Theodor W. Adorno
terça-feira, 9 de dezembro de 2025
Radicalismo de direita
Talvez alguns entre os senhores me perguntarão ou me perguntariam o que penso sob o futuro do radicalismo de direita. Penso que essa pergunta é falsa, pois ela é demasiado contemplativa. Nessa forma de pensar, que vê de antemão essas coisas como catástrofes naturais, sobre as quais se fazem previsões assim como sobre furacões ou sobre desastres meteorológicos, há já uma espécie de resignação na qual as pessoas desligam-se enquanto sujeitos políticos, há aí uma má relação de espectador com a realidade. Como essas coisas vão evoluir e a responsabilidade sobre como elas vão evoluir – isso depende, em última instância, de nós.
O Estado a que chegámos
Sentam-se ao meu lado no restaurante do bairro. A sala está cheia. As mesas estão encostadas. Têm os dois camisas brancas, gravatas azuis, calças cinzentas. Um deles já passou dos 40, o outro deve andar pelos 60. “Então, os miúdos?”, pergunta o mais velho, sem saber bem por onde começar a conversa, enquanto as azeitonas chegam à mesa. “Estão no colégio, não é?” O outro responde que a mais nova está na escola pública. “Na escola pública?”, quase se engasga de espanto. “E não estão sempre a faltar?”, interroga, curioso, perante aquela extravagância do colega de almoço. “É uma escola pequena, quase não há greves. Funciona bem. Depois do 4º ano é que a coisa piora. Vai ser preciso mudar”, assevera o mais novo, tentando tranquilizar o mais velho, que lá concede, com um suspiro, que “se é assim, está bem”.
Chega o jarro de vinho tinto da casa à mesa. Sai um cachaço de porco para um, um bacalhau espiritual para outro. E a conversa continua à volta das crianças. “Aquilo no colégio do mais velho é que é só faturar”, comenta o mais novo dos comensais. “Só faturar, pois, só faturar”, reage o outro, em tom de galhofa, gargalhada aberta, enquanto cospe um caroço de azeitona e enumera as coisas “pagas à parte”, que ainda se lembra bem dos tempos em que a filha andava também numa escola privada. “São 750 euros por mês”, revela o mais novo. O mais velho estaca. “São 750 euros por mês?”, pergunta, de olhos arregalados, talvez fazendo as contas ao que ganha o colega, num cálculo rápido e assustado. “Mas ao menos come lá?”, quer saber. “Come”, sossega-o o outro, que acrescenta ao rol das despesas as exigências de materiais. “No outro dia, andei a correr não sei quantas lojas atrás de uma marca de lápis. Aquilo era caríssimo! O vendedor até me explicou que os lápis eram feitos com madeira de cedro ou não sei o quê… E eu quero lá saber! São lápis! Mas eles pedem”, resigna-se.
O mais velho lembra-se bem de como era quando a miúda estava no colégio. “Eu bem lhe dizia: ‘Não precisas de levar esse esquadro XTPO, não vais fazer desenho profissional! Levas esse e depois, se não der, logo se vê’”, recorda entre mais uma garfada de porco e batatas fritas. Chegou ao fim o jarro de tinto de casa. “Traga mais antes que acabe”, brincam para o empregado, acenando o recipiente vazio.
Começam, então, a falar do trabalho “lá do banco”, das colegas que se zangaram e do chefe novo que acabou de chegar. “Aquilo é a cultura lá do norte. Disciplina”, comenta o mais velho. “Pois, é a sério”, concorda o mais novo. Percebo, pela conversa, que estão os dois mais ou menos no mesmo barco, que neste caso é uma das agências bancárias das redondezas e que ambos encaram com algum receio o chefe novo e os novos métodos. O tom gabarolas não o esconde. Não são patrões nem banqueiros, não são CEO nem grandes investidores, não são sequer diretores. Tenho quase a certeza de que se encolheriam, com o mesmo desdém com que o mais velho encarou a hipótese de alguém pôr um filho na escola pública, se lhes dissesse o que são. Mas são isso. São trabalhadores.
Vêm de gravata ao restaurante que faz o menu do dia a 12 euros. Mas estão apertados. Estão apertados porque cada vez menos lhes chega do Estado social. Se põem um filho na escola pública, sentem quase a culpa de não estar a fazer esforço suficiente por ele. Não lhes passa pela cabeça exigir que a escola pública melhore. Isso que é de graça é para os outros, eles não, eles trabalham, não precisam cá de esmolas. E se precisam é só até à coisa se endireitar e conseguirem, a muito esforço, pagar o colégio, mesmo que ele leve uma fatia demasiado grande do rendimento familiar. É o que é. “É só faturar”, como dizia o outro, mas nada de questionar, que a escola pública é cada vez mais um lugar para os pobres, para os que ficam para trás, cheio de gente que nem fala português, vazio de professores e técnicos, uma bandalheira de faltas e greves, para onde ninguém no seu juízo atiraria os filhos, tendo outra opção, ainda que não se trate bem de opção, mas de um sacrifício. Que diabo! É um sacrifício necessário. Nem se questiona.
Não falaram de doenças, mas aposto que têm o seguro de saúde lá do banco. E, enquanto assim for, é menos uma dor de cabeça, que isto dos hospitais públicos já se sabe como é e dos centros de saúde o melhor é nem falar. Sorte foi as mulheres terem parido quando ainda não era preciso andar em bolandas, numa gincana entre hospitais, a ver qual deles terá a urgência aberta. O pior será se um dia tiverem um acidente grave ou um cancro ou uma daquelas doenças raras de nomes impronunciáveis que só se tratam com medicamentos que custam milhões. Aí, logo se vê. Mas, para já, hospitais públicos só os veem nas notícias e, claro, sabem bem que estão à pinha com os imigrantes que vêm para cá para se tratar às nossas custas, mesmo que os jornais expliquem que não é bem assim e as estatísticas o desmintam. Também quem é que ainda lê jornais? A vida já é complicada o suficiente para se estar a encher mais a cabeça com desgraças.
Saí do restaurante antes de eles chegarem à sobremesa. Deixei o mais novo a admitir que “até podia trabalhar mais, se houvesse outra organização”, num desabafo sincero, que não mereceu resposta do mais velho, visivelmente mais calejado nestas coisas, sabedor de que não é boa política mostrar fraquezas e muito menos admitir que não se faz tudo o que se pode e mais um pouco ainda. Mas, pronto, o rapaz ainda é novo, coitado, não sabe tudo da vida. Até tem a mais nova numa escola pública, vejam bem.
Há uns tempos, noutro restaurante popular no bairro ao lado, à hora de almoço, fiquei ao pé de outros dois homens de camisas brancas, mas abertas, sem gravata, com um sotaque afetado, que em menos de nada começaram a rosnar contra o adicional ao IMI – cobrado aos imóveis cuja soma do valor patrimonial tributário supera os 600 mil euros. “O imposto Mortágua”, diziam, entre a raiva e o desdém, como quem descreve um assalto. Estavam muito zangados com os impostos em geral, mas com este em particular. E lembro-me de ter pensado em como estavam bem na vida para, tão novos (ainda não chegavam aos 50), já terem este tipo de problemas. Há, de facto, problemas que são um luxo.
Os meus vizinhos de almoço, desta vez, não me parecem padecer do mesmo tipo de ansiedades tributárias. Mas, pelo pouco que lhes ouvi e pelo resto que imagino – concedam à cronista esse exercício de alguma ficção –, quase aposto que teriam reagido bem se, para meter conversa, me tivesse posto a atacar o Estado e os impostos. Não sabendo a afinidade clubística de quem está ao lado, esse é o tema mais seguro para quem quer fazer amigos de ocasião em conversas de tasco.
Sabem que mais? Não os julgo. Não com a intensidade com que julguei os dois betos endinheirados, enojados com a ideia de pagar entre 0,7% e 1% a mais de IMI sobre imóveis avaliados (sublinhem o “avaliados”) entre os 600 mil e o milhão de euros. Estes dois bancários não são rentistas e será até excessivo chamar-lhes capitalistas. São só assalariados em negação. Estão endoutrinados na ideia de que devem pagar por tudo aquilo que já pagam nos impostos.
Não é estranho que se revoltem contra os impostos. Não é estranho que se sintam espoliados. Concedo até que se sintam um pouco explorados, quando veem o que pagam para não usufruir de quase nada. E vejo que é aí, nesse ponto sensível, que fica o lugar onde medra o ódio pelo outro, aquele que não se esforça e “vive de subsídios”, mesmo que esse outro seja tão imaginado como essas fortunas de subsídios ou que esse viver seja, afinal, tão miserável que não há como o invejar.
Um Estado que anda há décadas a cortar, até se amputar no mais básico. Um Estado que acha que os serviços que presta – cada vez menos e cada vez pior – são uma espécie de esmola, que deve ser reservada aos mais pobres. Um Estado que abre os bolsos às Web Summits e dá bodos de descontos às maiores empresas, que oferece benefícios fiscais a estrangeiros ricos e a fundos que especulam com a habitação até ela deixar de ser um direito e se parecer mais com um ativo numa folha de Excel. Um Estado assim não pode admirar-se que a porta ao fascismo comece a abrir-se.
O Estado a que chegámos, meus amigos, é este. Não o escrevo com fatalismo. Recuso-me a acreditar que isto não tenha remédio. Mas escrevo-o para que fique claro que estas coisas não aparecem do nada nem são só o produto de algoritmos viciados em vídeos extremistas. O terreno onde o ódio cresce anda a ser lavrado há anos. Arrancar-lhe as raízes não se fará com as políticas do costume.
Chega o jarro de vinho tinto da casa à mesa. Sai um cachaço de porco para um, um bacalhau espiritual para outro. E a conversa continua à volta das crianças. “Aquilo no colégio do mais velho é que é só faturar”, comenta o mais novo dos comensais. “Só faturar, pois, só faturar”, reage o outro, em tom de galhofa, gargalhada aberta, enquanto cospe um caroço de azeitona e enumera as coisas “pagas à parte”, que ainda se lembra bem dos tempos em que a filha andava também numa escola privada. “São 750 euros por mês”, revela o mais novo. O mais velho estaca. “São 750 euros por mês?”, pergunta, de olhos arregalados, talvez fazendo as contas ao que ganha o colega, num cálculo rápido e assustado. “Mas ao menos come lá?”, quer saber. “Come”, sossega-o o outro, que acrescenta ao rol das despesas as exigências de materiais. “No outro dia, andei a correr não sei quantas lojas atrás de uma marca de lápis. Aquilo era caríssimo! O vendedor até me explicou que os lápis eram feitos com madeira de cedro ou não sei o quê… E eu quero lá saber! São lápis! Mas eles pedem”, resigna-se.
O mais velho lembra-se bem de como era quando a miúda estava no colégio. “Eu bem lhe dizia: ‘Não precisas de levar esse esquadro XTPO, não vais fazer desenho profissional! Levas esse e depois, se não der, logo se vê’”, recorda entre mais uma garfada de porco e batatas fritas. Chegou ao fim o jarro de tinto de casa. “Traga mais antes que acabe”, brincam para o empregado, acenando o recipiente vazio.
Começam, então, a falar do trabalho “lá do banco”, das colegas que se zangaram e do chefe novo que acabou de chegar. “Aquilo é a cultura lá do norte. Disciplina”, comenta o mais velho. “Pois, é a sério”, concorda o mais novo. Percebo, pela conversa, que estão os dois mais ou menos no mesmo barco, que neste caso é uma das agências bancárias das redondezas e que ambos encaram com algum receio o chefe novo e os novos métodos. O tom gabarolas não o esconde. Não são patrões nem banqueiros, não são CEO nem grandes investidores, não são sequer diretores. Tenho quase a certeza de que se encolheriam, com o mesmo desdém com que o mais velho encarou a hipótese de alguém pôr um filho na escola pública, se lhes dissesse o que são. Mas são isso. São trabalhadores.
Vêm de gravata ao restaurante que faz o menu do dia a 12 euros. Mas estão apertados. Estão apertados porque cada vez menos lhes chega do Estado social. Se põem um filho na escola pública, sentem quase a culpa de não estar a fazer esforço suficiente por ele. Não lhes passa pela cabeça exigir que a escola pública melhore. Isso que é de graça é para os outros, eles não, eles trabalham, não precisam cá de esmolas. E se precisam é só até à coisa se endireitar e conseguirem, a muito esforço, pagar o colégio, mesmo que ele leve uma fatia demasiado grande do rendimento familiar. É o que é. “É só faturar”, como dizia o outro, mas nada de questionar, que a escola pública é cada vez mais um lugar para os pobres, para os que ficam para trás, cheio de gente que nem fala português, vazio de professores e técnicos, uma bandalheira de faltas e greves, para onde ninguém no seu juízo atiraria os filhos, tendo outra opção, ainda que não se trate bem de opção, mas de um sacrifício. Que diabo! É um sacrifício necessário. Nem se questiona.
Não falaram de doenças, mas aposto que têm o seguro de saúde lá do banco. E, enquanto assim for, é menos uma dor de cabeça, que isto dos hospitais públicos já se sabe como é e dos centros de saúde o melhor é nem falar. Sorte foi as mulheres terem parido quando ainda não era preciso andar em bolandas, numa gincana entre hospitais, a ver qual deles terá a urgência aberta. O pior será se um dia tiverem um acidente grave ou um cancro ou uma daquelas doenças raras de nomes impronunciáveis que só se tratam com medicamentos que custam milhões. Aí, logo se vê. Mas, para já, hospitais públicos só os veem nas notícias e, claro, sabem bem que estão à pinha com os imigrantes que vêm para cá para se tratar às nossas custas, mesmo que os jornais expliquem que não é bem assim e as estatísticas o desmintam. Também quem é que ainda lê jornais? A vida já é complicada o suficiente para se estar a encher mais a cabeça com desgraças.
Saí do restaurante antes de eles chegarem à sobremesa. Deixei o mais novo a admitir que “até podia trabalhar mais, se houvesse outra organização”, num desabafo sincero, que não mereceu resposta do mais velho, visivelmente mais calejado nestas coisas, sabedor de que não é boa política mostrar fraquezas e muito menos admitir que não se faz tudo o que se pode e mais um pouco ainda. Mas, pronto, o rapaz ainda é novo, coitado, não sabe tudo da vida. Até tem a mais nova numa escola pública, vejam bem.
Há uns tempos, noutro restaurante popular no bairro ao lado, à hora de almoço, fiquei ao pé de outros dois homens de camisas brancas, mas abertas, sem gravata, com um sotaque afetado, que em menos de nada começaram a rosnar contra o adicional ao IMI – cobrado aos imóveis cuja soma do valor patrimonial tributário supera os 600 mil euros. “O imposto Mortágua”, diziam, entre a raiva e o desdém, como quem descreve um assalto. Estavam muito zangados com os impostos em geral, mas com este em particular. E lembro-me de ter pensado em como estavam bem na vida para, tão novos (ainda não chegavam aos 50), já terem este tipo de problemas. Há, de facto, problemas que são um luxo.
Os meus vizinhos de almoço, desta vez, não me parecem padecer do mesmo tipo de ansiedades tributárias. Mas, pelo pouco que lhes ouvi e pelo resto que imagino – concedam à cronista esse exercício de alguma ficção –, quase aposto que teriam reagido bem se, para meter conversa, me tivesse posto a atacar o Estado e os impostos. Não sabendo a afinidade clubística de quem está ao lado, esse é o tema mais seguro para quem quer fazer amigos de ocasião em conversas de tasco.
Sabem que mais? Não os julgo. Não com a intensidade com que julguei os dois betos endinheirados, enojados com a ideia de pagar entre 0,7% e 1% a mais de IMI sobre imóveis avaliados (sublinhem o “avaliados”) entre os 600 mil e o milhão de euros. Estes dois bancários não são rentistas e será até excessivo chamar-lhes capitalistas. São só assalariados em negação. Estão endoutrinados na ideia de que devem pagar por tudo aquilo que já pagam nos impostos.
Não é estranho que se revoltem contra os impostos. Não é estranho que se sintam espoliados. Concedo até que se sintam um pouco explorados, quando veem o que pagam para não usufruir de quase nada. E vejo que é aí, nesse ponto sensível, que fica o lugar onde medra o ódio pelo outro, aquele que não se esforça e “vive de subsídios”, mesmo que esse outro seja tão imaginado como essas fortunas de subsídios ou que esse viver seja, afinal, tão miserável que não há como o invejar.
Um Estado que anda há décadas a cortar, até se amputar no mais básico. Um Estado que acha que os serviços que presta – cada vez menos e cada vez pior – são uma espécie de esmola, que deve ser reservada aos mais pobres. Um Estado que abre os bolsos às Web Summits e dá bodos de descontos às maiores empresas, que oferece benefícios fiscais a estrangeiros ricos e a fundos que especulam com a habitação até ela deixar de ser um direito e se parecer mais com um ativo numa folha de Excel. Um Estado assim não pode admirar-se que a porta ao fascismo comece a abrir-se.
O Estado a que chegámos, meus amigos, é este. Não o escrevo com fatalismo. Recuso-me a acreditar que isto não tenha remédio. Mas escrevo-o para que fique claro que estas coisas não aparecem do nada nem são só o produto de algoritmos viciados em vídeos extremistas. O terreno onde o ódio cresce anda a ser lavrado há anos. Arrancar-lhe as raízes não se fará com as políticas do costume.
Dos pequenos poderes
O tempo em que se cortavam cabeças nas esquadras de polícia do País era também o tempo em que se espancavam estudantes nas manifestações, automobilistas na Ponte 25 de Abril ou, uns poucos anos antes, outros polícias no Terreiro do Paço, no famoso protesto dos “secos contra os molhados”. Uns anos duros e autoritários do “cavaquismo”, em que as forças de segurança refletiam o estilo das lideranças, ao jeito do “eu nunca me engano e raramente tenho dúvidas”. Doa a quem doer.
O crime chocante na esquadra de Santarém, em que o sargento Santos decapitou um suspeito de roubar para alimentar o vício da droga, aconteceu já nos primeiros meses de uma nova era, com o governo de António Guterres, em que as polícias ganharam uma face mais humanista. Mudaram muito, de facto, porque o discurso político assim os orientou. A palavra, vinda de cima, tem esse efeito, quando usada de forma responsável, sensata, com sentido de Estado.
Não é que os nossos líderes políticos sejam responsáveis por tudo e mais alguma coisa, mas o oposto também não é verdadeiro. Eles não existem fora do tom social – sobretudo, eles não podem conduzir-se na vida pública achando que em nada contribuem para o tom social.
Os pequenos poderes, aqueles com que o cidadão lida no seu dia a dia, são uma esponja do discurso político dos grandes poderes. Seja Governo, oposição, extrema-direita, candidatos presidenciais, todos os que por estes dias têm palco, microfone e uma aura de credibilidade – o seu tom define não só o sistema como a forma de o contornar, aproveitando-se dele.
O discurso político dominante coloca os imigrantes como uma entidade utilitária, um “mal necessário” de que a economia precisa até certo ponto, logo a base da escala social, as “mulas de carga” dos baixos salários e da vida indigna, espécies sub-humanas que se traduzem em números e contingentes a tolerar, mas sem direito a verdadeiras políticas de integração. Este é o sistema. Os que se aproveitam do sistema para ganhar dinheiro organizam-se no tráfico de pessoas para explorar imigrantes (vistos como “não pessoas”) em serventia de quase escravatura. Mas não estamos a falar das clássicas redes mafiosas, a bandidagem habitual; estamos a falar dos dez militares da GNR de Beja detidos na semana passada por serem “capatazes”, contratados por uma rede de exploração de imigrantes para os controlar e espancar. Rede encabeçada por dois portugueses, já que estamos sempre a pedir as nacionalidades dos criminosos.
Estamos a falar do agente da PSP que matou Odair Moniz e terá plantado provas para justificar o crime; de um agente da PSP que espancou até à morte um imigrante marroquino em Olhão; e falamos também dos 11 bombeiros do Fundão detidos por violarem um colega de 19 anos, facto justificado com o âmbito de uma suposta “praxe”.
São os pequenos poderes a mostrar o tom da hipocrisia podre e sem valores de certos discursos políticos, anti-imigração e cheios de masculinidades mais do que tóxicas, criminosas, que, mais do que qualquer partidarismo, demonstram uma falta de humanidade (ainda) chocante.
São os monstros comuns, os que vivem entre nós, na porta do lado, na vizinhança, de que falava Hannah Arendt. Aqueles que estão à solta, sentindo-se mais justificados do que nunca.
O crime chocante na esquadra de Santarém, em que o sargento Santos decapitou um suspeito de roubar para alimentar o vício da droga, aconteceu já nos primeiros meses de uma nova era, com o governo de António Guterres, em que as polícias ganharam uma face mais humanista. Mudaram muito, de facto, porque o discurso político assim os orientou. A palavra, vinda de cima, tem esse efeito, quando usada de forma responsável, sensata, com sentido de Estado.
Não é que os nossos líderes políticos sejam responsáveis por tudo e mais alguma coisa, mas o oposto também não é verdadeiro. Eles não existem fora do tom social – sobretudo, eles não podem conduzir-se na vida pública achando que em nada contribuem para o tom social.
Os pequenos poderes, aqueles com que o cidadão lida no seu dia a dia, são uma esponja do discurso político dos grandes poderes. Seja Governo, oposição, extrema-direita, candidatos presidenciais, todos os que por estes dias têm palco, microfone e uma aura de credibilidade – o seu tom define não só o sistema como a forma de o contornar, aproveitando-se dele.
O discurso político dominante coloca os imigrantes como uma entidade utilitária, um “mal necessário” de que a economia precisa até certo ponto, logo a base da escala social, as “mulas de carga” dos baixos salários e da vida indigna, espécies sub-humanas que se traduzem em números e contingentes a tolerar, mas sem direito a verdadeiras políticas de integração. Este é o sistema. Os que se aproveitam do sistema para ganhar dinheiro organizam-se no tráfico de pessoas para explorar imigrantes (vistos como “não pessoas”) em serventia de quase escravatura. Mas não estamos a falar das clássicas redes mafiosas, a bandidagem habitual; estamos a falar dos dez militares da GNR de Beja detidos na semana passada por serem “capatazes”, contratados por uma rede de exploração de imigrantes para os controlar e espancar. Rede encabeçada por dois portugueses, já que estamos sempre a pedir as nacionalidades dos criminosos.
Estamos a falar do agente da PSP que matou Odair Moniz e terá plantado provas para justificar o crime; de um agente da PSP que espancou até à morte um imigrante marroquino em Olhão; e falamos também dos 11 bombeiros do Fundão detidos por violarem um colega de 19 anos, facto justificado com o âmbito de uma suposta “praxe”.
São os pequenos poderes a mostrar o tom da hipocrisia podre e sem valores de certos discursos políticos, anti-imigração e cheios de masculinidades mais do que tóxicas, criminosas, que, mais do que qualquer partidarismo, demonstram uma falta de humanidade (ainda) chocante.
São os monstros comuns, os que vivem entre nós, na porta do lado, na vizinhança, de que falava Hannah Arendt. Aqueles que estão à solta, sentindo-se mais justificados do que nunca.
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