O crime chocante na esquadra de Santarém, em que o sargento Santos decapitou um suspeito de roubar para alimentar o vício da droga, aconteceu já nos primeiros meses de uma nova era, com o governo de António Guterres, em que as polícias ganharam uma face mais humanista. Mudaram muito, de facto, porque o discurso político assim os orientou. A palavra, vinda de cima, tem esse efeito, quando usada de forma responsável, sensata, com sentido de Estado.
Não é que os nossos líderes políticos sejam responsáveis por tudo e mais alguma coisa, mas o oposto também não é verdadeiro. Eles não existem fora do tom social – sobretudo, eles não podem conduzir-se na vida pública achando que em nada contribuem para o tom social.
Os pequenos poderes, aqueles com que o cidadão lida no seu dia a dia, são uma esponja do discurso político dos grandes poderes. Seja Governo, oposição, extrema-direita, candidatos presidenciais, todos os que por estes dias têm palco, microfone e uma aura de credibilidade – o seu tom define não só o sistema como a forma de o contornar, aproveitando-se dele.
O discurso político dominante coloca os imigrantes como uma entidade utilitária, um “mal necessário” de que a economia precisa até certo ponto, logo a base da escala social, as “mulas de carga” dos baixos salários e da vida indigna, espécies sub-humanas que se traduzem em números e contingentes a tolerar, mas sem direito a verdadeiras políticas de integração. Este é o sistema. Os que se aproveitam do sistema para ganhar dinheiro organizam-se no tráfico de pessoas para explorar imigrantes (vistos como “não pessoas”) em serventia de quase escravatura. Mas não estamos a falar das clássicas redes mafiosas, a bandidagem habitual; estamos a falar dos dez militares da GNR de Beja detidos na semana passada por serem “capatazes”, contratados por uma rede de exploração de imigrantes para os controlar e espancar. Rede encabeçada por dois portugueses, já que estamos sempre a pedir as nacionalidades dos criminosos.
Estamos a falar do agente da PSP que matou Odair Moniz e terá plantado provas para justificar o crime; de um agente da PSP que espancou até à morte um imigrante marroquino em Olhão; e falamos também dos 11 bombeiros do Fundão detidos por violarem um colega de 19 anos, facto justificado com o âmbito de uma suposta “praxe”.
São os pequenos poderes a mostrar o tom da hipocrisia podre e sem valores de certos discursos políticos, anti-imigração e cheios de masculinidades mais do que tóxicas, criminosas, que, mais do que qualquer partidarismo, demonstram uma falta de humanidade (ainda) chocante.
São os monstros comuns, os que vivem entre nós, na porta do lado, na vizinhança, de que falava Hannah Arendt. Aqueles que estão à solta, sentindo-se mais justificados do que nunca.

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