Risco à democracia é se nós desistirmos delaFernando Henrique Cardoso
segunda-feira, 29 de outubro de 2018
Ao vencedor cabe a moderação
Muita gente haverá de se questionar como, afinal, chegamos aqui. Como sempre, foram as circunstâncias, invariavelmente muito mais decisivas que os atores. Como disse Barack Obama quando da eleição de Donald Trump, o fato é que ele (Trump e agora Bolsonaro) percebeu algo que passou ao largo da atenção dos demais candidatos e forças políticas.
Independente da qualidade do diagnóstico que faz ou da efetividade da terapia que propõe, Bolsonaro percebeu desde muito cedo a importância de questões como segurança pública, o repúdio dos setores mais conservadores a costumes e estilos de vida liberais e libertários; como também soube expressar a crítica mais radical ao petismo, seja em relação à economia seja no tocante à ética.
No momento em que seus partidários comemoram, pouco importa a justiça dessas críticas ou a justeza de independência e autonomia em relação a isso tudo. Como num jogo de futebol, o choro é livre, mas o fato é que o juiz não assinalou as faltas reclamadas e, agora, o jogo acabou e o campeão vestirá a faixa.
Para os que ficam surpresos ou decepcionados, nada há fazer a não ser fiscalizar diligentemente para que o próximo presidente e seus companheiros mantenham-se nos limites da lei e que tenham boa sorte e competência para resolver os graves problemas do país. Seria assim, do mesmo modo, caso Haddad fosse eleito. Democracia é assim.
Os desafios do novo residente não serão poucos. E o primeiro deles será amenizar sua imagem, reduzir medos e resistências; agir como presidente de todos os brasileiros. Sejam eles brancos ou negros, homens ou mulheres, hetero ou homossexuais, bolsonaristas ou petistas. Colocar-se acima dos conflitos que ele mesmo estimulou.
Sua obrigação maior e mais urgente é unificar a nação, não permitir que a arrogância da vitória ou a dor e o ressentimento da derrota fragmente ainda mais o estilhaçado tecido político e social. E que o faça com civilidade, nos limites da lei e do respeito à diversidade.
Seu desafio não será, portanto, apenas indicar o “Posto Ipiranga” para que governe em seu lugar. Paulo Guedes pouco poderá fazer sem o suporte da política, sem a confiança da nação. Nada é mais prejudicial à economia do que um ambiente personalista, cheio de incertezas. O que a economia quer são instituições críveis, eficientes e democráticas. Ao novo presidente caberá transmitir essa certeza.
E o primeiro passo será conter seus radicais — desafio de todo novo grupo que chega ao poder. Depois, esquecer o passado e evitar qualquer sentimento ou ação de desforra. O que se ganhou não foi a presidência ou o país, mas a responsabilidade de governa-lo, mantendo-o unido. Novamente, o mesmo serviria para Haddad.
O segundo desafio será estender a mão à oposição, compreendendo que fiscalizá-lo será seu papel e esperando que o faça de modo limpo, sem boicotes que prejudiquem o país. Para a oposição, vida que segue. No mais, construir a maioria parlamentar nos parâmetros e princípios prometidos durante a eleição: sem concessão fisiológica.
No calor da eleição isso tudo é muito difícil. Menos ainda a euforia inicial poderá comprometer o caminho que ainda será trilhado. Comedimento e moderação, qualidades que o novo presidente jamais demonstrou serão tão necessárias quanto o ar que se respira. O país não pode terminar asfixiado por suas diferenças e seus diferentes grupos.
Superadas as ressacas da vitória e da derrota, os próximos dias serão fundamentais para que se perceba a disposição de todos. Mas, o certo é que, se ao perdedor cabe a aceitação da derrota, ao vencedor cabe a grandeza de compreender a fragilidade de toda vitória.Carlos Melo
Uma virada à direita
Itamar, encontrei antes da posse, no Hotel Sheraton. Ele ainda não era o presidente, e eu tentava convencê-lo de que seria. Conheci Itamar desde a Rua Halfeld, a mesma onde Bolsonaro tomou a facada. Era um homem decente, tomava religiosamente uma sopinha ao entardecer. Ousou assinar o Plano Real.
Agora, sobe Jair Bolsonaro. Não foi uma rodada simples, dessas em que PT e PSDB se revezam. Foi mais ampla, como foi a de 64, só que agora sem Guerra Fria, num contexto democrático.
Senti a ascensão de Jair Bolsonaro. Impossível ignorá-la correndo o Brasil, observando as redes sociais. Quando levou a facada em Juiz de Fora, pensei: facada e tiro, quando não matam, elegem.
Se nossa cultura produziu essa certeza, isso quer dizer que a condenação da violência política tende a ser consensual. O presidente eleito deveria encarnar e expressar essa condenação. Não é um conselho, apenas uma leitura do Brasil. Os últimos dias de campanha foram ameaçadores. Prisão, desterro, banir da face da terra. Alta tensão. As universidades podem ser invadidas por ideias, não pela polícia.
O novo governo tem uma agenda brava, e só me resta usar esses meses de transição para estudar melhor e criticá-la com fundamento.
Outro campo de estudo se abre. A frase de Mano Brown — é preciso encontrar o povo — foi endereçada ao PT. Mas não vale também para o sistema partidário, a academia, a mídia, os especialistas? Como reconciliá-los com o homem comum?
Minha atitude com Bolsonaro será a que sempre adotei nos anos de convivência: respeito ao argumentar nos pontos divergentes e estímulo aos seus movimentos positivos. Alguns leitores condenam essa visão, sob o argumento de que normaliza a barbárie.
Mas se era assim com o deputado, por que não seria com o presidente, cujas ações mexem com nosso destino e com a imagem externa do Brasil?
Na minha visão de mundo, é impensável ofender os eleitores que escolheram outro caminho. O pressuposto é apostar na boa-fé da maioria do povo brasileiro.
Farei uma oposição sem truques ou medo, das que não visam ao poder. Apenas um desejo de ver o país retomando democraticamente os trilhos, um pouco também por filhos e netos.
A sensação de continuidade ao lado da poesia são os territórios em que desafiamos a morte.
Ganhar a eleição é difícil; derrotar forças poderosas, mais ainda. No entanto, as dificuldades começam mesmo quando se chega ao governo. As qualidades para ganhar a eleição são diferentes das que impulsionam o governo. Para vencer, é preciso falar a linguagem do povo.
O grande talento nesse campo nem sempre nos socorre, quando a necessidade impõe grande esforço intelectual para a tomada de decisões. Da mesma forma, o tom agressivo de campanha é o inverso da generosidade que se espera de um eleito.
Bolsonaro não é um raio em céu azul. O panorama político no Brasil mudou. Pensadores de direita surgiram no cenário. Jovens liberais, propagandistas religiosos ocuparam as redes.
As manifestações de 2013 colocaram na rua multidões com uma aspiração difusa de melhores serviços. As de 2015 afunilaram na denúncia da corrupção, impulsionaram a queda de Dilma.
Uma esquerda, sem élan para se reinventar ou base teórica para vislumbrar o horizonte, tornou-se uma presa fácil no debate de ideias.
Foi uma campanha da era digital. Hoje, todos falam, compartilham. Baixo nível? Talvez. Mais democrático? Sem dúvida. Foi também facada, fake news, acusações, brigas entre famílias, amigos, ansiedade, tentativas de suicídio — um psicodrama nacional.
Fiz tudo para manter a cabeça fria. É natural levar caneladas dos dois lados. Caneladas e balas perdidas são parte do jogo.
Outro dia, alguém escreveu sobre mim: se ficar como ele, peço aos amigos que me ajudem numa eutanásia. Não tenho por hábito contestar essas coisas da rede. Nesse caso, a resposta seria simples: obrigado por morrer em meu lugar. É uma gentileza nesses tempos sombrios.
É preciso viver um pouco mais para ver um país mais tranquilo, fraternal. Não sou ingênuo a ponto de imaginar esquerda e direita de mãos dadas. Não se trata de lirismo. As emoções da campanha ofuscaram um pouco a gravidade de nossos problemas.
Agora, voltamos à vida real.
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