sábado, 27 de junho de 2020

Fiem-se em milagres e não corram…

As maratonas olímpicas costumam iniciar-se com duas voltas ao estádio. Nesse momento, é habitual um concorrente acelerar só para poder ser visto na frente, a comandar o pelotão, e a ganhar alguns minutinhos de fama na transmissão da TV e a receber os aplausos dos espectadores. Depois, acaba por “desaparecer” porque não consegue manter aquele ritmo durante os mais de 42 km da corrida. Este “clássico” das maratonas merece ser recordado agora, na maratona pandémica em que estamos envolvidos. Com uma certeza, desde já: ninguém ganha uma maratona por decreto nem por milagre e, muito menos, a tentar ganhar uns minutos de fama nos primeiros quilómetros.

Só porque, no primeiro embate, não vivemos o caos e a mortandade de italianos, espanhóis, americanos ou brasileiros, não há nem haverá qualquer “milagre português” em relação à Covid-19. Tivemos, isso sim, a vantagem de assistir ao vírus a chegar primeiro a outros países e, contra as expectativas dos habituais pessimistas, o nosso Serviço Nacional de Saúde ter demonstrado a sua resiliência, graças à competência e dedicação dos seus profissionais. De resto, o que nos “salvou” foi o medo, aquele impulso irracional que fez as pessoas refugiarem-se em casa, fecharem escolas e comércios, ainda antes de o Governo decretar o estado de emergência.


Ao fim de três meses, o medo de ficar sem sustento tornou-se, no entanto, superior ao medo de se ser infetado. Era preciso reabrir a economia já quase moribunda e tentar que os níveis de consumo subissem para salvar negócios e empregos. Tudo correto. Só que era desnecessário anunciar essa nova etapa como se o pior já tivesse passado, graças ao tão proclamado e elogiado “milagre português” – ainda para mais quando este é alicerçado em números que, como se vê, mudam depressa e podem ser sempre lidos de maneira diferente, conforme as comparações e os pontos de vista.

Não faz qualquer sentido, perante uma crise mundial como esta, falar em milagres. Seria até um contrassenso, em 2020, quando todo um planeta está expectante sobre a resposta da comunidade científica para conseguir encontrar um tratamento eficaz ou uma vacina. Não há milagre – há boas ou más decisões. E, para haver decisões melhores, é preciso que exista informação o mais completa possível sobre o problema que precisamos de solucionar. Para enfrentarmos a ameaça da pandemia já não chega indicar, burocraticamente, quais os concelhos com maior número de novos casos confirmados ou continuar a dividir o País em regiões administrativas que, no caso do vírus, não significam nada – o contágio estabelece-se através de correntes de ligação, não importa as fronteiras que se desenhem no mapa. Para quê continuar a insistir, por exemplo, no debitar do aumento de casos em Lisboa e Vale do Tejo, uma região administrativa de que 99% dos portugueses desconhece os limites e que alberga uma população superior a 3,5 milhões de pessoas (mais do que sete países da União Europeia)?. É preciso, isso sim, saber a localização exata de cada cluster de infeção, em cada bairro ou aglomerado, e atuar depressa. Nesses locais, com as pessoas informadas, o medo será útil para ajudar a combater o contágio. Nos outros, onde não existe qualquer ligação real, mas apenas administrativa, não adianta continuar a insistir nele, até porque o resultado será o contrário e conduz às aglomerações de pessoas. Mais: é preciso ter consciência de que muitas das atuais correntes de contágio têm origem em pessoas de classes mais desfavorecidas que sempre tiveram de continuar a trabalhar no exterior, em profissões nas quais não era possível o teletrabalho. É preciso criar condições específicas para elas, de forma a que possam continuar a garantir o sustento, em período de confinamento.

Temos de ter a consciência de que estamos a correr uma maratona. Portanto, quanto mais abrirmos, mais novos casos irão surgir. As últimas semanas têm sido eloquentes nessa tendência: quase todos os dias, batem-se os recordes de novas infeções em todo o mundo. Esta semana, ultrapassou-se a marca dos nove milhões de infetados e estamos prestes a chegar, a nível global, ao meio milhão de mortes. Numa região da Alemanha foi necessário adotar novas medidas de confinamento, na Coreia do Sul cresce o receio de uma segunda vaga, em África os sinais são cada vez mais alarmantes. As maratonas só se ganham no fim. E se já vi muitos campeões olímpicos elevados à condição de heróis, nunca vi nenhum adorado como santo milagreiro.
Rui Tavares Guedes

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