domingo, 2 de agosto de 2020
Uma moda que passou
A nova onda de críticas, reações e ofensivas contra a mais notória força-tarefa de combate à corrupção já montada no Brasil une o presidente, o presidente do Supremo Tribunal Federal, José Antonio Dias Toffoli, e o procurador-geral da República, Augusto Aras.
Bolsonaro iniciou seu divórcio do lavajatismo com a saída de Sérgio Moro do governo. O deputado que nunca deu a mínima para combater a corrupção, enfiou a família toda na política, enriqueceu graças a ela, praticou toda sorte de petecagem miúda e já esteve em todos os partidos fisiológicos do abecedário, de repente virou o “capitão” que ia banir os malfeitores. Um enredo pobre e falso como uma nota de R$ 200 com a estampa da ema do Alvorada, mas muita gente embarcou na fantasia.
Com Moro fora do barco, o lavajatismo virou criptonita capaz de enfraquecer o “Mito” e criar um adversário poderoso. De quebra, a saída de Moro coincidiu com a chegada dos novos amigos de infância do Capitão, aquelas figuras mais carimbadas do antes demonizado Centrão, o seguro anti-impeachment tão sonhado. Réus, condenados, ex-presos, cabe todo mundo no barco.
O coro que recepcionou Bolsonaro não tinha nada de espontâneo. Para ajudar o governo, réus como Nogueira deixam claro que aguardam um acordão “com o Supremo, com tudo” para que as ações que lá tramitam dormitem, se possível para sempre.
Um Bolsonaro sem os arroubos de outrora contra o STF ajuda. Basta ver que o presidente não deu um “pio” de solidariedade aos fanáticos banidos das redes sociais por ordem de Alexandre de Moraes. Os novos amigos do Centrão ocupam aos poucos o lugar vago do olavismo tresloucado à mesa do bolsonarismo. Até Carluxo anda quietinho, quietinho.
Aí temos o plantão de Toffoli no recesso do STF. Num ímpeto produtivo, o presidente respondeu sozinho pelo plantão, contrariando a prática de dividi-lo com o vice (o lavajatista Luiz Fux). E que produtividade! Em quatro semanas, ele mandou a Lava Jato compartilhar informações com Augusto Aras, suspendeu buscas e duas investigações contra o senador tucano José Serra, arquivou três inquéritos contra ministros do STJ e do TCU abertos a partir da delação de Sérgio Cabral, suspendeu depoimento de Aécio Neves e dissolveu a comissão do impeachment de Wilson Witzel no Rio. Ufa!
Outro bastante ativo no recesso, e pra lá de destemperado, foi Aras, que se lançou na cruzada contra a Lava Jato e ainda assumiu ares de ditador no Ministério Público Federal, investindo com grosserias contra colegas na reunião do Conselho Superior do MPF.
É certo que o combate à corrupção tem de se dar dentro de balizas e marcos de legalidade e institucionalidade, e que operações como a Lava Jato muitas vezes se arvoraram poderes acima desses limites, e têm de ser controladas e fiscalizadas.
Outra coisa bem diferente, porém, é um ataque orquestrado para fazer letra morta de tudo que se avançou na revelação de crimes e para mitigar o poder de órgãos independentes como o Ministério Público.
Esse tipo de iniciativa combinada mostra que o figurino do arauto do combate à roubalheira foi só uma das muitas lorotas que Bolsonaro enfiou goela abaixo dos eleitores. Assim como mostra dia a dia não ser um liberal, não ter compromisso com a democracia nem a menor condição de governar o Brasil, também essa fantasia do capitão decente foi rasgada, saiu de moda.
Alerta de americano
Os EUA são um dos países mais ricos na hora de cuidar de ricos, mas não para ajudar pobresSean Penn
Maquiagem verde
“O governo Bolsonaro tenta maquiar dados e fatos: insiste em mudar a imagem da Amazônia, mas segue sem querer mudar a realidade”, afirma Mariana Mota, coordenadora de Políticas Públicas do Greenpeace Brasil. “Mas a verdade que o mundo vê é que o desmatamento da Amazônia está batendo recorde e a temporada de queimadas criminosas promete ser ainda pior do que em 2019”.
Para te ajudar a entender a gravidade que é a falta de transparência do governo Bolsonaro, listamos abaixo o kit maquiagem que vem sendo usado, tanto para dar sequência à agenda de retrocessos, quanto para responder às críticas cada vez mais numerosas, no Brasil e no exterior, a esta política antiambiental.
Três dias depois de o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) anunciar que a Amazônia sofreu o maior desmatamento para o mês de junho em cinco anos, Lubia Vinhas, coordenadora-geral do setor responsável por esse monitoramento, foi exonerada de seu cargo. A repercussão negativa do caso levou o ministro da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes, a argumentar que a mudança se deve a uma reestruturação pela qual o Inpe está passando.
Não é a primeira vez que o governo federal tenta tirar do caminho quem, baseado em evidências científicas, apresenta números indicando a área de floresta perdida a cada dia. Há um ano, o então diretor do Inpe, Ricardo Galvão, foi demitido após divulgar o aumento do desmatamento na Amazônia.
Se a reestruturação é real, ela se deve à militarização do órgão, processo criticado por servidores do Inpe em carta aberta e por especialistas como Gilberto Câmara, que dirigiu o Inpe entre 2005 e 2012 – justamente quando as taxas de desmatamento caíram no bioma. Ele diz que estão tentando transformar o Inpe em uma organização altamente hierarquizada, como um quartel – uma maneira de diminuir o debate ao afastar os funcionários do alto escalão. Para Câmara, os militares estão entrando em uma instituição sem entendê-la e respeitá-la.
Outro ponto que pode facilitar a maquiagem na divulgação dos dados pelo governo é uma mudança recente, proposta pelo Conselho da Amazônia, que centraliza no Ministério da Defesa a responsabilidade das informações sobre queimadas na Amazônia para subsidiar operações de fiscalização.
1 – CORRETIVO – O trabalho realizado pelo Inpe é reconhecido internacionalmente – foi graças ao instituto que se tornou possível criar políticas efetivas de combate ao desmatamento no início dos anos 2000, unindo monitoramento e ações de fiscalização pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais (Ibama). Aplicar corretivos, demitindo cientistas, e esconder informações podem ser um duplo tiro no pé para o governo, porque viola a transparência exigida pela Constituição Federal e gera ainda mais desconfiança lá fora.
2 – BASE – Como já mostramos neste blog, a militarização das ações contra o crime na Amazônia é um fracasso. Com orçamento de R$ 60 milhões por mês, a Operação Verde Brasil 2, com base na Garantia da Lei e da Ordem (GLO), não tem resultado em proteção à floresta. Uma de suas estratégias ineficientes é a “moratória do fogo”, que proíbe o uso do fogo em território nacional por 120 dias. É claro que a moratória, sozinha, não funcionará. Ela precisa estar atrelada ao trabalho de repressão ao crime feito pelo Ibama em campo, o que não está acontecendo.
3 – SOMBRA – Outro órgão que vem sendo corroído por dentro sob o disfarce de “reestruturação” é o Ibama, responsável pelo trabalho de inteligência e fiscalização no combate a crimes cometidos por grileiros, madeireiros e garimpeiros. Com a GLO, o Ibama passou a atuar à sombra das Forças Armadas, pois Mourão retirou do órgão sua autonomia e liderança no planejamento e execução de ações em campo.
Em manifestação técnica divulgada essa semana, servidores voltaram a denunciar o desmonte das estruturas de proteção ambiental, e lembraram que todas as ações eficazes de combate ao desmatamento na Amazônia, resultando na diminuição de mais de 80% dos índices de desmatamento entre 2004 e 2012, “foram protagonizadas pelo Ibama”.
4 – LÁPIS DE OLHO – O lápis tem sido usado para riscar informações importantes para a proteção das florestas — é o caso dos dados sobre áreas embargadas por crimes ambientais, omitidos pelo governo Bolsonaro há mais de oito meses. Esses dados são usados como critério para concessão de crédito rural e comercialização de produtos agrícolas. O resultado é que áreas ilegais continuam a receber financiamento e lucrar com a destruição.
Uma ação na Justiça Federal exige que o antiministro Ricardo Salles e o presidente do Ibama, Eduardo Bim, voltem a divulgá-los, conforme manda a lei.
5 – ILUMINADOR – Uma boa maquiagem exige um bom investimento em campanha publicitária. Não à toa, o governo federal contratou empresas de relações públicas nos Estados Unidos, Europa e Ásia para vender a falsa imagem que, no Brasil, está tudo sob controle e nossas florestas estão intactas.
As peças publicitárias pretendem minimizar a destruição da Amazônia e desvincular o desmatamento do agronegócio brasileiro. O problema é que negar a realidade não vai restituir os quilômetros de árvores derrubadas.
6 – BATOM – Como parte da estratégia de retirar a autonomia e transparência do Ibama e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), servidores desses órgãos estão reféns da “lei da mordaça”, proibidos de falar com a imprensa. A centralização das informações resultou que, nos primeiros nove meses do governo Bolsonaro, a procura da imprensa quadruplicou, mas 8 a cada 10 pedidos de jornalistas não foram respondidos pela assessoria de comunicação do Ministério do Meio Ambiente.
Outro sintoma da falta de transparência é destituir quem denuncia o governo. Após ser acusado de esvaziar a Comissão de Ética do Ministério do Meio Ambiente, Ricardo Salles tirou Marcelo Grossi do cargo de secretário-executivo da comissão. Foi Grossi quem enviou ofícios com a denúncia ao CGU (Controladoria-Geral da União), à CEP (Comissão de Ética da Presidência) e ao TCU (Tribunal de Contas da União).
Em um ano e meio de mandato, o governo Bolsonaro seguiu apenas uma agenda: a da destruição, como mostramos em nossa linha do tempo: https://www.governodadestruicao.org/
No entanto, querer um governo “de cara lavada”, que seja transparente em suas ações e dados, não é pedir muito. É fazer cumprir a lei e garantir a participação da sociedade na elaboração e execução das políticas públicas.
Para evitar que o Brasil continue a ser visto como um vilão ambiental, é preciso atitudes concretas que levem à proteção de nossos recursos naturais e biodiversidade, como: fortalecer o trabalho do Ibama e do ICMBio em campo; criar unidades de conservação; assegurar a demarcação de terras indígenas e os direitos desses povos; e incentivar a produção agroecológica em lugar dos barões do agronegócio venenoso. Não temos mais tempo e vidas a perder.
No entanto, querer um governo “de cara lavada”, que seja transparente em suas ações e dados, não é pedir muito. É fazer cumprir a lei e garantir a participação da sociedade na elaboração e execução das políticas públicas.
Para evitar que o Brasil continue a ser visto como um vilão ambiental, é preciso atitudes concretas que levem à proteção de nossos recursos naturais e biodiversidade, como: fortalecer o trabalho do Ibama e do ICMBio em campo; criar unidades de conservação; assegurar a demarcação de terras indígenas e os direitos desses povos; e incentivar a produção agroecológica em lugar dos barões do agronegócio venenoso. Não temos mais tempo e vidas a perder.
A grampolândia nacional
É repetitivo lembrar que a extinção do antigo Serviço Nacional de Informações (SNI) marcou o início de um ciclo de espionagem pulverizada em dezenas, e depois centenas, de empresas com fachada tecnológica, destinadas à captação e comercialização de informações obtidas à base de grampo. Desde então, o país convive com uma grampolândia.
Egressos do SNI, ou gente oriunda daqueles tempos, passaram à iniciativa privada, oferecendo serviços de “varredura” que, na verdade, se prestaram à espionagem política. Foi ali pelos tempos do governo Collor quando a tecnologia de escuta e filmagem alcançou um grau de sofisticação capaz de obter gravações de conversas captadas a distâncias inimagináveis até então.
A espionagem política é coisa da antiga. Produziu estórias e histórias, lendas e verdades. Em campanhas eleitorais, a vigilância sempre foi regra. Qualquer descuido pode fornecer munição moral ou penal entre adversários, suficiente para impor derrotas a candidatos com dianteira aparentemente irreversível.
Mas a julgar pelo acervo que a Lava Jato recusa compartilhar com a Procuradoria Geral da República, a quem deve subordinação, a oposição de Moro é uma mera luta pela hegemonia de arquivos e segredos.
A força-tarefa dispõe de 350 terabytes com dados e informações de 38 mil pessoas, o que equivale a um arquivo oito vezes maior que o do Ministério Público Federal, com 40 terabytes. Como o critério de escolha dessas 38 mil pessoas também é secreto, nada desautoriza a desconfiança de que possam ser usados discricionariamente.
Egressos do SNI, ou gente oriunda daqueles tempos, passaram à iniciativa privada, oferecendo serviços de “varredura” que, na verdade, se prestaram à espionagem política. Foi ali pelos tempos do governo Collor quando a tecnologia de escuta e filmagem alcançou um grau de sofisticação capaz de obter gravações de conversas captadas a distâncias inimagináveis até então.
A espionagem política é coisa da antiga. Produziu estórias e histórias, lendas e verdades. Em campanhas eleitorais, a vigilância sempre foi regra. Qualquer descuido pode fornecer munição moral ou penal entre adversários, suficiente para impor derrotas a candidatos com dianteira aparentemente irreversível.
Não faltam exemplos. Ainda à época do regime militar atribuía-se ao então governador da Bahia, Antônio Carlos Magalhães, o poder do conhecimento dos porões de seus desafetos. Resumia-se tal poder com a expressão “o cofre de Ondina”, referência a um lendário cofre no palácio de governo estadual com dossiês pecaminosos.
Em abril de 2002, uma busca da Polícia Federal no escritório da empresa Lunus, no Maranhão, tirou da campanha presidencial Roseana Sarney, àquela altura um azarão na corrida ao Planalto. O que ficou conhecido como o caso Lunus, resultou na apreensão de R$ 1,34 milhão em espécie, valor não declarado de campanha.
Para o ex-presidente Sarney, a operação tem origem no PSDB, o que o levou a romper com os tucanos e aliar-se ao PT, cujo governo passou a apoiar. Não se sabe se o ex-presidente mantém essa convicção, dado que eliminar Roseana era também conveniente ao PT, como hoje interessado na polarização, que a candidata ameaçava.
Tais memórias estão longe de mostrar a dimensão da espionagem política no país, repleta de lendas e verdades. Ela tomou forma também nos anos do PT, quando o aparelhamento do Estado serviu para a produção de dossiês com origem no funcionalismo militante que o então presidente Lula convenientemente atribuiu a “aloprados” fora do controle do partido.
Nada disso é louvável, mas é a realidade forjada por um modo de fazer política explorando seu lado sombrio instalado nas vidas de candidatos e partidos. Operando a chantagem para alcançar a vitória sórdida.
Coisa bem diferente, e mais grave, é o governo patrocinar, com estruturas oficiais bancadas a dinheiro público, a espionagem de adversários consolidados ou potenciais, como se toma conhecimento agora na gestão do ministro André Mendonça, da Justiça e Segurança Pública.
Não à toa, a Polícia Federal manifesta preocupação com o fato. Os serviços de inteligência oficiais estão fragmentados nas esferas federal, estadual e municipal. Da Abin às estruturas de segurança estaduais há diversos serviços de inteligência que não cultivam a sinergia de suas informações, alimentam mútua desconfiança e direcionam suas investigações.
Quando o presidente Jair Bolsonaro se queixou desses serviços na célebre reunião ministerial de 22 de abril, mal comparou-os com o seu próprio serviço de inteligência, pessoal, dizendo que este, sim, funcionava.
Pois parece que decidiu fazer com que os demais melhorassem, o que se traduz, no caso, por servi-lo plena e eficientemente, por meio do ministério da Justiça e Segurança Pública, uma vez removida a resistência oferecida pelo ex-ministro Sérgio Moro. Fez o seu próprio SNI.
Em abril de 2002, uma busca da Polícia Federal no escritório da empresa Lunus, no Maranhão, tirou da campanha presidencial Roseana Sarney, àquela altura um azarão na corrida ao Planalto. O que ficou conhecido como o caso Lunus, resultou na apreensão de R$ 1,34 milhão em espécie, valor não declarado de campanha.
Para o ex-presidente Sarney, a operação tem origem no PSDB, o que o levou a romper com os tucanos e aliar-se ao PT, cujo governo passou a apoiar. Não se sabe se o ex-presidente mantém essa convicção, dado que eliminar Roseana era também conveniente ao PT, como hoje interessado na polarização, que a candidata ameaçava.
Tais memórias estão longe de mostrar a dimensão da espionagem política no país, repleta de lendas e verdades. Ela tomou forma também nos anos do PT, quando o aparelhamento do Estado serviu para a produção de dossiês com origem no funcionalismo militante que o então presidente Lula convenientemente atribuiu a “aloprados” fora do controle do partido.
Nada disso é louvável, mas é a realidade forjada por um modo de fazer política explorando seu lado sombrio instalado nas vidas de candidatos e partidos. Operando a chantagem para alcançar a vitória sórdida.
Coisa bem diferente, e mais grave, é o governo patrocinar, com estruturas oficiais bancadas a dinheiro público, a espionagem de adversários consolidados ou potenciais, como se toma conhecimento agora na gestão do ministro André Mendonça, da Justiça e Segurança Pública.
Não à toa, a Polícia Federal manifesta preocupação com o fato. Os serviços de inteligência oficiais estão fragmentados nas esferas federal, estadual e municipal. Da Abin às estruturas de segurança estaduais há diversos serviços de inteligência que não cultivam a sinergia de suas informações, alimentam mútua desconfiança e direcionam suas investigações.
Quando o presidente Jair Bolsonaro se queixou desses serviços na célebre reunião ministerial de 22 de abril, mal comparou-os com o seu próprio serviço de inteligência, pessoal, dizendo que este, sim, funcionava.
Pois parece que decidiu fazer com que os demais melhorassem, o que se traduz, no caso, por servi-lo plena e eficientemente, por meio do ministério da Justiça e Segurança Pública, uma vez removida a resistência oferecida pelo ex-ministro Sérgio Moro. Fez o seu próprio SNI.
Mas a julgar pelo acervo que a Lava Jato recusa compartilhar com a Procuradoria Geral da República, a quem deve subordinação, a oposição de Moro é uma mera luta pela hegemonia de arquivos e segredos.
A força-tarefa dispõe de 350 terabytes com dados e informações de 38 mil pessoas, o que equivale a um arquivo oito vezes maior que o do Ministério Público Federal, com 40 terabytes. Como o critério de escolha dessas 38 mil pessoas também é secreto, nada desautoriza a desconfiança de que possam ser usados discricionariamente.
Tal engrenagem não estimula otimismos. O país ainda conviverá por muito tempo, quem sabe para sempre, com esses registros extra-oficiais de seus cidadãos.
Um silêncio de Bolsonaro que pode ser uma blasfêmia
A simples notícia já é um ultraje, não só para o Estado de Israel, mas para os milhões de judeus do mundo, praticantes ou não. E para todos os que acreditam nos valores da democracia. Trata-se do uso que os narcotraficantes vêm fazendo da bandeira de Israel e da Estrela de Davi num conjunto de favelas do Rio com 134.000 moradores. Os traficantes escolheram esses símbolos para delimitar o que chamam de “Complexo de Israel”.
O fato, que por si só merece reprovação, está ligado às ligações entre os cultos evangélicos e os símbolos do país do Oriente Médio e também às relações obscuras que o presidente brasileiro de ultradireita Jair Bolsonaro mantém com Israel, que ele parece querer associar com os valores do totalitarismo e do militarismo.
Não é por acaso que seja neste momento, quando o Brasil mantém relações estreitas com a parte mais conservadora do Governo de Israel, que até os traficantes de drogas se interessem pelos símbolos que merecem respeito no mundo todo, por ser um país democrático e moderno, modelo de desenvolvimento econômico e que luta com o drama das relações entre judeus e palestinos.
Bolsonaro mantém uma relação estranha com suas crenças religiosas. Foi católico praticante a vida inteira. Depois iniciou uma relação especial com as igrejas evangélicas, que estão crescendo no Brasil, são muito ativas politicamente e abraçam 40% dos brasileiros. E foi como evangélico que Bolsonaro se fez rebatizar nas águas do rio Jordão, em Israel, ao mesmo tempo em que estreitava os laços com a parte mais retrógrada e conservadora do Governo daquele país.
A comunidade judaica do Brasil já havia questionado em maio passado o uso da bandeira de Israel nas marchas pró-Bolsonaro, onde se exaltava a ditadura e se pedia o fechamento do Congresso e do STF. A Confederação Israelita do Brasil (Conib) criticou aquele uso político da bandeira de Israel com essas palavras: “A Conib tem um firme compromisso com a democracia e com as liberdades públicas e lamenta a presença da bandeira de Israel, uma democracia vibrante, em atos em que ocorrem ataques às instituições democráticas”.
Se o uso da bandeira de Israel em atos contra a democracia já havia ofendido a comunidade judaica do Brasil, o segundo país da América Latina (depois da Argentina) com maior número de judeus, é de se imaginar o que pensará agora, quando esses símbolos nacionais e religiosos, como a bandeira e a Estrela de Davi, são usados pelos narcotraficantes para delimitar seus territórios nas já escravizadas favelas do Rio. Segundo a reportagem da TV Globo, quem se autodenomina líder do “Complexo de Israel” diz professar a fé evangélica e pratica a intolerância religiosa. Ele responde a um processo por destruir um terreiro de umbanda e mandou retirar a imagem de uma santa.
É possível que esses traficantes não tenham dimensão do significado do uso indevido de tais símbolos de Israel. Quem não pode deixar de entender isso é o presidente Bolsonaro, que até agora permaneceu mudo. Não condenou o uso indevido da bandeira de Israel, país do qual se diz amigo e seguidor. É certo que os judeus militam em diferentes partidos políticos no Brasil e no mundo, mas seus valores foram e são os da democracia, da justiça social já sancionada pelos profetas da Bíblia e do respeito pelas crenças alheias.
Os judeus do mundo levam sobre suas costas o peso do genocídio do Holocausto, no qual seis milhões de inocentes pereceram nas mãos dos nazistas de Hitler e que se transformou no símbolo de todos os genocídios. Hoje o tema vem à tona no Brasil por ocasião da política de Bolsonaro em relação à pandemia, na qual ele parece mais preocupado com a crise econômica e a sua reeleição à presidência do que com as vítimas —já entre as mais numerosas do mundo.
Nunca fui amante das bandeiras nem dos hinos nacionais que costumam evocar batalhas, conquistas e sangue. Mas acredito que se o mundo sofre de algo hoje é de falta de respeito pelos símbolos sagrados e profanos que caracterizam a idiossincrasia de um povo, com seus valores particulares que juntos formam o grande caleidoscópio da criatividade humana e da convivência social. Qualquer ato para tornar infames esses símbolos, que acabam tendo valor sagrado para os que os usam, é ferir gravemente o que o coração humano tem de mais íntimo: suas convicções pessoais e religiosas.
Bolsonaro continuará calado ante esse uso bastardo dos símbolos de Israel e dos judeus, que começa a ser feito até por traficantes nas favelas do Rio? Seu silêncio, na linguagem da Bíblia, seria chamado de blasfêmia.
Vida líquida
Timidamente, ele busca sua defesa em protótipos, modelos, paradigmas e em fórmulas cientificistas, que ao invés de funcionarem como lanternas perante a penumbra do anticonhecimento, o joga ainda mais num mundo pastoso, onde todos os sentimentos, crenças, deuses, ciências, religiões e teorias se mesclam, perdendo a sua identidade e deformando-se em uma espécie de conhecimento pré-científico.
Liquidez da vida, diluição do poder de autoridade, algoritmos no comando das decisões humanas. O homem deixa de ser a medida de todas as coisas. O antropocentrismo é escanteado em detrimento de um “devir” prenhe de incógnitas, paradoxos e fórmulas vazias, tudo são indagações que tanto o espírito humano quanto os seus conhecimentos construídos jazem ignorantes. Parece mesmo que o mundo atual deixou de ter características sólidas, passa pela fase do estado líquido, e, aquém do estado gasoso, estaciona no estado pastoso, onde sua melhor representação é o de um pântano, onde tudo são obscuridades e mistérios, onde qualquer senso de racionalidade e de moralidade desaparece.
Situação agônica, o homem jamais foi totalmente tomado como um ser completamente racional. Sua subjetividade vem sendo descentralizada no mundo da cultura e sofrendo historicamente um enorme desgaste com o advento de conceitos como o de evolucionismo, ideologia, inconsciente, super-homem e morte do homem. De Darwin, passando por Marx, Freud, Nietzsche, até chegar em Foucault, todos eles diagnosticaram e prognosticaram um terrível fim para o homem. Não restam dúvidas: a vida hodierna é líquida, fluída, volátil, incerta, insegura. Parafraseando Zygmunt Bauman, podemos dizer que todas as relações sociais humanas escorrem entre os nossos dedos.
Mas o desejo e a vontade do homem tendem ao infinito. Para Yuval Harari, superados os problemas da guerra, da fome e das pestes, “as novas conquistas da humanidade serão provavelmente a imortalidade, a felicidade e a divindade”, uma espécie de trindade que pode, talvez, dar ao homem o status de Deus. Mas, paradoxalmente, no mundo da biotecnologia e da tecnologia da informação, governado pelos algoritmos, o humano está destinado à retaguarda. Num mundo de alta tecnologia o conhecimento humano poderá estar dramaticamente sujeito a um tipo de metamorfose jamais pensada. Poder e saber, palavras e coisas, construção e destruição do homem.
Talvez, um farol a guiar o homem pós-moderno nesse caminhar por um mundo cada vez mais fluido, seja, como ensina Bauman ao falar da vida líquida, a construção de uma ética planetária: “as condições necessárias para garantir a sobrevivência humana (ou, ao menos, para aumentar suas probabilidades) deixaram de ser divisíveis e localizáveis. O sofrimento e os problemas de nossos dias têm, em todas as suas múltiplas formas e verdades, raízes planetárias que precisam de soluções planetárias”.
De fato, num amanhã liquido dominado por uma extremada tecnologia com um imenso domínio sobre a vida e sobre as ações das pessoas, indagar-se-á, como fez Primo Levy: será isto ainda um homem?
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