveram concomitantemente ameaças a governantes e familiares e tentativas de se impedir com violência a vacinação. A eles: manifestantes fizeram tumulto, com ameaças, na frente da casa da mãe do governador do Espírito Santo, Renato Casagrande; o governador de São Paulo, João Doria Jr., relatou a tentativa de invasão a sua casa, também neste domingo; em Maceió, apoiadores de Bolsonaro tentaram impedir o prosseguimento da vacinação de idosos.

Esses não são fatos isolados e desconectados. De novo essas manifestações tiveram o uso de cartazes e faixas com defesa a intervenção militar, destituição de ministros do Supremo Tribunal Federal e golpe para apear os governadores dos cargos. Em São Paulo, uma foto tirada na avenida Paulista mostra policiais tirando foto de um desses cartazes, que fala em julgamento dos ministros do STF por um tribunal militar.

Na frente da casa da mãe de Casagrande, a informação de um parlamentar que é ex-policial amotinado era de que o endereço da idosa foi obtido junto ao "serviço secreto" da PM. Verdadeira ou não, a menção a isso é uma forma de ameaçar o governador: ele não está seguro porque tem contra si a polícia que deveria obedecê-lo. Isso é de uma gravidade absoluta.

Da mesma forma, uma foto das carreatas em Brasília mostrou um cidadão andando com uma arma de alto calibre e exibindo-a na janela. Outro sinal de grande perturbação para a democracia: a política de armar de forma indiscriminada a população já resulta em ameaça à manutenção do estado democrático de direito e à paz social.

Outras evidências de corrosão avançada do tecido democrático vieram da entrevista concedida nesta segunda-feira pela cardiologista Ludhmilla Hajjar à GloboNews. Sem querer entrar no mérito a respeito de sua competência para o cargo nem atestar seu currículo, trata-se de analisar o processo de destruição de reputação rápido e implacável a que ela foi submetida. Informado, Bolsonaro disse a ela que "faz parte".

Não, não faz parte do aceitável numa democracia que se usem vídeos e áudios distorcidos e tirados de contexto para imputar a alguém ligações políticas inverídicas. Também não é aceitável que uma médica tenha seu celular vazado e passe a receber ameaças, nem que haja tentativas de invasão do hotel em que se hospedou para ir conversar com o presidente da República.

Esses fatos são gravíssimos, e mostram que mesmo uma médica conectada politicamente com o Centrão, e que admitiu que estava disposta a aceitar o cargo mesmo sabendo quem era Bolsonaro -- o que pressupõe, mesmo sem ela ter dito, que estava disposta a fazer algumas concessões -- está suscetível a uma máquina de ódio e de sufocamento do espaço cívico cujas engrenagens ganharam tal vida própria que funcionam mesmo quando alguém é chamado a conversar por Bolsonaro e um dos filhos! Ou seja: nem eles têm pleno controle do monstro que criaram, e do qual ninguém na República está a salvo.

Se a corrosão democrática é grande e está passando até aqui ao largo da preocupação, a chance de que a saída de Eduardo Pazuello resulte em algum ganho na condução da pandemia parece nula. Qualquer um que deseje assumir a pasta adotando protocolos de distanciamento social, acelerando a vacinação e descartando tratamentos ineficazes para covid-19 não vai adiante. Isso mostra que o presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia, Marcelo Queiroga, que demonstra estar louco para assumir, deveria reavaliar o custo de ter sua reputação destruída, como quase aconteceu a Nelson Teich e a Ludhmilla Hajjar.

Com a exigência de subserviência e a evidência de que o negacionismo continuará sendo a tônica do MS, talvez o mais talhado ao cargo seja mesmo o deputado Doutor Luizinho, que é o Centrão sem intermediários nem pruridos. 

O jumento e a vacina

Há uns dez dias, um pequeno avião do governo da Bahia foi decolar de um aeroporto em Salvador e atropelou um jumento. Nem o animal nem o piloto se machucaram seriamente, mas o avião sofreu avarias e sua função, transportar doses da vacina contra a Covid-19 para o interior do estado, teve de ser executada por outro.

Nada mais metafórico do Brasil de hoje: o símbolo da estultícia, o pobre jumento — não sei por que razão ganhou a fama de pouco inteligente, ignorante, incapaz, mas vou aceitá-la sem crítica —, de um lado, e o da sabedoria e diligência humanas, a vacina, de outro. Aquele retarda o voo deste, ou seja, o acidente revela a encruzilhada civilizatória em que estamos. A imagem de um abismo logo adiante não serve mais ao Brasil, pois já demos o passo adicional e agora voamos em queda. Ainda que demore, pousaremos não exatamente no território da morte, mas no Tártaro, lá onde os deuses gregos supliciavam incorrigíveis como Sísifo. Repetir diariamente tarefas pesadas e inúteis é o que nos espera.


Relacionar o atual governo à irracionalidade do jumento (ou do gado) pode nos confortar, mas, ao fazê-lo, deixamos de reconhecer a inteligência dos senhores no poder. Pois eles têm inteligência, grande até; perversa, de fato. São conluiados com a morte. Se depois das grandes guerras, um ideal de civilidade e respeito às diferenças parece ter se transformado em um valor universal e desejável — ainda que pesem todas as atrocidades e guerras praticadas depois —, sempre houve aqueles que, por uma razão ou outra, continuaram a entender que governar é matar. Inventam inimigos em países vizinhos ou distantes, senão no próprio, onde passam a perseguir os que incomodam pela ancestralidade (os índios), pela potência (os negros), pela luta por independência e igualdade (as mulheres), pela subversão dos valores tradicionais (a comunidade LGBTQIA+) ou pela inconformidade (os artistas).

Quem nos comanda atualmente cultiva uma mentalidade mórbida como a descrita. A morte de quase trezentas mil pessoas (número aproximado de habitantes de Petrópolis, a nonagésima cidade, em termos de população, do Brasil, que conta com 5570 municípios), numa pandemia, não aflige os que militam na necropolítica, decerto os contenta. Queimar florestas é um espetáculo bonito. Dar as costas para a cultura é um ato de preservação de valores. Não faltam exemplos de como se compadecem da destruição.

Tenho um amigo que é exemplo dos que acreditam piamente no diálogo como forma de superar diferenças. Coerente com isso, o diálogo tem sido seu instrumento de ação profissional e política, papel que, aliás, desempenha muito bem. Por isso, fiquei surpreso com uma de suas publicações no Twitter. Diante da ruína civilizatória pela qual passamos, ele disse ter compreendido — não como um estudioso de um período passado, mas como alguém que experimenta, adulto e crítico, a dureza e periculosidade de seus dias — a opção de parte da juventude dos anos de 1960 pela luta armada. Meu amigo em nenhum momento defende que peguemos em arma, mas, com a violência e o autoritarismo inconsequente à solta, ele conclui, a escolha pelo combate no campo do inimigo (a violência) não é destituída de racionalidade. Eu acrescentaria: é exatamente isso que o novo poder quer de nós, portanto, tratemos de decepcioná-lo. Mais Gandhis, menos — como são muitos os que ocupam o espaço oposto ao de um pacifista, não cito nomes, preferindo a imagem talvez distorcida de outro animal — abutres.
Alexandre Brandão