quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

STF vira Supremo Tribunal da Família Bolsonaro

A família Bolsonaro entra no ano de 2021 com o pé esquerdo. Pai e filhos exibem seus calcanhares num desfile compulsório pelos escaninhos do Supremo Tribunal Federal. Estão em cartaz encrencas novas e investigações prorrogadas.

Sob a supervisão do ministro Luís Roberto Barroso, o deputado Eduardo Bolsonaro chega ao Ano Novo como alvo de apuração da Procuradoria da República sobre o uso de dinheiro vivo na compra de imóveis no Rio de Janeiro. Coisa de R$ 196 mil, em valores corrigidos pela inflação.

A investigação é preliminar. Mas, considerando-se o histórico de Barroso, pode se tornar definitiva. O ministro não vê com naturalidade políticos que têm ojeriza ao sistema bancário.

Em 2018, ao votar a favor do envio de Aécio Neves para o banco dos réus, Barroso não digeriu a alegação do tucano de que uma propina recebida da JBS em espécie era apenas um empréstimo do amigo Joesley Batista.

"No mundo dos negócios lícitos", disse Barroso na ocasião, "um pagamento de R$ 2 milhões em quatro parcelas de R$ 500 mil se faz por transferência bancária."

Nas palavras do ministro, "ninguém sai por aí transportando mochilas e malas de dinheiro a menos que haja alguma coisa errada na operação."

Em outra iniciativa que terá desdobramentos depois do Réveillon, a ministra Cármen Lúcia ordenou ao procurador-geral Augusto Aras que apure a suspeita de que Jair Bolsonaro colocou a engrenagem da Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, a serviço da defesa do primogênito Flávio no caso da rachadinha, eufemismo para corrupção.

Ao enumerar os delitos que podem ter sido cometidos, Carmen Lúcia incluiu na lista a expressão que faz tremer mandatos: "Crime de responsabilidade." O centrão não perde por esperar. Ganha.

A investigação sobre a Abin é prima do inquérito em que Bolsonaro é acusado por Sergio Moro de tramar a conversão da Polícia Federal num aparelho de proteção de familiares e amigos.

Isso ocorreria a partir da transferência do delegado Alexandre Ramagem, amigo da família Bolsonaro, do comando da Abin para a direção-geral da PF. Uma migração que só não ocorreu porque o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo, vetou.

Moraes também jogou água no champanhe dos Bolsonaro ao prorrogar por 90 dias inquéritos que azucrinam a primeira-família. Entre eles o que trata da politização da PF e o que apura o envolvimento de militantes, empresários e parlamentares bolsonaristas na organização e no financiamento de atos antidemocráticos.

O rol dos suspeitos inclui o vereador Carlos Bolsonaro, citado mais de 40 vezes no processo, e seu irmão Eduardo.

Pai e filhos desfilam suas fragilidades na instância máxima do Judiciário com tal assiduidade que muita gente logo começará a chamar o STF de Supremo Tribunal da Família.

Aos pouquinhos, vai ficando claro que Jair Bolsonaro é o chefe de uma organização familiar. Essa organização explorou durante as últimas décadas uma espécie de holding de servidores fantasma e de rachadinhas.

Com sede no gabinete do próprio Bolsonaro, na Câmara Federal, a holding familiar tinha filiais nos mandatos de Flávio, na Assembleia do Rio; e de Carlos, na Câmara municipal carioca.

Segundo o Ministério Público há na contabilidade da organização transações imobiliárias feitas em moeda sonante, uma fantástica loja de chocolates, repasses monetários para ex-mulheres do chefe do clã, e até depósitos do operador de rachadinhas Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama Michelle.

Um pai convencional, à medida que progride, cuida de preparar os filhos para a vida. Bolsonaro teve a pretensão de preparar a vida para os filhos. O problema é que proliferam os indícios de que a conta do empreendimento familiar foi espetada no déficit público.

O homem que não mentia

Foi no bar do Soares aqui em Niterói que, num velho Natal, fui apresentado a Melo Reis da Costa Santos, famoso por ser um homem que não mentia.

Como os “amigos de praia”, os “de bar” contam muito no pouco tempo que dispõem fora da casa e da família. Alforriados, eles competem escudados por suas gloriosas fantasias reveladoras de desejos que, como feridas expostas, esperam por mercúrio cromo, gaze e esparadrapo. Foi nesse ambiente quixotesco, animado por narrativas fantásticas, que eu encontrei essa nobre figura.

Melinho é um afastado professor da faculdade de Ciências Ocultas e Letras Apagadas (vulgarmente chamadas de “Ciências Sociais”) por ter assediado uma aluna. Fiquei chocado, porque Melo Reis da Costa Santos é um careca feio de pernas finas, e tem 90 anos!

O escândalo, é lógico, aconteceu quando os bichos falavam e os homens “cantavam” em vez de agredir as mulheres. Tempos em que os asnos eram proibidos de governar e — como nada é perfeito — as mulheres obedeciam. Naqueles tempos miológicos, um professor Melo dava aula barbeado, de terno e gravata e tinha plena consciência de seu poder feiticeiro sobre seus alunos, tanto que, durante o processo e para horror do juiz narcisista que usava peruca e comia a tabeliã do fórum, Melo Costa admitiu-se culpado e forneceu detalhes que a própria vítima considerou incríveis, pois confirmavam sua culpa.

—Estava cego e agi de má-fé, não podia mentir — recorda Melinho. São histórias deste tipo que confirmam sua fama de estranho ou, quem sabe, de psicótico. Um sujeito em combate permanente (e vão) contra o logro, a desfaçatez, a hipocrisia, a malandragem e a mentira que estruturam do nosso sistema social tem que ser doido. No Brasil não há mentiras, é a mentira que mente por nós, proclama Melinho num fantasioso arrebatamento.

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Sempre que Melinho fala em social, cultural, ou estrutura, ele levanta o copo e olha significativamente para mim. Como — emenda ele bêbado e raivoso — sustentar uma imoral e permanente desigualdade por meio de um Estado (e de governos) que (como o rei de Portugal) “dão” capitania, foro, emprego e nobreza aos amigos e companheiros, legitimando que não se trabalhe, sem mentir? Como conviver com escravidão africana se imaginando cristão e liberal, sem ser hipócrita? Como ser esperto e ter como mapa uma malandragem de raiz cujo código, pouco discutido justamente por malandragem, é o familismo estruturante, sem afundar-se num paradoxo destrutivo?

Foram esses delirantes discursos de Melinho que lhe valeram o ambíguo e, no fundo, invejável título de “Melinho-Honesto”, de “Melo Implacável”. E, para alguns a pecha de Melinho reacionário, fascista e zangado.

Tudo porque Melinho não mente. É o único sujeito que conheci que jamais mentiu. Na sua casa as crianças jamais ouviram falar de cegonha, de político honesto e, a propósito, de Papai Noel.

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Nesta véspera de um pandêmico e solitário Natal, eu o encontrei no consultório de nosso oftalmologista, pois sofremos de uma degenerescência incurável da mácula.

— E aí Melinho, como vai a vista?

— Péssima! Aliás eu gostaria mesmo era de não ver o que enxergo...

— O estado do mundo e do Brasil...

— Veja o absurdo. Há vacinas, mas há um presidente com um óbvio desejo de morte. Ele procura desencontros. Eis um presidente que, contrariando o seu papel, aposta no anômalo; ou, como dizia o inventor da sociologia, o francês Émile Durkheim, na anomia.

Nenhuma sociedade — continuou Melinho agora como professor — elege a morte como valor ou meta. Sabe-se que a morte é inevitável pois é parte da vida. Morrer é, sem dúvida, normal, desde que — e esse é um ponto capital — seja evitada. Quando um presidente perturba o mais potente e exclusivo meio de cura, ele joga arrogante e irresponsavelmente contra a confiança dos que nele votaram o que, diga-se de passagem, não foi o meu caso, embora eu tenha consciência de que Bolsonaro&Filhos não chegou ao cenário da polícia nacional vindo do espaço sideral. Ele é cria de um sistema avesso a todas as éticas.

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“Duas pessoas — dizia o estoico Sêneca que teria trocado cartas com São Paulo — se combinam num piloto: uma ele compartilha com todos os outros passageiros, porque também ele é um passageiro; a outra, porém, é apenas dele porque ele é o piloto. Uma tempestade o atinge como passageiro, mas não o atinge enquanto piloto”.

Em seguida, Melinho acendeu um mortal cigarro, tragou demoradamente sua cachaça e disse com voz rouca e ranzinza de profeta:

— Aborreço muito por não mentir. Com 90 anos, eu — velho — mal consigo suportar a mim mesmo.

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Desejei um Feliz Natal ao meu velho amigo. E a vocês, leitores generosos e pacientes, vítimas das mentiras do mundo.

Pensamento do Dia

 


Bolsonaro investe contra a palavra, a vida e a verdade

Gestão Bolsonaro completa 2 anos sem cumprir promessas. Esta é a manchete deste jornal no último dia 21. O texto de Vinícius Valfré relaciona os 12 principais temas da campanha eleitoral que levou o capitão à vitória, todos abandonados no governo.

Já no início da gestão havia deixado de lado promessas de palanque, como privatizações, reforma tributária e apoio à Lava Jato. Para completar, em abril livrou-se de uma promessa pessoal: o ex-juiz Sergio Moro, símbolo da operação contra a corrupção. Outro pilar da lorota para seduzir liberais crédulos, o “posto Ipiranga” na economia, Paulo Guedes, ficou na equipe, mas nenhuma bandeira sua foi desfraldada de fato. “Reformas desidratadas foram encaminhadas ao Congresso sem uma articulação política capaz de viabilizá-las. A simplificação de tributos e a isenção do Imposto de Renda para quem recebe até cinco salários nunca saíram do papel”, registrou Valfré.

Ele nomeou para cargos poderosos membros do Centrão, indicados por políticos acusados de receber propina, em troca de apoio em eventual processo de impeachment e outros assuntos de interesse pessoal e familiar. Prestigiou as pautas prioritárias para seu eleitorado fiel da extrema direita, o direito de matar dos policiais (presunção de ilicitude), o afrouxamento de limites de velocidade no trânsito e a suspensão de decretos de rastreamento de armas. O principal lema da campanha – “O Brasil acima de tudo e Deus acima de todos” – foi trocado por “aos meus filhos tudo, aos inimigos o rigor da lei”. Disse que era “a Constituição”, superando o rei francês Luís XIV, que se definia como “o Estado”. E que os R$ 89 mil depositados pelo acusado pelo Ministério Público do Rio de ser miliciano Fabrício Queiroz e sua mulher, Márcia Aguiar, para a consorte, Michelle, são irrisórios para configurarem propina. Confessou, sem querer, querendo, ser corrupto.



Para não ter de responder pelos crimes que tem cometido, recorre ao dublê de advogado pessoal de sua famiglia e procurador-geral da República, Augusto Aras, que faz das tropas coração para livrá-lo do escândalo da Agência Brasileira de Informação (Abin), órgão de Estado que usou em proveito próprio e de sua ninhada. Ficou claro, em furo dos jornalistas Guilherme Amado, da Época, e Fábio Leite, da Crusoé, que a agência de informação foi utilizada para ajudar Flávio Bolsonaro a escapar da denúncia da prática de peculato, corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa, em seu gabinete na Assembleia do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). Segundo Aras, a denúncia é “grave”, mas tem de ser “provada”. A ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Cármen Lúcia determinou que as procurasse em investigação e lhe deu 30 dias para informar as providências que terá tomado. Para ela, a Abin só pode fornecer dados quando comprovado o interesse público da medida e sob controle do Judiciário, ficando vedado o repasse de informações de inteligência com objetivo de atender a interesses pessoais ou privados.

A Abin substituiu o Sistema Nacional de Informações (SNI), da ditadura militar, criado pelo general Golbery do Couto e Silva e extinto por Fernando Collor. Foi criada por lei no governo Fernando Henrique, em 1999, a pretexto de fornecer ao presidente da República e a seus ministros informações e análises estratégicas, oportunas e confiáveis, necessárias ao processo de decisão. Mas, na prática, foi, sob FHC, inicialmente, manipulada por Sérgio Motta para perpetuar no poder seu partido, o PSDB.

Usada desde sempre para fins políticos, protagonizou desvios de conduta em vários escândalos nacionais. O mais notório foi o grampo no Supremo, em 2007, sob a égide do PT de Lula: chefiados pelo delegado Paulo Lacerda, arapongas da Abin fizeram escutas ilegais no gabinete de vários ministros e do então presidente do STF, Gilmar Mendes. Por isso o delegado, que também dirigiu a Polícia Federal (PF), e sua diretoria foram afastados.

Outro delegado federal, Alexandre Ramagem, que participou da segurança do candidato Bolsonaro depois do atentado em Juiz de Fora, instalou na agência aqueles que o próprio presidente definiu como sua agência pessoal de informação na fatídica reunião de 22 de abril, cujo vídeo foi visto por todos, por decisão do então decano do STF, Celso de Mello. Se investigar mesmo, Aras poderá deparar-se com o esquema executado, segundo a Crusoé, por um delegado da PF, Marcelo Bovernet, pelo agente Flávio Antônio Gomes, chefe da Abin em São Paulo, e pelo papiloscopista João Paulo Dondelli, diretor de Projetos Especiais do Ministério das Comunicações.

Na sexta-feira 18 de dezembro, Bolsonaro foi à formatura de novos policiais militares do Estado do Rio, que formam o que ele chamou de “milícias populares” na reunião acima referida. Na ocasião, assumiu o compromisso de que não deixará de cumprir o que sempre prometeu contra a verdade e a vida e a favor da mentira e da morte, adotando como inimigo comum a busca da realidade: “Essa imprensa jamais estará do lado da verdade, da honra e da lei. Sempre estará contra vocês. Pensem dessa forma para poderem agir”. Ao estilo bem lulista de ser, como lhe convém.

Em prece


Que o bom Deus proteja as vítimas da burocracia em todas as partes do mundo onde ela exerce sua tirania 
Ilse Losa

Sadismo de Bolsonaro com a vacina chega ao limite da loucura

Enquanto o mundo inteiro sonha com a vacina como única solução para sair do pesadelo em que vive, o presidente Jair Bolsonaro zomba dela publicamente. Assim como no início da epidemia ele ria dizendo que era apenas uma “gripezinha”, que já fez quase 200.000 mortes, agora ri da vacina com seu sadismo habitual que parece gozar com a dor das pessoas. Acaba de dizer que “não haverá vacina suficiente para todos”. Além disso, acrescentou, não faz falta porque “a epidemia está acabando”. Ele não entende que o mundo inteiro está preocupado porque a segunda onda da covid-19 já chegou com uma virulência 70% maior, o que levou as autoridades mundiais a afirmar que em janeiro, depois das festas, a epidemia poderá ser assustadora. Por isso, na maior parte do mundo, as autoridades proibiram as festas públicas de Natal e de fim de ano.

E o pior do presidente brasileiro é que, enquanto o mundo está em pânico com o crescimento da pandemia que está amargando o fim de ano em que todos nós sempre desejamos um ano melhor, ele não só continua negando as evidências como até se concedeu a liberdade de fazer piadas homofóbicas sobre a vacina. É um caso único no mundo em meio à tragédia que vive. Chegou a caçoar de quem toma a vacina, dizendo entre gargalhadas que “nascerá barba nas mulheres”, que os homens “vão começar a falar fino” ou que as pessoas “vão virar jacarés” .

Que Bolsonaro carece completamente não apenas de empatia com a dor alheia e com aqueles que sofrem já não é um mistério. Ele vai além, a ponto de parecer simplesmente insensível às lágrimas das pessoas. Isso está levando não poucos psiquiatras a pensar que se acumulam nele vários problemas de tipo psíquico e até de psicopatia que o tornariam alguém inviável para dirigir o país.

O presidente do Câmara, Rodrigo Maia, o acusou publicamente de “mentir” à nação, o que em qualquer país civilizado seria motivo para retirá-lo do cargo. E não é que minta todos os dias, mas que tenha feito da mentira uma de suas armas de defesa.

Bolsonaro, como um obsessivo, segundo os analistas políticos, hoje tem apenas duas preocupações: salvar os filhos e a família das graves acusações de corrupção e se reeleger em 2022. Todo o resto —a crise econômica, o aumento da fome no país, a dor dos que morrem na epidemia— não lhe interessa. Nesse caso, ele chegou a usar a Abin, a agência de inteligência brasileira, para sua defesa, algo que em qualquer democracia normal seria um crime imperdoável.

Enquanto isso, e para se blindar contra um impeachment, está sendo criada uma couraça de defesa que engloba todas as forças de segurança do Estado. Ele encheu de privilégios todos os segmentos da polícia e do Exército e até das milícias que sempre estiveram ao seu lado.

Na sexta aconteceu uma cena terrível. Ele fez um discurso feroz contra os meios de comunicação aos comandantes da Polícia Militar. Disse-lhes que a imprensa e as televisões independentes estão todas contra eles, que são seus maiores inimigos, tentando desprestigiá-los perante toda a polícia, a qual encorajou a buscar informações nas redes sociais porque os meios de comunicação estão contra ela, só mentem e são seus piores inimigos.

Desta forma, e com seu amor quase sexual pelas armas, Bolsonaro está se preparando para que em um momento de desespero possa recorrer às Forças Armadas em sua defesa, enquanto continua defendendo a ditadura. Acaba de dizer que nas prisões da época até os terroristas “eram tratados com respeito”. Nada de novo, pois, desde que era um obscuro deputado, defendia a tortura e se acaso acusou a ditadura foi por ter perdido tempo torturando, já que o que deveria ter feito era simplesmente “matar”. Os sentimentos de Bolsonaro desaguam sempre no culto às armas, no ódio à democracia e no desprezo pelas liberdades. Todos os ingredientes dos velhos caudilhos.

Há quem tema que Bolsonaro, incomodado com as instituições independentes da República, esteja cansado de ter que harmonizar seu Governo contando com elas.

A crescente desconfiança em relação aos demais Poderes do Estado, que ficou clara em suas turbulentas relações com o Supremo Tribunal Federal e com o Congresso, aos quais desejaria ter a seus pés e que já ameaçou fechá-los, revela que sua própria essência de político é ter um poder absoluto com as instituições a seus pés.

Nasce daí nos analistas políticos o temor de que, se as forças democráticas não se unirem em 2022 para tirá-lo do poder, seu segundo mandato poderá ser muito mais autoritário e ele até poderia aproveitar para dar um golpe com o qual sonha desde que chegou ao poder sem perceber que na política não se pode trabalhar como nos quartéis.

A política é a arte do compromisso e conjugar a liberdade das diferentes instituições, caso contrário é a morte da democracia. E Bolsonaro sempre foi alérgico a mediações e a saber conviver com o diálogo.

Com tudo isso, se começa a pensar que se o presidente continuar em seu atual mandato a boicotar abertamente as instituições, com ausência de empatia com as dores da nação, trancado em seu labirinto de autoritarismo e mentindo como até agora, as outras instituições democráticas deveriam começar já a buscar uma forma de retirá-lo de um poder para o qual nestes primeiros dois anos de mandato está se revelando totalmente incapaz, causando um caos com seu Governo negacionista em todos os espaços.

O Brasil é maior que seus políticos. É um país que merece respeito e não pode estar nas mãos de uma pessoa que humilha todos os dias o seu "povo", que mente com a maior desenvoltura, que não é capaz de organizar a economia, que ignora os problemas estruturais do país. Um presidente que zomba dos direitos humanos, que mente com o maior descaro e continua a caçoar do racismo estrutural de que o país ainda sofre, bem como dos direitos da mulher, e que não demonstrou num só instante um sentimento de compaixão com a perseguição aos diferentes e a todos aqueles que o capitalismo insensível está arrastando todos os dias para a pobreza, a fome e a violência.

Os mortos de um e os mortos de outro

“Periculosidade social na condução do cargo”. Uma qualificação judicial que parece criada para resumir as razões de interdição de Bolsonaro.

Embora a expressão servisse ao ministro Og Fernandes (STJ) para afastar o secretário de Segurança da Bahia, ajusta-se com apego milimétrico a quem incentiva a população a riscos de morte ou sequelas graves, com a recusa à prevenção e ao tratamento ​científico.

Já em seu décimo mês, e sem qualquer reparo das instituições que, dizem, “estão funcionando”, a campanha de Bolsonaro e as medidas de seus militares da Saúde chegam ainda mais excitadas e perigosas ao seu momento crucial.



Quem observou os movimentos reativos que o caracterizam por certo notou que é também dele a vulgar elevação da agressividade quando o medo, a perda de confiança, o pânico mesmo, são suscitados pelas circunstâncias. A última semana, como um início de cerco a Bolsonaro, deu-lhe os ares e os atos de desespero.

O confisco da vacina Sinovac-Butantan pelo governo federal, toda a vacinação concentrada no militarizado Ministério da Saúde, a exigência de responsabilização do vacinado por hipotéticos riscos foram alguns dos foguetes hipotéticos que mostravam um Bolsonaro se debatendo, aturdido. Nem a liberação total para armas importadas abafou a onda crítica.

A revelação de participações da Abin na defesa de Flávio Bolsonaro (feita por Guilherme Amado na Época), apesar da rápida e óbvia negação da agência e do general Augusto Heleno, desarvorou Bolsonaro.

Estava em mais uma de suas fugas reeleitoreiras de Brasília, em desavergonhadas advertências de deformações ridículas em vacinados, quando o Supremo desmontou suas trapaças contra a liberdade de ação dos estados e municípios na pandemia.

E, boa cereja, a advogada Luciana Pires confirmou o recebimento de instruções da Abin para a defesa de Flávio, um truque para anulação do inquérito.

A explosão, incontível, não tardou. Na mesma quinta (17), Bolsonaro investe contra a imprensa, atiça as PMs contra jornalistas. Em fúria, faz os piores ataques aos irmãos donos de O Globo. Sem apontar indícios das acusações.

Se verdadeiras, por que não as expôs, para uma CPI, quando na Câmara representava os “militares anticorrupção”? Ou, presidente, não determinou o inquérito, como de seu dever? Nos dois casos, o silêncio é conivência criminosa. Sendo inverdadeiras as acusações, desta vez feitas a pessoas identificadas, sua entrada no Código Penal é pela mesma porta, a dos réus.

O gravíssimo uso da Abin, entidade do Estado, para proteger Flávio Bolsonaro e o desvio de dinheiro público, caiu em boas mãos, as da ministra Cármen Lúcia no Supremo. Troca de vantagens não haverá, medo não é provável.

Isso significa atos mais tresloucados de Bolsonaro. E um problema para e com os militares que, no governo, em verdade são a guarda pessoal de Bolsonaro.

Não só, porque o general Augusto Heleno, o Heleninho sempre protegido e bem situado, está comprometido dos pés à cabeça. A distância pode ser pequena, mas bastante para o autoritarismo militar sacudir a pouca poeira que resta.

A propósito, a menção ao general Heleno no artigo anterior o levou a vários adjetivos insultuosos a mim, concluindo por me dizer “pior como ser humano”. Essa expressão, ser humano, me lembrou uma curiosidade de muitos e que o general é o indicado para esclarecer: quantos seres humanos mortos pesam em suas costas, pela mortandade que ordenou sobre a miséria haitiana de Cité Soleil?

A ONU pediu ao governo brasileiro sua imediata retirada de lá, exclusão sem precedente nas tropas de paz, e a imprecisão sobre as mortes, dezenas ou centenas, perdura ainda.

Já no caso da Abin, pode-se desde logo esperar algumas respostas interessantes. E cáusticas.