domingo, 20 de novembro de 2022

A desrazão

Ser liderado por um covarde significa ser controlado por tudo o que o covarde teme. E ser liderado por um tolo é ser liderado pelos oportunistas que controlam o tolo
Octavia Butler

De que é feito um grande líder? Quase 200 anos atrás, a americana Margaret Fuller, autora do clássico “A mulher no século XIX”, primeira obra feminista registrada nos Estados Unidos, elencou quatro atributos essenciais: 1) ser idealista sem ser raso, ser realista sem demolir o outro; 2) abrigar empatias universais; 3) ser seguro de si; 4) entender que o poder é mais que mero espetáculo — o jogo da vida é solene, tem consequências. Primeira mulher correspondente de guerra de seu país, a pioneira Fuller foi uma jornalista engajada. Tinha horror à desrazão.

Em tempos mais recentes, quem também se ocupou do tema foi outra pioneira das letras, a colossal Octavia Butler. Autora de livros de ficção científica, Butler havia arrombado essa fatia do universo literário dominada por homens — e quase sempre homens brancos. Fora marcada pelo racismo e pelo segregacionismo dos EUA. Tampouco tinha paciência com a desrazão. Deixou ensinamentos sábios sobre a escolha de líderes. “Ser liderado por um covarde significa ser controlado por tudo o que o covarde teme. E ser liderado por um tolo é ser liderado pelos oportunistas que controlam o tolo”, escreveu em “Parábola dos talentos”. A obra também contempla líderes corruptos, mentirosos e chegados a uma tirania.


Bingo. Como não pensar no ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump e no quase (ou de facto) ex-presidente do Brasil, Jair Bolsonaro? Ambos disputam primazia em covardia pessoal, bufonaria, criminalidade institucional, irresponsabilidade social. O que varia é a gradação. Trump, apesar da surra sofrida por seus candidatos nas eleições da semana retrasada, e contrariando os conselhos unânimes de seu QG político, anunciou sua intenção de tentar uma nova eleição em 2024. O evento, contudo, em nada lembrou a oficialização hollywoodiana de sua candidatura em 2015, quando desceu a monumental escadaria de sua torre nova-iorquina como um semideus que vai ter com o povo. Aquilo, sim, foi um triunfo. Seduziu a mídia de forma tão irreparável que, quando o jornalismo se deu conta, estava viciado e dependente dos absurdos produzidos por Trump.

Desta vez, o anúncio oficial, feito no salão nobre de Mar-a-Lago, sua propriedade na Flórida, foi mais para o patético. A mansão não lhe serve apenas de residência. Desde a derrota para Joe Biden em 2020, não aceita até hoje e que tentou anular por meio da invasão do Capitólio, Trump tenta imprimir a Mar-a-Lago uma aura de “sede de governo”— ele e seus seguidores mais doidos ainda o consideram o 45º presidente dos Estados Unidos em exercício. Só que, desta vez, a desrazão fabricada trombou com a realidade. Seu discurso de “reestreia” foi longo e tedioso, sem o habitual domínio de cena, desprovido de sacadas verbais. A plateia que ele deveria incandescer estava murcha. Vídeos indiscretos mostraram grupos de convidados tentando sair à francesa do salão, mas as portas permaneceram fechadas, impedindo a escapadela.

Ninguém gosta de perder eleição — seja para síndico ou presidente da Republica. Entre os ocupantes da Casa Branca, é de George H.W. Bush (pai) a descrição mais honesta e pungente de quanto lhe foi dolorido perder lisamente para Bill Clinton em 1992. Sem falar no inferno mental que tomou conta de Richard Nixon nos dias que antecederam seu impeachment, em 1974 — ele não conseguia sair da posição fetal e chorava no chão da Casa Branca.

Do lado de cá, a negação da derrota eleitoral por Bolsonaro tem tonalidade lúgubre. Imaginá-lo zanzando há três semanas no Palácio da Alvorada, infectado física e psicologicamente pelo medo, é esquisito. É medo de ser quem é, sem amparo? Medo das consequências de ter sido o presidente que foi? Sumiram ele e os filhos encrencados com a Justiça, assim como sumiram os também encrencados filhos de Donald Trump do evento em Mar-a-Lago.

— Perdeu, mané. Não amola — disse o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso ao bolsonarista que o abordou em Nova York.

A frase soou ótima, deixou meio Brasil de excelente humor. Dado o contexto, porém, o magistrado foi desdenhoso, arrogante. Ele participava do que o professor de Direito Constitucional Conrado Hübner Mendes, em coluna na Folha de S.Paulo, batizou de “micareta cinco estrelas de Nova York”, com conotação de promiscuidade judicial com evento empresarial.

A hora é particularmente imprópria para desdéns e minimizações. A histórica vitória eleitoral de Lula para liderar o país pela terceira vez é recente. Ainda está em construção e, para ser segura, será obra de longo prazo. O que não muda é o papel da imprensa: noticiar. Com uma diferença: ela espera das futuras lideranças o que nunca recebeu do governo atual — respeito e transparência. Um jatinho Gulfstream que acaba de rodar mundo com um presidente e um empresário encrencado com a Justiça desviou dessa rota.

O reencontro com o Brasil

A recepção do mundo ao retorno de Lula tem a anormalidade dos fenômenos. As publicações importantes, muitos chefes de governo, e manifestações dos conscientes das urgências naturais, sociais e políticas do planeta celebram a volta do Brasil pelas mãos de Lula. Nas palavras do escritor Jon Lee Anderson: "As pessoas ao redor mundo estão esperando de você, Lula, não que salve a Amazônia, mas que salve o mundo".

Há pouco a se comparar com essa expressão universalizada de inquietude e vontade, feita com espontaneidade que subjuga a era do invasivo marketing. O nome Lula ecoa no mundo como o de Mandela soou em nossos dias, por admiração ao homem e à obra de sua vida comovente. Lula —ideia, histórico, palavra, pessoa— é a causa e a confiança.


Vê-se, por contraste, quanto o Brasil fugiu do mundo real. Quanto o mundo o queria. Quanto pode dar à humanidade. Quanto estão atrasados, caquéticos, os que criaram e sustentaram os quatro anos do domínio de mentalidades fardadas, estreladas, condecoradas e desprovidas de pensamento. Está bem claro: o mundo mudou e a visão dos militares ficou fora, completamente fora da realidade. Caserna e caverna.

Não é só o golpismo enraizado, nem a presunção de direito à impunidade, ou a prepotência dada pela arma. É a visão. A estratégia de uma Amazônia toda ocupada por atividades econômicas, e para isso devastada, como forma de esvaziar ambições invasoras, é o extremo oposto ao que a racionalidade, a ciência e a nova consciência mundial anseiam. O desatino da ocupação virou exploração ilegal lá e negócio sujo no governo Bolsonaro, mas a estratégia é anterior. É militar. E amparou, por óbvia concordância, a política anti-amazônica, anti-indígena e negocista adotada pelo governo.

Salvo pela exploração política e comercial de religiões, o bolsonarismo é a prática revivida da mentalidade atrasada, aquela que já na ditadura do general Médici consumiu fortunas e vidas na Transamazônica que seria a espinha dorsal da ocupação econômica da floresta. Tal permanência, já de meio século no exemplo dado, denuncia a falta absoluta de reflexão e o domínio absoluto do atraso. Com o acréscimo do golpismo pago por empresários não menos atrasados, vislumbra-se o que espera por Lula do outro lado do Ano Bom.

O 'bispo vermelho' da ditadura de 64 está a um passo de virar beato

“Prova de amor maior não há, do que dar a vida pelo irmão”, cantavam emocionadas centenas de pessoas que lotavam na noite do dia 27 de maio de 1969 a Matriz do Espinheiro, no Recife. No altar, 40 padres celebravam missa liderados por dom Hélder Câmara, arcebispo de Recife e Olinda. Um pouco abaixo do altar, dentro de um modesto caixão, jazia o corpo do padre Antonio Henrique Pereira Neto, 28 anos.

Na véspera, depois de sair por volta da meia-noite de reuniões em casas de duas famílias no bairro de Parnamirim, Henrique, assessor de dom Hélder e responsável pela Pastoral da Juventude da arquidiocese, foi sequestrado por quatro ou cinco homens que o levaram numa Rural Willis para uma área deserta a 30 quilômetros do centro da cidade. Ali, foi torturado e morto.

A perícia do corpo concluiu que Henrique, padre há três anos, fora amarrado com uma corda e arrastado. Uma faca ou algo parecido feriu seu rosto várias vezes. A violência sofrida por ele concentrou-se na cabeça. Ela foi chutada. A corda enlaçada em seu pescoço acabou por asfixiá-lo. Por último, deram-lhe três tiros na cabeça. Tamanha demonstração de ódio tinha um sujeito oculto.

O alvo indireto do crime, um dos mais bárbaros da ditadura militar de 1964, era dom Hélder, amigo pessoal do então Papa Paulo VI, e apontado pelos generais como um perigoso comunista. Eles o chamavam de “bispo vermelho” e seguiam todos os seus passos.

O Palácio dos Manguinhos, onde ele despachava, havia sido pichado com mensagens assinadas pelo Comando de Caça aos Comunistas. Ocorrera o mesmo com a parte dos fundos da Igreja das Fronteiras onde ele morava. Assim como com o Juvenato Dom Vital, local onde ele se reunia com seus pares nordestinos. Um homem arrependido já confessara a dom Hélder que fora contratado para matá-lo.

“Querem que eu me proteja”, pregou o arcebispo na missa que antecedeu a saída do cortejo que levaria a pé o corpo de Henrique para ser enterrado no cemitério da Várzea. “Querem que eu não ande só à noite, e que não durma só. Mas quem disse que eu ando só? Andam e dormem comigo o Pai, o Filho e o Espírito Santo”.

Entre oito mil e 10 mil pessoas seguiram o caixão. De vez em quando, policiais irrompiam no meio delas para fazer prisões. Vi prendere o ex-ministro da Agricultura do governo João Goulart, o deputado Oswaldo Lima Filho. E estudantes que carregavam uma faixa onde se lia: “Os militares mataram padre Henrique”.

O cemitério estava cercado por policiais. Depois do enterro, temendo o pior, dom Hélder pediu à multidão que fosse embora sem se manifestar. E se pôs, sozinho, diante da tropa, a acenar para as pessoas com um lenço branco. Foram longos minutos de silêncio e de medo até que todos se dispersaram. Censurada, a imprensa nada publicou sobre a morte e o enterro de Henrique. Por 9 anos, ela foi proibida de citar o nome de dom Hélder.

Em junho de 2012, a Comissão da Verdade, seção de Pernambuco, concluiu que a morte de Henrique foi um crime político. Participaram dele estudantes de direita e investigadores da polícia civil sob o comando de Bartolomeu Gibson, na época Chefe de Investigações da Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco. Dos criminosos, dois ainda viviam. Mas a Lei da Anistia impedia que fossem punidos.

A Arquidiocese de Olinda e Recife informou na semana passada que o processo de beatificação de dom Hélder avançou mais uma etapa em Roma. A documentação enviada ao Vaticano foi aceita pelo Dicastério para a Causa dos Santos. Falta só mais uma etapa para que dom Hélder seja elevado à condição de beato pela Igreja Católica.

Pensamento do Dia

 


Alimentar o ódio é minar a nação

A construção de nações foi uma das tarefas mais complexas da história da humanidade. O primeiro passo é estabelecer os limites territoriais dos países, algo ainda inacabado em parte do mundo, tendo muitas vezes a guerra como solução. Mas o aspecto mais complicado está na produção da identidade nacional. Constituir um povo que conviva com suas diferenças não é nada trivial. Mesmo sendo escandalosamente desigual, o Brasil conseguiu edificar uma sociedade razoavelmente tolerante, com espaços de convívio e respeito mútuo. Só que o ódio entre brasileiros tem sido alimentado cotidianamente. Isso pode afetar o destino de curto e longo prazo da nação.

O ódio social nunca foi uma bússola para construir civilizações. Nos casos mais extremos, produziu-se a barbárie. Assim foi na Alemanha nazista, com a perseguição de vários grupos sociais, especialmente os judeus, com 6 milhões de mortos. O Brasil atual está longe disso, mas o crescimento do neonazismo nas redes sociais e manifestações declaradamente nazistas em universidades e até em escolas particulares de educação básica revelam que há sementes totalitárias sendo plantadas em nossa nação.

Mas o ódio pode ter uma forma mais branda e duradoura, com divisões sociais marcadas pelo rechaço completo entre as forças políticas, transformando a atividade da política em um jogo de mágoas perpétuas. A Argentina tem trilhado essa história desde a Segunda Guerra Mundial, com períodos autoritários muito violentos e com momentos democráticos em que o diálogo tem pouco espaço entre os diferentes. O fato é que o desenvolvimento econômico e social argentino foi barrado por um grau de polarização que dificulta qualquer decisão que resulte da negociação e do respeito mútuo. Esse é o efeito Orloff que o Brasil mais deveria temer.


Nos últimos 15 anos, um novo ciclo internacional de ódio político foi constituído. Ele é a combinação do avanço de redes sociais propositadamente polarizadoras com o discurso da nova extrema direita, caracterizada pela defesa de valores tradicionais, pelo nacionalismo excludente (nem todos os integrantes da nação são legítimos) e pela crítica às instituições impulsionadas a partir do Iluminismo ocidental. Por meio desses dois elementos, construiu-se um movimento baseado na busca da destruição dos inimigos, como a mídia tradicional, os liberais globalistas, a esquerda em seus vários matizes, a ciência e os intelectuais, além de grupos sociais politicamente minoritários (mulheres, negros, LGBTQIA+ etc.), para citar os principais alvos, realizando uma hiperpolitização de todos os espaços da vida humana.

A hiperpolitização significa que nenhum espaço da vida humana pode estar alheio às ideias políticas que norteiam o grupo que se pretende dominante, ou melhor, que pretende eliminar todos os que não concordam com ele. É uma noção similar ao conceito de ideologia usado por Hannah Arendt para descrever os totalitarismos do século XX. Os filmes de Goebbels muitas vezes falavam da vida cotidiana, da higiene que a raça ariana deveria cultivar para se tornar superior. Hoje, a hiperpolitização não define apenas o que se deve fazer na seara política, mas como se comportar na esfera privada.

A política é a atividade mais nobre entre os seres humanos, como já pensavam os clássicos como Aristóteles e Maquiavel, porém, quando tudo vira política, há grandes chances de se criar uma sociedade incapaz de conversar na padaria, de tomar o mesmo ônibus, de se sentar numa mesma sala de aula, de entender que o direito de um termina quando afeta a liberdade do outro - evitar que uma pessoa doente atravesse uma estrada é matar o sentido de uma nação. Será que a Copa do Mundo nos trará a ideia de brasileiros, iguais na sua diferença, de volta?

É muito assustador quando uma sociedade começa a funcionar segundo uma divisão baseada no ódio ao outro, a quem pensa diferentemente ou tem uma origem social distinta. O clima social geral e em todas as organizações fica extremamente pesado. Haverá mais conflitos desnecessários, em algumas situações se chegará à violência, com a possibilidade da morte de um irmão ou irmã não de sangue, mas de identidade nacional. As escolas se tornarão menos suscetíveis ao aprendizado como resultado do diálogo e do compartilhamento de experiências diferentes. As empresas também sofrerão com esse processo de disseminação do ódio, provavelmente reduzindo sua produtividade, porque o sucesso organizacional depende bastante da combinação de talentos e visões de mundo diferentes.

Para exemplificar a que ponto se chegou o ódio alimentado pelo bolsonarismo, basta lembrar que o Brasil precisa do Nordeste para a construção de seu imaginário cultural e de seu sucesso econômico - experimente segregar os estados, e barreiras econômicas nascerão a seguir, perdendo-se mercado consumidor e capital humano. Os meninos da escola privada que trataram seus colegas de forma preconceituosa terão enormes dificuldades de conseguir empregos no futuro, pois as empresas estão demandando diversidade, e quem for contra isso terá menos espaço na economia do século XXI. Voltando à Copa do Mundo, tema que vai ser dominante nas próximas semanas, seria impossível ganhar qualquer um dos cinco títulos que temos se o atual modelo de ódio definisse as convocações.

Aqui vale diferenciar o conceito de pátria do sentido da palavra nação. Ficou na moda em certos círculos sociais se definir como patriota. Gostar da bandeira e do hino nacional unifica as pessoas de um país. Só que a palavra pátria tem a ver mais com o lado oficial do Estado nacional, e relaciona-se menos com o que profundamente liga as pessoas em uma determinada sociedade. A pátria pode ser evocada por ditadores, por gente que mata seus semelhantes em nome de objetivos políticos - muitos dos autoproclamados patriotas que estão nas ruas querem destruir seus inimigos, mesmo que sejam seus vizinhos que um dia os levaram ao hospital ou cuidaram de seus filhos quando estavam fora de casa.

A nacionalidade, ao contrário, vai além da estrutura institucional do poder. Ela está lá também, entretanto, sua principal característica é ser um sentimento profundo e de longo prazo de pertencimento a uma coletividade. A nação unifica sem que se produza a homogeneidade social. Em vez disso, deve garantir a unidade na diversidade, alimentando consensos e gerindo dissensos. O pertencimento a uma nação é a possibilidade de discordar e conviver, como quem torce para times diferentes, discute quem é a melhor equipe, xinga o juiz do jogo, mas ao final aceita as regras e acredita que o futebol só tem graça porque há adversários. O que seria do Corinthians sem o Palmeiras, e vice-versa?

O ódio político está minando os vínculos básicos da nação brasileira. Em termos coletivos e intertemporais, ninguém ganha com isso, a não ser grupos organizados para conquistar o poder por meio da violência política e social. O problema é que esse tipo de extremismo convenceu uma parcela relevante da sociedade brasileira que, inebriada pela hiperpolitização que parece dar respostas a todas as angústias da vida social, mobiliza-se cegamente para a destruição das bases mais amplas da coletividade, colocando em risco o seu presente e, sobretudo, o futuro de seus filhos e netos.

No curto prazo, é preciso construir espaços públicos de diálogo entre os diferentes, mostrando como é possível conviver com a divergência, negociar posições e até mudar de opinião. Claro que aqueles que cometeram crimes contra a democracia, segundo define a lei, podem ser punidos. Todavia, a maioria que está descontente com o resultado eleitoral e acredita nas teorias conspiratórias que são alimentadas pela hiperpolitização pode ser trazida de volta ao debate democrático com suas diferenças em relação ao presidente eleito.

Para isso, é preciso que as principais instituições sociais, como a mídia e a universidade, e o novo governo se guiem pela maior abertura possível para conversar e incorporar demandas de diferentes setores sociais. No caso da terceira gestão presidencial de Lula, ele terá que se vigiar constantemente para evitar o hegemonismo que por muitas vezes acomete o PT. A frente ampla é a única forma de salvar a nação da doença do ódio que cresce no país, e ela será feita de grandes decisões e de pequenos atos, como o relativo à discussão da presidência do BID, quando o petismo se esqueceu das lições recentes e atuou como no passado hegemonista.

A solução estrutural para evitar o crescimento do ódio político e social está na educação. É preciso fazer da diversidade a peça central do ensino, da creche à universidade. Há quase 30 anos formo alunos com ideias diferentes, e sempre estimulei o convívio e o aprendizado entre os divergentes. Já falhei na minha jornada pedagógica, como num episódio recente em que fui desrespeitoso com quem pensava diferentemente de mim. Talvez todos estejamos envoltos em muito ódio, quando precisamos de paciência e de empatia. Por essa razão, dedico este artigo a Danielle Klintowitz, falecida precocemente há algumas semanas. Ela foi minha orientanda e seu doutorado mostrava que uma política pública bem-sucedida depende de negociação e acordos entre os diferentes. E o que vale para ações governamentais, vale para a convivência de todas as pessoas da nossa nação.

A República brasileira deve aprender com a fome

Um dos grandes desafios que tive como professora do ensino básico era fazer com que meus estudantes traçassem paralelos entre a História Antiga que lhes ensinava e o Brasil que eles viviam. Para além de um certo fascínio criado por Júlio César, Cleópatra e pelos gladiadores, o Império Romano parecia (e era) extremamente distante.

Lembro-me, com grande decepção, de que esses mesmos estudantes ficavam alarmados (revoltados, muitas vezes) quando descobriam que a imensa maioria dos escravizados desse império não era formada por africanos e seus descendentes, e sim homens e mulheres brancos, reafirmando que somos ensinados desde muito cedo que existe uma falaciosa relação entre a cor negra e escravidão.

Mas havia um ponto alto no bimestre: quando os estudantes faziam a conexão entre a construção da República romana e a República brasileira. Investíamos um bom tempo para compreender quais foram as transformações políticas construídas por parte da elite romana que fizeram da defesa da "coisa pública" um ponto fulcral na consolidação dessa forma de governo.


Essa "coisa pública", tomando o significado da palavra latina "República" ao pé da letra, representava a construção de uma forma de governo que buscava atender aos interesses dos cidadãos romanos, por meio da escolha de representantes com funções e poderes distintos por tempo determinado. A existência do sistema bicameral também foi pensada para que o exercício do poder legislativo tivesse como finalidade máxima o "bem público", e não o interesse de grupos específicos.

Não há dúvida de que o nepotismo fez parte da história da República romana, haja vista as intensas disputas políticas que marcaram seus mais de 500 anos de existência. Uma ideia de exercício do bem público que conviveu muito bem com um sistema escravista em expansão. E ainda que haja um gérmen em comum, é também fundamental lembrar que existem inúmeras diferenças entre a república construída pelos irmãos Graco e a brasileira. Mesmo porque são milênios que as separam.

No entanto, me parece fundamental resgatar o sentido etimológico da palavra, para rememorar os 133 anos da República do Brasil neste 15 de novembro. Sobretudo neste momento em que ainda temos grupos que insistem em não reconhecer sua derrota em meio ao jogo democrático, exigindo que seus interesses privados e particulares estejam à frente do bem maior, ou da maioria da população.

A República brasileira está longe de ser inclusiva. Se recuperarmos os anos iniciais da experiência republicana, veremos com muita clareza o que o historiador Marcos Napolitano chamou de "arquitetura da exclusão". Veremos que, por muito tempo, o bem público era muito delimitado e usufruído por poucos, os mesmos de sempre. E que tal limitação caminhava de mãos dadas com o racismo, fazendo da população negra, mestiça e indígena cidadãos de segunda classe, quando muito.

No entanto, também veremos que esses 133 anos foram marcados pela luta constante por garantia e ampliação de direitos desses mesmos "cidadãos de segunda classe". Uma luta que pode ser traduzida pelo alargamento do sentido e da extensão do "bem público". Uma luta tamanha que afronta a percepção que alguns grupos ainda têm sobre quem e o que deve ser contemplado no exercício da cidadania.

O horror que o choro do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva causou em alguns setores da elite política, econômica e intelectual do Brasil é um exemplo disso. Segundo eles, um presidente não deve se emocionar ao falar sobre fome. Sobretudo se esse choro e emoção não forem bem vistos pelo "mercado", que prefere ver milhares de famintos a ter um teto de gasto questionado.
E aí me pergunto: onde fica a coisa pública?

Há mais de 80 anos, o historiador Sérgio Buarque de Holanda chamou a atenção para o fato de que o brasileiro, em geral, e a elite brasileira, em particular, têm grande dificuldade em determinar o que é público e o que é privado. Essa dificuldade atravessou a experiência republicana brasileira desde o fatídico 15 de novembro de 1889, demonstrando sua cara mais feia nos momentos de ditadura militar, ou de tentativas de instauração da mesma.

No entanto, mesmo em momentos em que a política brasileira aparenta ser progressista, há uma disputa sobre o que é o "bem público", e a quem ele deve atender em primeiro lugar. E num país no qual 33 milhões de cidadãos passam fome, fico com a máxima da escritora Carolina Maria de Jesus: "O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora."

No Brasil, o bem público também tem que ser o bem de quem passa fome.

Desempobrecer e enriquecer

Desde que o pensamento econômico passou a dominar a lógica do processo social, desempobrecer e enriquecer significam o mesmo: aumentar a renda. Mudam os valores, mas o mesmo conceito serve para quem sai da pobreza, um pouco mais de renda, e quem sobe na riqueza, muito mais renda.

Perdeu-se a perspectiva de que sair da pobreza é menos aumentar um pouco a renda do que dispor de acesso aos bens e serviços essenciais: segurança alimentar, escola com qualidade, moradia com água potável, esgoto e coleta de lixo, atendimento médico, transporte coletivo de qualidade e um nível básico de renda. Há quase 100 anos, os economistas prometem que tudo isto chegará com o crescimento econômico, emprego e renda, e nunca chega, porque o acesso no mercado aos itens essenciais só é possível por pessoas de renda alta, para a maior parte das pessoas com renda baixa, este acesso só é possível se disponíveis publicamente.


Os economistas afirmam também que o enriquecimento se define pelo aumento da renda dos que já são ricos, esquecendo que a riqueza deve significar também: andar nas ruas sem medo de violência, viver sem necessidade da prisão em condomínios, ir a um restaurante sem constrangimento de pedintes na porta, ou da lembrança dos milhões de famintos ao redor, viajar ao exterior sem ser visto como beneficiado da concentração de renda em seu país, saber que seus filhos não precisarão emigrar para sobreviverem em paz e com emprego. Sobretudo, enriquecer é viver em um país onde todos desempobreceram.

O presidente Lula parece ter consciência desta visão não economicista de riqueza e pobreza. Mas consciente de que é preciso uma economia eficiente, para oferecer serviços públicos a todos. Sabe também que a inflação empobrece aos pobres e barra o enriquecimento da economia.