sexta-feira, 16 de janeiro de 2015
O povo não é bobo
Os que estão no governo querem mesmo é censura prévia ou, como se diz por aí, controle social da mídia
“Sim, eu sei o que fazem os editores, eles separam o joio do trigo e publicam o joio". A frase clássica de Adlai Stevenson, político americano do Pós-Guerra, pode ser utilizada com variadas intenções. Trata-se, claro, de uma divertida crítica à qualidade da imprensa. Por aí, as verdadeiras notícias estariam na lata de lixo das redações e, lógico, a sociedade ficaria sempre mal informada.
Mesmo quando não admitem, políticos de todas as tendências concordam com Stevenson. Os que estão no governo, então, acham que a frase é perfeita e justifica medidas corretivas. Não é censura, dizem, apenas encontrar meios para melhorar a qualidade da imprensa.
Conversa. O que querem mesmo é censura prévia ou, como se diz por aí, controle social da mídia.
Jornalistas estão o tempo todo decidindo, primeiro, o que se vai apurar, segundo, o que se vai publicar e, terceiro, como se vai apresentar a notícia.
Tudo considerado, caímos na mais antiga questão da profissão: o que é notícia? Há várias respostas clássicas produzidas por jornalistas:
— Se o cachorro morde o homem, não é notícia, se o homem morde o cachorro, é;
— Notícia é tudo aquilo que alguém não quer ver publicado, o resto é propaganda;
— Jornalismo é oposição, o resto é armazém de secos e molhados (Millôr Fernandes);
Examinamos essas teses em coluna aqui publicada em 22/12/2011, com o título “O povo não é bobo". Também pode ser encontrada no arquivo de www.sardenberg.com.br.
A questão hoje é anterior: quem decide o que é notícia? Os patrões, os donos dos jornais, rádios, TVs e sites — diz o pessoal que quer introduzir a censura prévia, perdão, o controle social.
Sim, há veículos nos quais as redações são instruídas a publicar apenas o que os patrões consideram a notícia correta. Exemplo? Todos os veículos cujo patrão é o governo — a conhecida imprensa chapa-branca.
Somos contra a censura prévia e/ou “controle social" — o leitor já terá notado — mas se a regra for introduzida, a aplicação tem que começar pelos veículos do governo. Estes publicam um enorme joio, as versões oficiais: ninguém rouba nada, não há mensalões nem petrolão, tudo funciona e, se não funciona, é por causa da seca, do azar, do mundo, da oposição ou da imprensa do contra.
Ainda tem aí uma baita farsa. O verdadeiro patrão é o povo, que paga os impostos e assim financia a chapa-branca. Mas os políticos, governantes de plantão, usurpam o papel de patrões e controlam essa mídia no interesse dos respectivos partidos. Sim, foram eleitos, e por isso representam a população. Mas, numa democracia, não podem esquecer que tiveram o voto de parte dos eleitores, havendo, pois, uma outra parte que merece respeito — e informação não partidária.
A saída — segundo uma velha tese — é colocar os veículos do governo sob controle de um comitê com representantes dos diversos partidos, em número proporcional aos votos por eles conseguidos.
Esqueçam. Não funciona. Um veículo público assim dirigido vai noticiar não uma, mas várias versões oficiais, o joio do governo e o da oposição. Duplo desperdício de dinheiro do povo.
Há quem recomende a proibição legal: governos, federal, estaduais ou municipais, não poderiam editar veículos de informação geral — de suposta informação geral, no caso. A TV pública, por exemplo, divulgaria apenas programas educativos, cursos e informação efetivamente pública, como campanhas para combater a dengue, chamada para vacinação, previsão do tempo, instruções para agricultores e assim por diante.
Seria mais barata e mais útil.
Outros sugerem que os veículos do governo sejam, afinal, dirigidos como os da imprensa privada de qualidade — aquela cujos jornalistas são guiados por um código formal ou informal, com o objetivo de apurar e publicar o que é notícia ou opinião relevante.
Na prática, é difícil conseguir tal isenção no setor público. Além disso, se a TV pública vai fazer a mesma coisa que a TV privada faz, por que gastar dinheiro do contribuinte com a primeira?
O que retorna a questão: como garantir que os jornalistas escolham o trigo? Ou como a lei pode garantir a qualidade da imprensa?
Não pode. A lei tem que garantir a liberdade da imprensa e, sim, dos jornalistas. A qualidade — ou, a notícia de interesse, publicada de forma correta, isenta e independente —, isso depende do público, do leitor, ouvinte, telespectador e internauta.
O povo não é bobo, sabe onde buscar a informação. Olhem as audiências. É eloquente a audiência zero dos noticiários das TVs púbicas. É evidente a baixa credibilidade dos veículos que só divulgam a voz do dono, seja o governo ou a empresa privada.
O tema seguinte é: como distinguir e quem pode distinguir entre ofensa e crítica? Na próxima.
Blasfêmia
Tem gente dizendo que cartunistas foram longe demais, o que equivale a afirmar que mereceram. É o mesmo raciocínio de quem diz que mulher estuprada estava pedindo
Vamos combinar que não existe nada mais ofensivo do que um tiro na cabeça. Não posso imaginar uma blasfêmia maior do que espalhar os miolos de alguém com um AK-47. Porque tem gente dizendo que os cartunistas do “Charlie Hebdo" foram longe demais, o que equivale a dizer que mereceram o que lhes aconteceu. É o mesmo raciocínio de quem diz que mulher estuprada geralmente estava pedindo.
“Blasfêmia” quer dizer uma afronta ao sagrado. Assim, a verdadeira discussão não é sobre o que as pessoas consideram blasfêmia, mas sobre o que consideram sagrado. A descrença em qualquer divindade é uma blasfêmia perene — ou, visto de outra forma, quem não crê em nenhum deus não pode, por definição, ser um blasfemo.
Muitas vezes o que se faz em nome de uma crença ou de uma divindade é que é blasfêmia: uma ofensa a quem acha que sagrado deve ser a vida humana, o direito de pensar livremente e o direito de descrer. Não se está falando só do islamismo radical. Já houve tempo em que não acreditar no Deus da Igreja Romana era razão suficiente para ser queimado vivo. Levava mais tempo do que um tiro de AK-47.
Leia mais o artigo de Luis Fernando Verissimo
O limite da liberdade de expressão
Qualquer limite à liberdade de expressão é o limite da lei. O que passar disso, tenha certeza, é vigariceQuando alguém começa a colocar aspas antes e depois de liberdade de expressão é porque alguma coisa está errada.
É alguma coisa parecida com a “democracia relativa”, engenhosa criação da mente castrense do general Ernesto Geisel - que equivale mais ou menos a uma quase gravidez, alguma coisa produzida por um descuido, uma coisa que deveria ter sido evitada, mas como não foi, acabou produzindo resultados que desmoronam os nossos edifícios de certezas e atrapalham a pureza do discurso.
Nada mais reacionário do que alguma coisa que pode ser feita, mas só pela metade, por exigência da moral, dos bons costumas e da hipocrisia politicamente correta, a grande praga comportamental desta primeira metade de século.
O caso do massacre do Charlie Hebdo conseguiu produzir uma verdadeira teratologia de opiniões, mais chocante do que o traço irreverente que algumas das piadas pecaminosas dos gênios metralhados pelo fundamentalismo islâmico.
Mas eles abusaram…É sempre assim que começa a relativização dos neo-iluministas que acham as piadas uma grosseria inominável e uma ofensa “às crenças do outro”, mesmo desconsiderando que na cultura do “outro" as mulheres, os homossexuais e os infiéis não têm direito sequer à existência. Decapitar infiéis, por exemplo, deve ser uma característica respeitável de sua cultura.
A suposta “islamofobia” (não importa que o Charlie Hebdo seja também catolicofóbico, militarofóbico, politicofóbico, ladrofóbico, autoritáriofóbico e tudo mais que termina em fóbico) do pasquim humorístico francês é um pecado tão terrível que chega a justificar os 12 assassinatos.
O psicanalista e escritor Contardo Calligaris escreveu em sua coluna semanal na Folha que na verdade o semanário humorístico atacado pelos fundamentalistas é culpado de “cretinofobia”:
“Charlie Hebdo” é uma publicação cretinofóbica, porque acha cretino qualquer um que adira a uma crença sem a capacidade de rir dela e de si mesmo enquanto crente”.Leia mais o artigo de Sandro Vaia
O gargalo permanece o mesmo
Cada vez mais as elites conservadoras acionam a velha cortina-de-fumaça para justificar sua inação e seus privilégios diante das agruras de quantos enfrentam a pobreza. Sustentam estar fazendo o máximo possível ao defender como sua única obrigação promover o que chamam de igualdade de oportunidades para todas as crianças e jovens. Nem isso é verdade, como demonstram as estatísticas do próprio governo, porque salta aos olhos não bastar, para vencer na vida, a frequência a escolas que fornecem merenda e providenciam uniformes de graça. Mesmo a quota para minorias, nas universidades, constitui enganação.
Os poderosos lavam as mãos a partir dessa premissa, visando manter como estão as relações econômicas, sociais e políticas da sociedade desigual. Eximem-se da responsabilidade como se fossem as mesmas as preliminares do sucesso. Esquecem-se, ou não se lembram, de ser ilusória a livre concorrência entre quantidades desiguais. Só como exceção um menino nascido na favela ou na periferia, muitas vezes sem saber quem é o pai, mesmo frequentando a escola, jamais terá as mesmas condições de competir com um pimpolho bem nascido e bem criado.
Não é por aí, assim, que se chegará à igualdade e ao aprimoramento das sociedades e das nações. O papel do Estado não pode resumir-se a prestar educação a todos, apesar de ser imprescindível essa primeira etapa. Torna-se necessário exigir as outras obrigações do poder público, desde o aprimoramento dos direitos sociais do trabalhador, que governos recentes vem suprimindo ao invés de ampliar, até a gradativa redução de privilégios das elites. Parece impossível nivelar num único denominador a capacidade de cada ser humano, mas reduzir as diferenças materiais entre todos constitui meta fundamental.
O preâmbulo se faz a propósito do início do segundo mandato da presidente Dilma. Inexiste um programa capaz de objetivar a igualdade, mesmo como objetivo longínquo. Não será através do Bolsa Família e outros programas assistencialistas que se chegará a lugar algum. Em especial com a supressão de direitos trabalhistas, como acaba de acontecer. De nada adiantarão os tais “ajustes” preparados pela nova equipe econômica, com ênfase para o aumento de impostos. As elites continuarão onde sempre estiveram, ou seja, muito bem, enquanto a ilusão da mesma escola para todos permanecerá favorecendo os bem nascidos, até muito mais do que os bem dotados.
Em suma, falta ao país um governo decidido a reduzir as diferenças sociais, apesar da intensa propaganda em sentido contrário. O gargalo permanece o mesmo.
Carlos Chagas
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