terça-feira, 3 de março de 2020
Governo mentiroso
A comunicação direcionada a um grupo da sociedade, mas como se tal fosse o povo brasileiro ele mesmo, fundamenta-se na própria fé totalitária que o bolsonarismo prega: a do poder popular, soberano, que se confunde com o líder populista até não ser mais possível distinguir um de outro — o que validaria o aterramento da democracia representativa. É o projeto.
Vejamos o caso do Orçamento impositivo —o novo combustível para a indústria de conflitos destinados a enfraquecer o Parlamento. No curso de 2019, a matéria teve adesão quase absoluta dos bolsonaristas; isto a ponto de merecer — ainda em março — palavras de exaltação de Eduardo Bolsonaro. Era, segundo o deputado, vitória do Legislativo e da independência entre poderes. Tratava-se, então, das emendas de bancada — rubrica que transferia parte do orçamento às mãos do Congresso. O governo avalizara.
Nada mudaria em dezembro, quando da votação da Lei de Diretrizes Orçamentárias, ocasião em que se aprovou o hoje controverso controle parlamentar sobre a execução das emendas de relator — os R$ 30 bilhões cujo domínio está em xeque. De minha parte, penso ser mesmo — esse ponto específico — avanço excessivo, gerador de desequilíbrio, do Parlamento sobre o Orçamento.
Mas o que posso fazer senão falar?
A hoje indignada bancada bolsonarista, no entanto, votou, caladinha, a favor da lei — com parcas exceções, entre as quais não Eduardo Bolsonaro. Ele, líder do PSL, poderia ter proposto um destaque e enfrentado a porção ora nociva — de súbito tornada mecanismo para chantagem contra o governo — da LDO; mas não o fez. E não o fez, só pode ser isto, por incompetência — por não saber o que se votava.
Fato consumado, lei aprovada, Executivo estrangulado, veto do presidente anunciado, o governo correu, por meio da dupla general Ramos e Paulo Guedes, para montar um plano B, um acordo que minimizasse os prejuízos e partilhasse aquele montante entre Congresso e ministérios — acordo que elementos do mesmo governo não hesitariam em dinamitar.
O governo funciona assim: na planície, sem publicidade, costura e negocia, lançando mão do que se poderia, segundo critérios bolsonaristas, chamar de toma lá dá cá; no Planalto, contando com a multiplicação desinformante de seus milicianos digitais, nega o que pactuou, trai a palavra empenhada, joga pra galera e ataca aquele com quem (legitimamente) se acertara. No caso, o Parlamento. Tem sido assim desde o começo.
É o que permite ao governo — o que mais liberou emendas parlamentares em primeiro ano de gestão da história — propagandear-se como vítima da conspiração de um Congresso chantagista. Para essa distorção dos fatos servem figuras como general Heleno, aquele que disparou o gatilho da nova rodada de intimidação do Legislativo; aquele, chefe do GSI, que teve — sem querer — declarações de afronta ao Congresso captadas por uma transmissão ao vivo gerada pelo próprio governo. Ok. Acredito.
Ato contínuo, decerto sem qualquer coordenação, lá estavam os movimentos de rua bolsonaristas convocando para protesto contra o Parlamento. Não demorou até que montagens com fotos de generais — vendendo a ideia de intervenção militar — circulassem como peças de divulgação das manifestações. E não tardaria para que o presidente compartilhasse vídeos chamando para os atos — seguramente (né?) sem qualquer intenção de que sua mensagem fosse vazada à imprensa. Foi.
Teve início, então, um novo ciclo de imposturas sobrepostas, de ataque a jornalistas — e de exposição da misoginia que caracteriza o bolsonarismo. Sob o estado de guerra em que se move um Bolsonaro em campanha permanente, tudo vale. É o que explica — mesmo com seus embustes descortinados pela exibição da verdade — haver dobrado a aposta na mentira. Ele sabe o que quer — nada a ver com as reformas estruturais de que o país precisa — e para quem fala.
Abençoado motim
Governo Bolsonaro descumpre Lei de Acesso à Informação e não responde sobre Bolsa Família
Procurada, a assessoria de imprensa do ministério informou, por meio de nota, que “em respeito ao princípio constitucional da transparência e para que a sociedade seja informada por números oficiais, o ministério da Cidadania esclarece que os dados estão em processo de consolidação e logo serão divulgados”. Mas não deu novo prazo.
Desde ao menos o início deste ano, a gestão Bolsonaro não explica o tamanho real da fila do Bolsa Família. Questionado, o ministério da Cidadania limitou-se a informar uma “média” para o ano passado, em torno de 494.000 famílias. Mas cálculos realizados pelo EL PAÍS apontaram para ao menos 1,7 milhão de famílias à espera, no mês de dezembro do ano passado. A forma para receber o benefício é se cadastrando no Cadastro Único e obedecendo aos critérios determinados pelo programa, como ter filhos matriculados e com frequência escolar, e não ultrapassar a renda de 178 reais per capita. A partir do cadastro, é feito um pente fino na quantidade de famílias aptas a receber o programa que é então concedido. A média de espera para uma resposta ao beneficiário girava em torno de 45 dias. Mas a reportagem mostrou que desde maio do ano passado há uma fila represada de famílias à espera do programa, que aumenta a cada mês.
Em dezembro de 2019, o Bolsa Família beneficiou 13 milhões de famílias, 1 milhão a menos que no mesmo período de 2018. A crise na gestão do programa levou o presidente a mudar o comando da pasta, tirando Osmar Terra, que estava no ministério desde a gestão Temer, e levando Onyx Lorenzoni para o comando.
Embostelados
Se milhões de brasileiros se escandalizam com Bolsonaro atacando mulheres, negros, gays, professores, jornalistas, com o Bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus (leia-se Edir Macedo, seu tio) não é diferente. Além da inépcia administrativa e moralismo barato, Crivella ofende pobres e miseráveis com a mesma desenvoltura do parceiro.
O lado cristão de Marcelo Crivella e Jair Bolsonaro não passa de falsa e anacrônica evangelização de seu "rebanho". O beijo gay em uma das páginas do HQ Vingadores, a Cruzada das Crianças, na Bienal do Livro, ano passado, enlouqueceu o prefeito ultraconservador. Só não confiscou as revistas porque o youtuber Felipe Neto comprou o lote fechado antes dos fiscais de Crivella chegarem à feira.
Passou o Carnaval e o Rio de Janeiro volta a encarar o desqualificado prefeito. E a dura realidade da cidade maravilhosa. Três dias de fortes chuvas, desde sábado, já são 4 mortes. Perdas irreparáveis. Calamidades anunciadas há décadas. Apenas em 2010, 96 pessoas morreram em decorrência de deslizamentos e enchentes. No distante 1960, foram 250 mortos.
Crivella apareceu nessa segunda. Em rede social, acusou a população de "gostar de morar em área de risco". No pior estilo Bolsonaro, disse que moradores da periferia preferem viver ali porque "gastam menos tubo para colocar coco e xixi e ficar livre daquilo".
Cínico. Na entrevista coletiva que ousou dar numa áreas mais atingidas pelas chuvas, foi atacado com lama. A bola de barro forte no seu ombro. Paciência da população tem limite. Sorte de Crivella, não era coco. Nem xixi.
Crivella conhece a realidade sócio-econômica da cidade que governa: 12% da população é muito pobre, 5% vivem em estado de extrema pobre. Nada menos que 83% sobrevivem com menos de dois salários mínimos. Não podem ser seus vizinhos na Barra da Tijuca, ou de Bolsonaro, não é Alcaide?
Tudo indica que Crivella não irá longe. Em dezembro, antes das chuvas de janeiro e março, pesquisa do Datafolha mostrava rejeição de 72% da população ao bispo licenciado. Tem eleição municipal este ano. Por enquanto, Crivella está em último lugar entre prováveis candidatos. Nos resta esperar. Primeiro, outubro de 2020. Depois, o resto.
Solidez da democracia brasileira enfrenta grande teste nas ruas em 15 de março
Esses números se referem exclusivamente aos atos programados para o fim da segunda quinzena. São, portanto, de apoio ao governo.
Entretanto, será preciso analisar seus reflexos e seus efeitos no panorama político institucional do país. O caráter ideológico do movimento nas redes sociais foi medido pelo GPS ideológico, ferramenta da Folha de São Paulo que categorizou 1 milhão e 700 mil contas posicionando seus perfis.
O problema deixou de ser a movimentação de 15 de março e passou ao estágio seguinte, que na minha opinião depende dos efeitos e reflexos que a repercussão poderá causar. Como disse no título, será um grande teste para verificar a solidez democrática do nosso país.
Vale acentuar que o quesito de crítica ao Legislativo e Judiciário sobrepõe-se àquele de defesa do presidente da República, e também supera as restrições ao jornalismo e a oposição parlamentar.
Contudo, não se pode separar as ondas de críticas e as ondas de defesa do presidente Bolsonaro, uma vez que uma coisa é reflexo de outra, na visão dos eleitores que levaram Bolsonaro à vitória nas urnas de 2018. A mesma situação pode ser aplicada à corrente que se coloca contra a imprensa, como se pudesse haver democracia sem a liberdade de imprensa. Portanto, acredito que os três vértices no fundo convergem para uma só plataforma.
O problema essencial no momento deve ser a capacidade de resposta, principalmente nas redes sociais dos que são contrários a qualquer medida que possa abalar o sentimento democrático que voltou a funcionar no Brasil após a vitória da chapa Tancredo Neves/José Sarney, nas eleições indiretas de 85.
Tenho a impressão que efetivamente grupos que formam no governo desejam mudar o jogo destinando poderes quase absolutos ao Palácio do Planalto.
Esquecem que nas democracias pessoa alguma pode governar sozinha e que a própria filosofia da lei remete a síntese de que ela representa a conciliação entre os contrários. Esta definição sobre a lei de modo geral atravessa os séculos reproduzindo o pensamento Hegeliano.
Esse é o panorama atual do país que enfrenta problemas sociais e econômicos de toda a sorte. Basta ver como as redes de televisão têm mostrado a situação de extrema pobreza de comunidades quando são elas atingidas pelas chuvas. Há um círculo de giz marcando nosso atraso no plano fundamental do saneamento. Basta também revelar a situação nos serviços de saúde pública.
São desafios que se tornaram permanentes entre nós. Além desses agora há o desafio político que, no fundo, representa uma ameaça a democracia. As instituições brasileiras assim vão enfrentar mais um grande desafio: as ruas de 15 de março.
241 assassinatos são a medalha dos amotinados 'herois'
Os senhores vão sair daqui do tamanho do Brasil. Já são grandes, já são corajosos. É muita coragem fazer o que os senhores estão fazendo. Não é para todo mundo. Os covardes nunca tentam, os fracos ficam pelo meio do caminho. Só os fortes conseguem atingir os seus objetivos. E vocês estão atingindo seus objetivos. Vocês movimentaram toda uma comissão de Poderes constituídos do estado cearense e do estado brasileiro, do governo federal. Os senhores se agigantaram de uma forma que não tem tamanho, que é do tamanho do Brasil(...) Acreditem, vocês são gigantes, são monstros, são corajososCoronel Antônio Aginaldo de Oliveira, diretor da Força Nacional e marido da deputada federal Carla Zambelli (PSL), que nem citou as 241 mortes durante os nove dias de motim
Marcha da insensatez
Acontece, porém, que tal processo ganha outra significação quando o inimigo passa a ser a própria instituição democrática, como se ela fosse um empecilho para a política a ser implementada. Se a democracia se torna um obstáculo, é porque está em pauta um claro pendor autoritário. A manifestação prevista para o dia 15 é um claro exemplo disso, por estar focada no Congresso Nacional, entendido não como um Poder independente, mas como uma facção a ser suprimida.
Note-se que um argumento frequentemente utilizado diz respeito a que o presidente, eleito dada essa legitimidade, está autorizado a fazer qualquer coisa. Para além do fato óbvio de um presidente se encontrar constitucionalmente limitado, caso contrário seria um tirano, a Câmara dos Deputados e o Senado têm igual legitimidade, por serem os seus representantes igualmente eleitos pelo voto popular. Ambos são frutos da soberania popular, usufruindo as mesmas prerrogativas.
No entanto, o presidente e o seu grupo familiar e digital optaram pelo confronto com a Câmara e o Senado, isto é, escolheram o enfrentamento como outra expressão da vontade popular, pressionando o País para uma ruptura institucional. Se o governo é contrariado, basta eliminar o opositor, no caso, o Legislativo, como se esse Poder devesse ser simplesmente submisso à vontade presidencial.
Uma vez a celeuma instalada, começam a se suceder supostos desmentidos, segundo os quais a mensagem das redes sociais não foi bem a que veio a se tornar pública, após sucessivas reviravoltas em que nem um equilibrista consegue se manter em pé, procedimento, aliás, típico do atual governo. Quando a reação não for a esperada, dá-se um “desmentido”, seguido por outro, numa trapalhada sem fim.
O problema é que fica no caminho o ataque a jornalistas respeitadas, refiro-me aqui a Vera Magalhães, do Estadão, e antes Patrícia Campos Mello, da Folha de S.Paulo. Ambas nada mais fizeram que um trabalho sério. O resultado, porém, foram ataques de baixo nível, ameaças e, institucionalmente, o questionamento do próprio trabalho da imprensa, pejorativamente tratada de “extrema imprensa”. Contudo a “extrema imprensa” só deve ser extrema na defesa das liberdades, que são ameaçadas por aqueles que a atacam.
O governo tem uma nítida dificuldade de articular politicamente os seus projetos. A reforma da Previdência passou mais pela habilidade do deputado Rodrigo Maia, presidente da Câmara, com o apoio do presidente do Senado, David Alcolumbre, do que por uma efetiva articulação presidencial. Uma vez aprovada a reforma, nada mais conseguiu, fazendo com que os seus ataques dobrem, quando são apenas o produto precisamente dessa falta de negociação.
Reformas não avançam se não forem o resultado do diálogo entre os Poderes. Atos de imposição ou de força de nada adiantam.
O atual momento torna-se ainda mais problemático pelo fato de o presidente ter literalmente militarizado o Palácio do Planalto, além de outros ministérios, como se precisasse de uma fortaleza para se proteger. Na verdade, houve um enclausuramento no núcleo familiar e dos assistentes mais próximos, de cunho preponderantemente ideológico, até mesmo alguns militares passando a defender tais posições. Entendia-se no início do atual governo que os militares teriam a função de moderação, algo que agora não se está confirmando, na medida em que o incitamento para as manifestações do dia 15 partiu de um ministro militar. Felizmente, um ex-ministro igualmente militar qualificou tal chamado de “irresponsabilidade”.
A imagem das Forças Armadas e, em particular, do Exército terminou por ser associada ao atual governo, segundo a percepção da opinião pública. Esta não faz a distinção entre oficiais da reserva e da ativa, sobretudo quando os primeiros têm tal proeminência. Ademais, dois dos ministros militares do palácio estão ainda na ativa, embora um deles, segundo foi noticiado, estaria para passar para a reserva.
Nesse sentido, pode-se dizer que o Exército fez uma aposta arriscada. Se o atual governo der certo – o que não é hoje evidente –, ficará com os louros. Se fracassar, ficará com toda a responsabilidade, perdendo o imenso prestígio que conquistou no processo de redemocratização do País, tornando-se um dos seus pilares.
No atual contexto institucional, sábios seriam o presidente e o seu grupo se cancelassem as manifestações do dia 15. Fariam um grande serviço à Nação. Do contrário, o País seguirá na marcha da insensatez.
Salmo do homem que vê a realidade e não se cala
Ao contemplar a realidade em que vivo.
Maltido seja o sistema que não deixa sonhar os poetas
Nem permite dizer a verdade a quem pensa.
Serão seus dias de luto e de lamento,
Porque matou no Homem o mais digno.
Maldito o sistema que não pratica a justiça
E persegue e tortura e encarcera a quem anuncia.
Terá que justificar sua conduta ante a história
E não encontrará nenhuma palavra de defesa.
Maldito seja o sistema que só procura a aparência de grandeza
Quando estão morrendo de fome os homens nas suas fronteiras;
Do mesmo modo que progrediu cairá,
Porque construiu seus alicerces
Sobre corpos vivos e sangues inocentes.
E coloca no seu lugar o “deus dinheiro” , o “deus sexo”, e “deus progresso”,
Destruir-se-á por dentro irremissivelmente,
Porque o coração do homem foi bem feito
E ninguém pode matar em nós
Esta sede de infinito que nos queima.
Feliz será, porém,
O homem que bebe água na fonte da praça junto ao povo,
Não terá motivos para se envergonhar de nada,
Nem terá que baixar seus olhos
Ante qualquer homem honesto.
Feliz o homem que a força de interiorizar
Se fez livre por dentro
E não se importa já com a denúncia dos fortes,
Serão seus dias como o trigo da terra.
Cheios de sol e esperança partilhada
E o seguirão os povos da terra.
Feliz o homem que não assiste a reuniões importantes
Nem acredita nos discursos do governo;
Feliz o homem que assim pensa,
Porque terá sempre tranquila a sua consciência.
Mesmo que sofra a incompreensão e até o desprezo.
Ernesto Cardenal (1925-2020)
Assinar:
Postagens (Atom)