sábado, 27 de junho de 2020

Exército contra a saúde

O volume de ocupação de cargos técnicos por militares e por indicações políticas sem qualificação necessária na estrutura do Ministério da Saúde tem ocorrido como nunca antes desde que o SUS foi criado. Nem o pior ministro da Saúde fez o que está acontecendo agora.
 
O Exército pode estar puxando pro seu colo a responsabilidade de desmontar o sistema de saúde brasileiro. Esse sistema que é essencial para garantir a segurança sanitária do nosso país
Adriano Massuda, professor da Fundação Getúlio Vargas e pesquisador-visitante na Escola de Saúde Pública de Harvard.

A desigualdade piora na pandemia

O ministro Marco Aurélio Mello disse que a despesa com os servidores pode ser reduzida, ainda que o Supremo tenha decidido que são irredutíveis os salários dos funcionários públicos da União, Distrito Federal, estados e municípios. No mesmo dia dessa decisão, que protege um grupo profissional, o IBGE divulgou que a renda do brasileiro caiu 18% em maio, e que, dos afastados do trabalho, quase dez milhões passaram a não ter renda alguma. Desses, 33% são empregadas domésticas sem carteira. São os retratos do país.

O Brasil sabe como construir desigualdades e faz isso na saúde e na doença, na prosperidade e na crise. Agora, por exemplo, alguns, como eu, conseguem trabalhar de casa porque têm boa internet e bons equipamentos. Os de maior escolaridade, avisa o IBGE, são a maioria entre os que conseguiram continuar produzindo de casa.

O ministro Marco Aurélio explicou que a Constituição estabelece a irredutibilidade dos salários dos servidores, mas não o de trabalhadores do setor privado.

— É bom pensar nisso para uma futura emenda — disse.


O tratamento é desigual, afinal, o Brasil vive uma pandemia, um colapso da arrecadação que devasta as finanças de estados e de municípios, e o gestor público pode cortar tudo, menos o salário do servidor. Imagine uma cidade sem recursos que tenha que, em vez de comprar remédio para um hospital, manter o mesmo rendimento para o servidor num país que empobreceu?

O que o ministro argumenta é que a própria Constituição aponta um caminho:

— O rol de medidas, para reduzir as despesas com pessoal, contido na Constituição, é exaustivo. Está no artigo 169. Permite a redução dos gastos de pessoal, primeiro afastando 20% dos detentores de cargos de confiança, depois exonerando os servidores não estáveis e por último até os estáveis, desde que pagando-se uma indenização de um mês por ano trabalhado. Mas tem que conciliar todo ajuste à irredutibilidade dos salários dos servidores — disse.

Nesse artigo a Constituição estabelece que os salários dos servidores de qualquer esfera administrativa do setor público não pode exceder o limite estabelecido por lei complementar. E faz a lista desses ajustes que podem ser feitos. Nada impede agora que o governo federal diante da conhecida queda de arrecadação reduza em 20% os cargos comissionados. Mas, pelo visto, na negociação com o centrão para defender seu mandato, o presidente está fazendo o caminho oposto. Aumentando as nomeações de apadrinhados.

Os efeitos econômicos do coronavírus no mercado de trabalho são como um bombardeio sobre os postos de trabalho. Os servidores que têm estabilidade já estão num abrigo antiaéreo. Na outra ponta, estão 19 milhões de trabalhadores que foram afastados e, desses, quase 10 milhões ficaram sem remuneração alguma. Somando-se os brasileiros que gostariam de procurar trabalho mas não estão procurando por causa da pandemia e os desempregados, há 36,4 milhões de brasileiros “pressionando o mercado de trabalho”, como disse o IBGE.

E, ao contrário do que o presidente Bolsonaro argumenta, isso não é provocado pelas decisões de isolamento, mas sim pelo vírus em si. As medidas, agora cada vez mais neglicenciadas, são decorrentes da necessidade de proteger a vida. Se o governo tivesse sido eficiente nas linhas de crédito para as empresas micro, pequenas e médias, teria reduzido em muito a crise atual. Se tivesse organizado com competência a distribuição do auxílio emergencial, teria evitado a maior parte das filas que certamente aumentaram as taxas de contaminação. E, principalmente, se o presidente não tivesse passado tantos sinais contraditórios, não tivesse negado a ciência, mas agido como coordenador, o peso da pandemia e da crise econômica teriam sido menores.

Em todas as áreas o que se vê no Brasil durante a pandemia é o aprofundamento das desigualdades. A falta da cobertura de banda larga no país, a falta de computadores nos lares dos mais pobres, a falta de celulares afastam pessoas do mercado e tiram a capacidade de aprendizado dos estudantes. E pensar que quando foi criado o FUST era para ser, como o nome diz, um fundo para universalizar os serviços de telecomunicação. O dinheiro ficou parado no fundo, no meio de muito debate sobre o seu destino, e agora o governo Bolsonaro propôs sua extinção.

Pensamento do Dia


Cada país tem o presidente que merece

Duas imagens simbólicas me arrebataram esta semana. Uma me enterneceu. A outra me enojou. A primeira foi um vídeo do presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, professor de formação. Ele deu vídeo-aulas para estudantes do ensino fundamental. O presidente-professor falou de cidadania e listou lições da pandemia.

A primeira lição, disse Rebelo, é “muito óbvia”: “O mais importante da vida é precisamente a vida e a saúde. Todo o resto perde sentido sem vida e saúde. Educação, trabalho, divertimento, o esporte, nada é possível sem vida e saúde. Se a pandemia é de todo mundo, deve ser todo mundo, unido, a tratar, prevenir, evitar e depois responder, combater”. Lições humanas e online de um presidente para crianças e adolescentes, num cenário com estantes, livros, telões e lápis de cor.

No outro vídeo, o que me enojou, o protagonista também era um presidente. Do Brasil. Em visita ao Comando de Operações Táticas da Polícia Federal, Bolsonaro treinou sua pontaria. Que anda bem falha no Planalto. Bolsonaro parou no estande de tiros e fez disparos contra vários alvos com armas diferentes. Dez tiros. Ostentação contra os inquéritos do STF e a prisão do amigo e arquivo ambulante Queiroz?

Bolsonaro posou sorrindo com o filho e guarda-costas Carluxo. Que imagens ofensivas num país em luto crescente, com mais de 1 milhão de contaminados pelo coronavírus e mais de 50 mil mortos. O Brasil pode ter dezenas de milhares de mortos a mais, a julgar pelo aumento de vítimas de insuficiência respiratória aguda em 2020.

Parafraseando a jornalista Andrea Sadi na entrevista com o advogado esquisito e caído em desgraça, Bolsonaro não pulou o muro do Alvorada nem chegou ali voando. Foi eleito. Democraticamente. Somos governados por quatro Bolsonaros, pessoal. Quatro. Preconceituosos, machistas, defensores da ditadura, tortura, censura e do AI-5, investigados por fake news, amigos milicianos e rachadinhas. Nomearam ministros boquirrotos, cínicos e ignorantes, como o abominável Weintraub, que deveria ser barrado no Banco Mundial. Fritaram outros.

O risco Bolsonaro sempre existiu. A pandemia só acentuou. Ninguém sabe quando atingiremos o pico do coronavírus no Brasil. Também não atingimos o pico do bolsonavírus. Precisamos achatar as duas curvas. A vacina do covid será descoberta, espero, o mais breve possível. A vacina contra presidentes como Bolsonaro já foi descoberta há tempos. A prevenção é a urna e o voto consciente. O remédio é o afastamento. Social e político.

O Brasil não merece. Esse título aí está errado. Foi mal. Inspirado na frase de um filósofo monarquista e católico do século XVIII, Joseph de Maistre: “Toda nação tem o governo que merece”. Mas ninguém merece Bolsonaro. Sempre que trabalhei na Europa, ser brasileira me abria as portas. Via nos olhos estrangeiros uma simpatia, uma admiração, uma quase inveja. Nossa imagem era de alegria. Vinha de um otimismo teimoso e um afeto especial nas relações humanas. Sol e mar. Música e dança. Calor e criatividade.

O europeu aprendia uma saudação logo ao chegar aqui: “E aí, tudo bem?” Agora, vejo nos olhos estrangeiros horror, estupefação e pena quando digo que sou brasileira. É surreal! Essa é a palavra que mais ouvimos e falamos. Esse país é surreal. No dicionário, significa “não condizente com a razão”, “para além do real”. O absurdo. O único país sem ministro da Saúde ou plano médico de combate à pandemia. Ah, Bolsonaro, vai...vai aprender com o presidente de Portugal. Se o deixarem entrar.

A praga e a peste

Uma nuvem de gafanhotos ronda a fronteira do Brasil com a Argentina, ameaçando as lavouras do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, depois de atacar as do Paraguai, onde os insetos destruíram plantações de milho. As principais regiões atingidas na Argentina são as províncias de Santa Fé, Formosa e Chaco, onde existe produção de cana-de-açúcar e mandioca e a condição climática é favorável. Uma nuvem de gafanhotos, em um quilômetro quadrado, pode ter até 40 milhões de insetos, que consomem, em um dia, pastagens equivalentes ao que 2 mil vacas ou 350 mil pessoas consumiriam.

Na Bíblia, nuvens de gafanhotos são uma das 10 pragas do Egito (Êxodus), lançadas por Deus para obrigar o faraó a libertar os hebreus. Moisés foi o portador da mensagem divina: “Assim diz o Senhor, o Deus dos hebreus: ‘Até quando você se recusará a humilhar-se perante mim? Deixe ir o meu povo, para que me preste culto. Se você não quiser deixá-lo ir, farei vir gafanhotos sobre o seu território amanhã. Eles cobrirão a face da terra até não se poder enxergar o solo. Devorarão o pouco que ainda lhes restou da tempestade de granizo e todas as árvores que estiverem brotando nos campos. Encherão os seus palácios e as casas de todos os seus conselheiros e de todos os egípcios: algo que os seus pais e os seus antepassados jamais viram (…)”.


Mas o Senhor disse a Moisés: “Estenda a mão sobre o Egito para que os gafanhotos venham sobre a terra e devorem toda a vegetação, tudo o que foi deixado pelo granizo”. Moisés estendeu a vara sobre o Egito, e o Senhor fez soprar sobre a terra um vento oriental durante todo aquele dia e toda aquela noite. Pela manhã, o vento havia trazido os gafanhotos, os quais invadiram todo o Egito e desceram em grande número sobre toda a sua extensão. Nunca antes houve tantos gafanhotos, nem jamais haverá. Eles cobriram toda a face da terra de tal forma que ela escureceu. Devoraram tudo o que o granizo tinha deixado: toda a vegetação e todos os frutos das árvores. Não restou nada verde nas árvores nem nas plantas do campo, em toda a terra do Egito.

Em julho do ano passado, uma nuvem de gafanhotos invadiu Las Vegas, nos Estados Unidos. Simultaneamente, no Iêmen, devastado pela fome e pela guerra civil, outra nuvem de gafanhotos destruiu as plantações. Os gafanhotos circularam por mais de 60 países, principalmente na África, no Oriente Médio e na Ásia Central. Os cientistas acreditam que as mudanças climáticas estão fazendo os insetos agirem de maneira mais destrutiva e imprevisível. Estudo publicado por cientistas americanos na revista Science mostrou que o clima mais quente torna os gafanhotos mais ativos e reprodutivos.

Um gafanhoto adulto é capaz de comer o equivalente ao seu peso corporal por dia. Plantações de trigo, arroz e milho são um banquete para os insetos. Um ataque de gafanhotos à nossa agricultura em plena pandemia pode ser um desastre. O agronegócio é o setor mais dinâmico da nossa economia. Em 2004, na África, os insetos causaram danos no valor de US$ 2,5 bilhões para as lavouras. O historiador romano Plínio, o Velho, registrou a morte de 800 mil pessoas na região que atualmente engloba Líbia, Argélia e Tunísia por causa da devastação das lavouras por essa praga bíblica. A China acaba de Anunciar a mobilização de 100 mil patos para combater uma nuvem de 400 bilhões de gafanhotos que se aproxima da fronteira com a Índia e o Paquistão.

Já nos basta a peste. Aqui no Brasil, a pandemia da covid-19, ontem, atingiu a marca de 57 mortes por hora, ou seja, quase uma por minuto. O relaxamento precoce do isolamento social e a política de imunização de rebanho não-declarada caminham de mãos dadas, estamos longe do pico. Ontem, em audiência no Congresso, o ministro interino da Saúde, general Eduardo Pozuello, garantiu que o governo dará “transparência infinita” às informações e anunciou que o Ministério da Saúde passará a considerar o diagnóstico dos médicos, e não apenas os testes, para contabilizar os casos confirmados. Ou seja, jogou a toalha em relação à política de testagem em massa para monitoramento dos infectados.

Os números oficiais de ontem são 52.645 mortes e 1.145.906 casos confirmados, sendo 1.374 mortes e 39.436 novos casos nas últimas 24 horas. Segundo o Ministério da Saúde, há 479.916 pacientes em acompanhamento, enquanto 613.345 foram recuperados, o que não deixa de ser uma boa notícia. A notícia pior é a queda de anticorpos em pacientes assintomáticos dois meses após a infecção por covid-19. Em artigo publicado pela Nature Medicine, o cientista Ai-Long Hua, da Universidade Médica de Chongqing, na China, constatou em 37 pacientes assintomáticos com o Sars CoV-2 que, oito semanas depois, os níveis de anticorpos neutralizantes diminuíram 81,1%. O estudo não é conclusivo, mas acendeu uma luz amarela para a possibilidade de as pessoas contraírem a doença mais de uma vez.

Fiem-se em milagres e não corram…

As maratonas olímpicas costumam iniciar-se com duas voltas ao estádio. Nesse momento, é habitual um concorrente acelerar só para poder ser visto na frente, a comandar o pelotão, e a ganhar alguns minutinhos de fama na transmissão da TV e a receber os aplausos dos espectadores. Depois, acaba por “desaparecer” porque não consegue manter aquele ritmo durante os mais de 42 km da corrida. Este “clássico” das maratonas merece ser recordado agora, na maratona pandémica em que estamos envolvidos. Com uma certeza, desde já: ninguém ganha uma maratona por decreto nem por milagre e, muito menos, a tentar ganhar uns minutos de fama nos primeiros quilómetros.

Só porque, no primeiro embate, não vivemos o caos e a mortandade de italianos, espanhóis, americanos ou brasileiros, não há nem haverá qualquer “milagre português” em relação à Covid-19. Tivemos, isso sim, a vantagem de assistir ao vírus a chegar primeiro a outros países e, contra as expectativas dos habituais pessimistas, o nosso Serviço Nacional de Saúde ter demonstrado a sua resiliência, graças à competência e dedicação dos seus profissionais. De resto, o que nos “salvou” foi o medo, aquele impulso irracional que fez as pessoas refugiarem-se em casa, fecharem escolas e comércios, ainda antes de o Governo decretar o estado de emergência.


Ao fim de três meses, o medo de ficar sem sustento tornou-se, no entanto, superior ao medo de se ser infetado. Era preciso reabrir a economia já quase moribunda e tentar que os níveis de consumo subissem para salvar negócios e empregos. Tudo correto. Só que era desnecessário anunciar essa nova etapa como se o pior já tivesse passado, graças ao tão proclamado e elogiado “milagre português” – ainda para mais quando este é alicerçado em números que, como se vê, mudam depressa e podem ser sempre lidos de maneira diferente, conforme as comparações e os pontos de vista.

Não faz qualquer sentido, perante uma crise mundial como esta, falar em milagres. Seria até um contrassenso, em 2020, quando todo um planeta está expectante sobre a resposta da comunidade científica para conseguir encontrar um tratamento eficaz ou uma vacina. Não há milagre – há boas ou más decisões. E, para haver decisões melhores, é preciso que exista informação o mais completa possível sobre o problema que precisamos de solucionar. Para enfrentarmos a ameaça da pandemia já não chega indicar, burocraticamente, quais os concelhos com maior número de novos casos confirmados ou continuar a dividir o País em regiões administrativas que, no caso do vírus, não significam nada – o contágio estabelece-se através de correntes de ligação, não importa as fronteiras que se desenhem no mapa. Para quê continuar a insistir, por exemplo, no debitar do aumento de casos em Lisboa e Vale do Tejo, uma região administrativa de que 99% dos portugueses desconhece os limites e que alberga uma população superior a 3,5 milhões de pessoas (mais do que sete países da União Europeia)?. É preciso, isso sim, saber a localização exata de cada cluster de infeção, em cada bairro ou aglomerado, e atuar depressa. Nesses locais, com as pessoas informadas, o medo será útil para ajudar a combater o contágio. Nos outros, onde não existe qualquer ligação real, mas apenas administrativa, não adianta continuar a insistir nele, até porque o resultado será o contrário e conduz às aglomerações de pessoas. Mais: é preciso ter consciência de que muitas das atuais correntes de contágio têm origem em pessoas de classes mais desfavorecidas que sempre tiveram de continuar a trabalhar no exterior, em profissões nas quais não era possível o teletrabalho. É preciso criar condições específicas para elas, de forma a que possam continuar a garantir o sustento, em período de confinamento.

Temos de ter a consciência de que estamos a correr uma maratona. Portanto, quanto mais abrirmos, mais novos casos irão surgir. As últimas semanas têm sido eloquentes nessa tendência: quase todos os dias, batem-se os recordes de novas infeções em todo o mundo. Esta semana, ultrapassou-se a marca dos nove milhões de infetados e estamos prestes a chegar, a nível global, ao meio milhão de mortes. Numa região da Alemanha foi necessário adotar novas medidas de confinamento, na Coreia do Sul cresce o receio de uma segunda vaga, em África os sinais são cada vez mais alarmantes. As maratonas só se ganham no fim. E se já vi muitos campeões olímpicos elevados à condição de heróis, nunca vi nenhum adorado como santo milagreiro.
Rui Tavares Guedes