Só porque, no primeiro embate, não vivemos o caos e a mortandade de italianos, espanhóis, americanos ou brasileiros, não há nem haverá qualquer “milagre português” em relação à Covid-19. Tivemos, isso sim, a vantagem de assistir ao vírus a chegar primeiro a outros países e, contra as expectativas dos habituais pessimistas, o nosso Serviço Nacional de Saúde ter demonstrado a sua resiliência, graças à competência e dedicação dos seus profissionais. De resto, o que nos “salvou” foi o medo, aquele impulso irracional que fez as pessoas refugiarem-se em casa, fecharem escolas e comércios, ainda antes de o Governo decretar o estado de emergência.
Ao fim de três meses, o medo de ficar sem sustento tornou-se, no entanto, superior ao medo de se ser infetado. Era preciso reabrir a economia já quase moribunda e tentar que os níveis de consumo subissem para salvar negócios e empregos. Tudo correto. Só que era desnecessário anunciar essa nova etapa como se o pior já tivesse passado, graças ao tão proclamado e elogiado “milagre português” – ainda para mais quando este é alicerçado em números que, como se vê, mudam depressa e podem ser sempre lidos de maneira diferente, conforme as comparações e os pontos de vista.
Não faz qualquer sentido, perante uma crise mundial como esta, falar em milagres. Seria até um contrassenso, em 2020, quando todo um planeta está expectante sobre a resposta da comunidade científica para conseguir encontrar um tratamento eficaz ou uma vacina. Não há milagre – há boas ou más decisões. E, para haver decisões melhores, é preciso que exista informação o mais completa possível sobre o problema que precisamos de solucionar. Para enfrentarmos a ameaça da pandemia já não chega indicar, burocraticamente, quais os concelhos com maior número de novos casos confirmados ou continuar a dividir o País em regiões administrativas que, no caso do vírus, não significam nada – o contágio estabelece-se através de correntes de ligação, não importa as fronteiras que se desenhem no mapa. Para quê continuar a insistir, por exemplo, no debitar do aumento de casos em Lisboa e Vale do Tejo, uma região administrativa de que 99% dos portugueses desconhece os limites e que alberga uma população superior a 3,5 milhões de pessoas (mais do que sete países da União Europeia)?. É preciso, isso sim, saber a localização exata de cada cluster de infeção, em cada bairro ou aglomerado, e atuar depressa. Nesses locais, com as pessoas informadas, o medo será útil para ajudar a combater o contágio. Nos outros, onde não existe qualquer ligação real, mas apenas administrativa, não adianta continuar a insistir nele, até porque o resultado será o contrário e conduz às aglomerações de pessoas. Mais: é preciso ter consciência de que muitas das atuais correntes de contágio têm origem em pessoas de classes mais desfavorecidas que sempre tiveram de continuar a trabalhar no exterior, em profissões nas quais não era possível o teletrabalho. É preciso criar condições específicas para elas, de forma a que possam continuar a garantir o sustento, em período de confinamento.
Temos de ter a consciência de que estamos a correr uma maratona. Portanto, quanto mais abrirmos, mais novos casos irão surgir. As últimas semanas têm sido eloquentes nessa tendência: quase todos os dias, batem-se os recordes de novas infeções em todo o mundo. Esta semana, ultrapassou-se a marca dos nove milhões de infetados e estamos prestes a chegar, a nível global, ao meio milhão de mortes. Numa região da Alemanha foi necessário adotar novas medidas de confinamento, na Coreia do Sul cresce o receio de uma segunda vaga, em África os sinais são cada vez mais alarmantes. As maratonas só se ganham no fim. E se já vi muitos campeões olímpicos elevados à condição de heróis, nunca vi nenhum adorado como santo milagreiro.
Rui Tavares Guedes
Nenhum comentário:
Postar um comentário