segunda-feira, 9 de abril de 2018

Lula, virar a página

Depois de várias semanas de tensão, discussões pouco edificantes transmitidas ao vivo e declarações impróprias de alguns dos seus integrantes, o Supremo Tribunal Federal (STF) fez o que se esperava: confirmou que ninguém está acima da lei e que o combate à corrupção não admite acordões. A decisão do plenário não poderia ter sido outra. Caso contrário, a corte assinaria um atestado de leniência com o crime e estaria na contramão dos valores éticos de uma sociedade cansada e decepcionada. Geraria instabilidade, acirraria o clima de radicalização, abriria de par em par as portas da impunidade para os criminosos do colarinho branco e pavimentaria uma avenida para os aventureiros que transitam nas sombras da desesperança. Além disso, o STF confrontaria o próprio Judiciário.

Lula foi condenado a nove anos e meio, num primeiro julgamento, pelo juiz Sergio Moro. Foi uma sentença de 218 páginas. Foram ouvidas 91 testemunhas, das quais 73 apresentadas pela defesa. Tudo dentro da lei e das garantias devidas ao réu. A defesa de Lula apelou da sentença para o TRF-4, de Porto Alegre. Ali, foi julgado em 24 de janeiro deste ano por três desembargadores, condenado por 3 a zero, e sua pena foi aumentada para 12 anos. Recorreu, em seguida, para a instância superior, o STJ, em Brasília, onde seu pedido foi julgado por cinco ministros. Outra derrota, agora por 5 a zero. Voltou, enfim, ao mesmo TRF-4. Perdeu mais uma. Três instâncias e nove juízes se manifestaram num mesmo sentido em relação a Lula (escrevo este artigo antes da prisão do ex-presidente decreta pelo juiz Sergio Moro).

Dizer que seria preciso respeitar a “presunção de inocência” até “prova em contrário”, como frisaram alguns ministros, é fazer piada com a inteligência dos brasileiros. Feita a prova, o réu deixa de ser inocente. Passa a ser culpado. No caso de Lula, a prova foi feita quando a segunda instância decidiu que sua condenação estava fundamentada em fatos.

O tribunal que tem como missão uniformizar os entendimentos judiciais não poderia ignorar suas próprias decisões e as das demais instâncias. A corte, felizmente, não permitiu que vingasse um casuísmo: a mudança de jurisprudência em relação à possibilidade de prisão após condenação em segunda instância tendo por base um pedido que não poderia ir além da pessoa do condenado Lula da Silva.

Venceu o bom senso. O momento, no entanto, é preocupante. Políticos, à esquerda e à direita, estão unidos num denominador comum: salvar a própria pele. O infortúnio do cárcere e a perspectiva do ostracismo uniram adversários históricos para combater o inimigo comum: a Operação Lava Jato e o aparato da Justiça. Tentaram ganhar na vigésima quinta hora. Queriam que o STF arrombasse a porteira. Conhecedores da morosidade do Judiciário, que é a causa essencial da perpetuação da injustiça, apostam na loteria viciada dos crimes prescritos.

Precisamos virar a página e olhar estrategicamente para o futuro. Podemos e devemos mudar o quadro. Como? Votando bem, com voto comprometido. Teremos eleições gerais. Executivo e Legislativo serão renovados. Você, leitor e eleitor, não pode encarar a próxima eleição como ordinária administração. Não é. Pode ser decisiva. Transformadora. É uma grande oportunidade. O seu candidato, ao Executivo e ao Legislativo, deve estar claramente comprometido com reformas constitucionais que sejam capazes de devolver o Brasil aos brasileiros. Prisão após condenação em segunda instância é medida indispensável na luta contra a impunidade. Seu candidato deve estar comprometido com projeto de reforma constitucional que faça da medida saneadora princípio intocável. Reforma da Previdência. Reforma tributária. Revisão do tamanho do Estado e do seu papel.

Chegou a hora de a sociedade civil mostrar a sua cara e a sua força. É preciso, finalmente, cobrar a reforma política. Todos sabem disso. Há décadas. O atual modelo de governança, a perversa fórmula da coalizão, é a principal causa da corrupção. O Brasil pode sair deste pântano para um patamar civilizado. Mas, para que isso aconteça, com a urgência que se impõe, é preciso votar bem.

Carlos Alberto Di Franco 

A realidade não sensibiliza

Podemos ler uma notícia sobre um país no qual há 9 milhões de crianças que passam fome. Somos capazes de ler isso e incorporar, e mudar de assunto.
This is very thought provoking 
Mas quando lemos "Os Miseráveis", de Victor Hugo (1802-1885), sentimos uma empatia por esse personagem que rouba um pedaço de pão que, aí sim, nos faz ter a sensibilidade para entender algo do drama que significa 9 milhões de crianças passando fome.
A realidade física das informações não basta para o entendimento completo de algo
Alberto Manguel 

Al Capone, Lula e o preço dos menores pecados

Como Al Capone, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi condenado pelo menor de seus crimes. Alphonse Gabriel Capone, uma das figuras mais sanguinárias e mais célebres da história criminal, foi para a cadeia por sonegação de impostos. Lula foi sentenciado por um caso de corrupção vinculado a um apartamento triplex no Guarujá. Seu segundo processo envolve um sítio em Atibaia. As histórias de ambos, muito diferentes em vários outros aspectos, têm uma curiosa semelhança: a enorme desproporção entre os males causados e os delitos imputados formalmente a seus autores.

Alguns poderão julgar um despropósito a comparação entre o bandido americano e o político brasileiro. Podem ter razão, se estiverem considerando as leis violadas em cada caso. Não há homicídio na história de Lula, nem uso da violência, nem prática rotineira da maior parte dos chamados crimes comuns. Mas as façanhas do líder petista são imensamente maiores que as do chefe mafioso, quando se levam em conta o alcance e os efeitos econômicos e sociais de suas ações. As barbaridades de Al Capone, suficientes para uma porção de filmes sensacionais, sempre tiveram caráter microeconômico, mesmo quando envolveram corrupção de autoridades.

Resultado de imagem para o capo lula charge

Lula assumiu a Presidência em 2003 com um projeto de poder e um plano de governo subordinado a suas enormes ambições políticas. Foi capaz de perceber, ao contrário de muitos outros petistas, a importância política de promover ajustes e de controlar a inflação. Era preciso desarmar a desconfiança do setor privado.

Não havia, de fato, a herança maldita proclamada por petistas. As dificuldades eram explicáveis principalmente pela reação dos mercados a ameaças do PT. Figuras importantes do partido haviam prometido, entre outras bobagens, uma “renegociação” – de fato, um calote – da dívida pública.

Aconselhado por Antônio Palocci, futuro ministro da Fazenda, Lula convidou o presidente do BankBoston, Henrique Meirelles, para dirigir o Banco Central (BC). Seria mais um avalista do governo. Durante o primeiro mandato a promessa de bom comportamento foi em parte cumprida. O BC combateu a inflação com aparente liberdade e a política fiscal foi conduzida com algum cuidado, apesar da expansão da folha de pagamentos. Nos oito anos de Lula, a despesa com pessoal e encargos do Executivo cresceu 135,6%, enquanto a inflação ficou em 56,6%.

Os crimes do mensalão só se tornariam assunto público a partir de 2005, mas sem atrapalhar a reeleição do presidente. Na política econômica nada foi feito para ampliar e consolidar a pauta de reformas nem se implantou uma estratégia efetiva de desenvolvimento.

Completada a primeira etapa, tudo começou a desandar, com o abandono da responsabilidade fiscal, as enormes transferências do Tesouro para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), a política dos campeões nacionais, o aumento do protecionismo e a devastação das estatais. Com incompetência e irresponsabilidade incomuns, a presidente Dilma Rousseff completou o desastre, quase quebrando o Tesouro e levando o País à recessão.

O primeiro mandato de Lula, enfim, foi orientado inteiramente para consolidar, sem resistência nos mercados, o projeto de dominação. O aparelho federal foi submetido às ambições de poder do presidente. As condições para pilhagem das estatais foram um desdobramento dessa política. Petistas e aliados tomaram a administração federal como se fossem forças de ocupação. A devastação da Petrobrás e de outras estatais foi parcialmente descrita nos informes da Operação Lava Jato e de outras investigações.

A conversão da Petrobrás em instrumento da política industrial petista forçou a empresa a comprar insumos e equipamentos nacionais, mesmo quando muito mais caros que os importados. Comprometeu sua rentabilidade, reduziu seu potencial de investimento e, além disso, abriu espaço para troca de favores e corrupção.

A política de investimentos, subordinada às ambições, aos critérios políticos e à fantasia de liderança regional de Lula, jamais concretizada, favoreceu projetos como o da Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco. Deveria ter sido um empreendimento brasileiro e venezuelano. Nenhum centavo da Venezuela foi aplicado nas obras. Além disso, os custos, multiplicados por oito, chegaram à casa de US$ 20 bilhões.

Lula ostensivamente mandou na Petrobrás, indicando diretores, influenciando seus planos, orientando seus investimentos e seus objetivos. Não há como disfarçar sua responsabilidade pelos desmandos na gestão da empresa, assim como é impossível desvincular seu nome da política de compadrio do BNDES. Basta examinar a lista de empresas beneficiadas e os nomes mais vistosos nos processos de corrupção.

Nunca se levaram a sério, nessa fase, os princípios constitucionais definidos para a administração pública no artigo 37: “legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. A exigência de produtividade no serviço público foi sempre desqualificada como preconceito neoliberal.

Na versão mais complacente, os casos de corrupção ocorridos no Brasil durante a fase petista podem ser mais numerosos que os observados em outros países, mas são da mesma natureza. Esse é o grande engano. A corrupção brasileira, nesse período, foi vinculada essencialmente a um estilo de governo e, mais que isso, a uma forma de ocupação do aparelho estatal. Pode-se trocar a palavra ocupação, nesse caso, por apropriação ou mesmo por privatização da máquina.

Esse projeto de poder foi comprometido pelo fracasso da presidente Dilma Rousseff. Nesse caso, ele cometeu um desastroso erro de pessoa, ou, mais propriamente, de poste. Vitorioso o projeto, Lula nunca precisaria de escrituras ou de recibos para realizar sonhos de consumo ou de riqueza. Tudo viria, como veio por um tempo, como produto do poder.

O último grande circo

Com o circo armado em torno da “resistência” à prisão, Luiz Inácio Lula da Silva e o PT até conseguiram cenas impactantes para a campanha eleitoral, mas a um preço alto demais para falar só com crentes confessos. Não arregimentaram um único apoiador a mais, mas animaram fundamentalistas na outra ponta, para delírio de gente como o deputado Jair Bolsonaro.

O condenado Lula, que é réu em outros cinco processos, debochou da Justiça, fez troça dela. Algo inadmissível para qualquer cidadão, quanto mais para quem já foi presidente e desejaria disputar novamente o cargo. Travestiu de coragem seu ato de covardia, escondendo-se atrás da militância para adiar a prisão. E, sem qualquer escrúpulo, mais uma vez usou sua mulher morta, que serviu de mote a uma missa-comício. Um escárnio.

Ainda que aguerrido, o rebanho ficou muito aquém do que os líderes petistas e dos ditos movimentos sociais previam. Nem as mais de 48 horas de transmissão ao vivo e os apelos incessantes nas redes sociais foram capazes de mobilizar multidões.

À exceção do Rio de Janeiro e do Recife, na sexta-feira, e da porta do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, onde Lula se exilou desde a expedição do mandado de prisão, o que se viu no resto do país foram manifestações de pouca monta.

Muitos pneus queimando em rodovias, com fogo e fumaça a esconder os poucos militantes. Atos que só conseguem repúdio da população.

Em Belo Horizonte, no sábado, depois de gente de verde-amarelo lavar o passeio e a fachada, flores e mais flores foram colocadas na porta do prédio da presidente do STF, Cármen Lúcia, vandalizado na noite anterior.

O PT perdeu também com o incentivo à violência contra jornalistas – carros de imprensa depredados, fotógrafos e repórteres agredidos; TV Globo e revista Veja xingadas por Lula, em um discurso surreal. Não pelo conteúdo – a conhecida cantilena de que é um perseguido porque defende os pobres -, mas pelo ultraje à Justiça.

Por 55 minutos, alguém que já deveria estar preso escorraçou em público, com transmissão ao vivo da imprensa que ele repudia, o MPF que o investigou, o juiz que o sentenciou, as cortes superiores que confirmaram a sentença e negaram habeas corpus e liminares.

Solto, Lula cada vez dialoga menos com o país. E, embora tenha tentado, o mandado de prisão não teve o condão de mudar isso. Só os fiéis lhe dão ouvidos. Sua negação à Justiça acirra a belicosidade entre os extremos e escancara o seu já sabido desapreço pelas instituições e pela democracia.

Bate no peito e diz que não é mais um ser humano, e sim uma ideia. Mas há tempos deixou de ser uma boa ideia.

Mary Zaidan

Medley

Mecanização

A tragédia é a cristalização da massa humana, tão perigosa como a estagnação do espírito do homem que se torna acadêmico ou fenece por falta de entusiasmo. Gostava de saber quantas pessoas pensam em macacos durante o correr de um dia? Quantas? O homem-massa, num futuro próximo - em relações antropológicas o próximo leva geralmente centenas de anos - transformar-se-á num novo espetáculo de jardim zoológico. Em vez de jaula e aldeias de símios, ele terá balneários públicos e campos para habilidades desportivas, com ocasionais jogos noturnos. Dará palmas em delírio ouvindo ainda o som distante da sineta tocada pelo elefante num ato máximo de inteligência paquidérmica. Terá circuitos fechados, com pistas perfeitamente cimentadas, para passear o tédio da família aos domingos, circulará repetidamente em metropolitanos convencido de que cada nova paragem é diferente da anterior. 

Bild über We Heart It http://ift.tt/1Gt63QC #art #comic #funny #girlfriends #vintage #boyfriends #vendingmachines
E estou absolutamente crente que do naufrágio calamitoso apenas se hão-de salvar os que pela porta do cavalo fugirem ao triturar das grandes coletividades humanas, ou os que por força invencível e instintiva se libertarem para uma nova categoria de homem, ou, melhor dizendo, para a sua verdadeira categoria de homem, de homem-pensamento, na linha direta de um Platão, de um Homero, de um Aristófanes, de um Plutarco. 

A humanidade dá-nos, assim, um triste espetáculo de andar para trás, melhora em lepra social, coletiviza-se e baixa logo na escala humana, retrocedendo para uma classe entre os antropopitecos e o erectus, a que chamarei Màchomem. 

E todos os dias o mundo assiste ao melancólico desfile de milhares de seres que passam a Màchomens, na satisfação plena da sua jaula colectiva sem grades. E como os macacos, os elefantes, os cães e mais bicharia, os Màchomens passam imediatamente a falar a sua língua universal, sem necessidade de tradução, estendendo atividades físicas e associativas desde a Polinésia ao sul de Itália, trocando saudações, mensagens, hinos, desfiles, comícios, e tantas outras indigestões apaixonadas dos grupos de seres que deixaram de ter fronteiras e vocábulos regionais. O cão que ladra nas margens do Danúbio assemelha-se aos poderosos Serra da Estrela, sem distinção de maior que nos faça ter preferências por qualquer um destes ladrares. O Màchomem da Amadora em muito pouco se virá a distinguir do Màchomem de Detroit, Chicago, Manchester, Dusseldorf.

Ruben A., "O Mundo À Minha Procura I"

Gente fora do mapa

Pregopontocom Tudo: Com 40 milhões de escravos no mundo, OIT pede mais empenho dos países

Guerra pelo futuro

O Supremo Tribunal Federal, por um triz, acaba de tirar o Brasil de uma descida perigosa, talvez fatal, em direção à desordem imediata. Já não existe aqui há muito tempo um regime que preencha boa parte, talvez a maioria, dos requisitos necessários para merecer a classificação de “democracia”. Mas, se for feito um pouco mais de esforço para piorar as coisas, todos podem ter uma certeza: a democracia brasileira, mesmo essa droga de democracia que ainda há por aí, vai para o espaço. O ex-presidente Lula, com o apoio em peso de tudo o que existe de mais potente na corrupção brasileira, quis um “salve” do STF para invalidar todas as decisões da Justiça que o condenaram até agora — quis receber, oficialmente, um certificado de indulto. Quase levou. Naturalmente, vai continuar tentando, incentivado pela presença na Suprema Corte de ministros que militam abertamente em favor da impunidade. Aposta na confusão, no desmanche progressivo do governo que ele próprio legou ao país e nas “pesquisas eleitorais”. É, cada vez mais, um tudo ou nada.

Resultado de imagem para stf e o futuro do brasil charge

Na verdade, o que esteve realmente em jogo no STF foi o desfecho de mais um confronto na guerra aberta que existe hoje para controlar o futuro do Brasil. É algo maior do que Lula, ou mais que uma pura e simples questão de justiça — a punição, como manda a lei, dos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro pelos quais ele foi condenado a doze anos de cadeia nos dois níveis do Judiciário que o julgaram até o momento. A verdadeira disputa, em toda essa história, sempre foi para decidir se continuará a mandar no país, e a mandar na vida dos cidadãos, o sistema que está mandando hoje. Você sabe muito bem que sistema é esse — e sabe que Lula é, no momento, a figura mais importante para mantê-lo de pé. Trata-se da vasta federação de gangues partidárias, empreiteiras de obras públicas, altos burocratas do Estado, empresas que recebem favores do governo e mais toda a multidão de parasitas que, de uma forma ou de outra, vive à custa dos impostos que você paga dia e noite, e vai pagar até morrer. Essa gente está destruindo o estado de direito democrático no Brasil — quer dividir o país em duas categorias de cidadãos, os que são obrigados a cumprir a lei e os que estão autorizados a não respeitar lei alguma. É, no fim das contas, o grande combo de aproveitadores do Tesouro Nacional, de um lado, e a população brasileira, de outro. Eles operam em áreas diferentes, e têm caras diferentes, mas no conjunto são a mesma coisa e produzem os mesmos desastres.

É isso, exatamente, o Brasil de Lula — uma criatura deformada que foi sendo construída em torno e em cima de nós durante os últimos quinze anos. Ela transformou a democracia brasileira numa imitação degenerada do que deve ser um regime democrático decente — recolheu tudo o que havia de mais maligno na vida pública nacional até Lula chegar à Presidência da República, somou a isso os vícios novos trazidos ao governo pelo PT e produziu o país que aparece aí à sua frente. Esse Brasil de Lula, que hoje está em guerra para sobreviver, é muitas coisas ao mesmo tempo. É, em primeiro lugar, o país da impunidade — onde se quer assegurar ao rico e ao poderoso, que dispõem de dinheiro ilimitado para pagar advogados caríssimos, o direito de cometer crimes e não cumprir, simplesmente, as penas a que foram condenados.

O princípio jurídico pelo qual têm lutado com tanta ferocidade ministros do STF, bandidos de bolso cheio e es-critórios cinco-estrelas de advocacia penal é o seguinte: qualquer criminoso bem apoiado por defensores espertos, mesmo um assassino de crianças, só poderá receber punição se for condenado na “quarta instância”. Isso quer dizer, segundo eles, que é preciso condenar o sujeito quatro vezes seguidas, durante anos a fio, para que ele pague pelo crime que cometeu. Uma aberração como essa não existe, pura e simplesmente, em nenhum país civilizado do mundo — ali um condenado como Lula vai para a cadeia, e pronto. É claro que esse “princípio legal” é apenas uma trapaça para não punir nunca o delito — mesmo porque, depois de anos e anos à espera de uma decisão, ele “prescreve”, ou deixa de ser delito. Nossos altos magistrados ainda insultam a população que lhes paga o salário (mais benefícios) dizendo que a liberdade até a “quarta instância” é um “direito de todos os brasileiros”. É uma mentira grosseira. Quem tem dinheiro para sustentar anos de processo na Justiça? A “presunção de inocência” é coisa privativa de milionário. Dos 700 000 brasileiros hoje na cadeia, quase 300 000 são presos “provisórios” — nada de “instâncias”, nem embargos, nem agravos, nem outras tramoias judiciárias para eles. Os ministros pró-­Lula, obviamente, querem que todos se lixem. Seu único interesse, do primeiro ao último minuto, foi salvar a impunidade que abençoa a elite brasileira há 500 anos, e da qual Lula é hoje o senhor de engenho número 1.

O Brasil de Lula é um Brasil sem Lava-Jato — a operação judicial que pela primeira vez em toda a história do país prendeu, processou e condenou a penas de prisão dezenas de marginais de primeiríssima potência. São donos de empreiteiras, arquiduques das diretorias supremas da Petrobras e outras estatais, altos executivos de empresas, políticos ladrões, chefes de partidos e toda a subespécie de delinquentes que vêm da mesma sarjeta. A principal atividade da vida deles é roubar o Estado, ou seja, roubar os impostos que você paga; muitos confessaram seus crimes. Que prova melhor que isso alguém pode esperar? Desde 1500 toda essa manada viveu, prosperou e se multiplicou sem ser incomodada; é óbvio que quer continuar assim para sempre. Lula é o pau que segura esse circo. Mas é claro que não está sozinho: sua impunidade ajudaria a impunidade de uma multidão de fora da lei. Alguém notou que praticamente ninguém, num Congresso Nacional com 513 deputados e 81 senadores, abriu a boca para comentar o julgamento do STF? Alguém notou o silêncio geral dos governadores e prefeitos? Por que seria, não? Porque a grande maioria está no mesmo barco de Lula, torcendo para ele, apavorada com a Lava-Jato e disposta a tudo para continuar não apenas fora da cadeia, mas no desfrute da licença oficial que tem para roubar. E o presidente da República, então? Foi enfiado no cargo diretamente por Lula, que o impôs como vice na chapa de Dilma Rousseff; sua calamidade é a calamidade do PT, que até há pouco gritava “Fora, Temer”. Está sendo acusado de crimes rasteiros, nomeia para o seu ministério políticos que têm certificado público de ladrões do Erário — e, obviamente, gostaria muito que os ministros do STF criassem a doutrina jurídica da punição pós-morte, pela qual o indivíduo só poderia ser punido depois de morrer.

Também esteve em julgamento no STF, lutando para sobreviver, o Brasil da farsa. Nesse país de mentira, Lula é apresentado como tudo aquilo que não é. Os “juristas”, por exemplo, sustentam que o ex-presidente é um cidadão que precisa ser protegido das possíveis arbitrariedades da Justiça, como 200 milhões de outros; mantê-lo fora da cadeia, segundo eles, não é nenhum favor pessoal, Deus nos livre e guarde, mas apenas uma decisão corajosa que garante o direito “de todos”. Os cúmplices, os serviçais e os simples devotos de Lula, por sua vez, afirmam que sua condenação não tem nada a ver com o fato de que, segundo decidiu legalmente a Justiça brasileira, ele é um ladrão, culpado dos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. Lula, de acordo com eles, só está com doze anos de cadeia nas costas porque “é o maior líder de esquerda em todo o mundo”. Sendo assim, “o capitalismo” jamais iria permitir que ele continuasse salvando os pobres do Brasil. E a roubalheira alucinante da Petrobras, mais todo o resto do seu governo? E os seus amigos e sócios no poder que confessaram os próprios crimes de corrupção? E os bilhões em dinheiro roubado que devolveram? Não é por aí, jura o Sistema Lula. O único problema do chefe é ser um homem de esquerda.

Esse Brasil da farsa foi criado por anos seguidos de propaganda em massa, toda ela paga com o seu dinheiro — da mesma forma como é o seu dinheiro, e nenhum outro, que está pagando esses honorários monstruosos aos advogados da turma toda, desde Lula até o ladrãozinho mais meia-boca, desses que levam um Land Rover ou uma cozinha equipada e se dão por satisfeitos. Não tem a ver apenas com o presidente — vai muito além. Trata-se do país do trem-bala que não existe, dos metrôs onde as estações para o aeroporto ou para o estádio, por exemplo, ficam a 1 quilômetro do aeroporto ou do estádio, ou das ferrovias que param no meio do nada — enquanto os trilhos já postos são roubados para ser vendidos a peso. É o país do Maracanã, reconstruído para os Jogos Pan-A­mericanos, depois para a Olimpíada e hoje abandonado — ou do Museu do Ipiranga, o maior de São Paulo, fechado desde 2013 com a promessa de ser reaberto em 2022. Nesse país nenhuma obra pública é feita levando em conta o interesse do público: ou sua função é beneficiar o construtor e os seus cúmplices nos governos, ou então a obra não é construída. O Brasil da mentira, que briga tanto para sobreviver, é o país do “avanço social”, do “resgate dos pobres” e de outras invenções dos governos Lula e Dilma. Até hoje não se sabe de nenhum rico que tenha ficado pobre em qualquer desses dois reinados. Ao contrário, temos 150 000 milionários (em dólares) por aqui, segundo as últimas contas; nenhum outro país da América Latina tem tantos. Quem ganhou mais dinheiro no país das “conquistas sociais”? Marcelo Odebrecht, o empreiteiro-modelo de Lula, ou o miserável do Bolsa Família? Joesley Batista ou o pobre coitado da fila do ônibus? Quem se deu melhor, por causa dos feitos do ex-presidente: os pobres que “começaram a andar de avião” ou a turma que comprou jatinho? O “trabalhador brasileiro” ou Sérgio Cabral, Eduardo Cunha, Geddel Vieira Lima e tantos outros aliados íntimos do Complexo Lula-PT?

A decisão do STF não faz desaparecer esse Brasil do mal — nada, isoladamente, tem a capacidade de fazer tanto. Mas pôs uma barreira, sem dúvida, ao avanço de todos os que querem, através da desmoralização aberta da lei, impedir que este país se torne uma democracia de verdade.

Por isso a balança

Resultado de imagem para justiça para pobres chargeA Justiça costuma atingir rápido com os que não podem pagar bons advogados, em geral pessoas pobres que ficam encarceradas por longos anos, mas atinge muito lentamente os que têm recursos para manter um processo aberto e que impedem que a pena seja cumprida
Raquel Dodge, procuradora-geral da República

O Inferno, segundo Francisco

“As almas não são punidas. Os que se arrependem obtêm a absolvição divina e se juntam aos que O contemplam, mas os impenitentes que não podem ser absolvidos desaparecem. Não há inferno; há o desaparecimento de almas pecadoras.” As frases atribuídas a Francisco no La Repubblica não foram gravadas ou anotadas. O fundador do jornal, Eugenio Scalfari, 94 anos, ateu, reconstruiu-as de memória após encontro privado com o papa. Tudo indica que são fiéis, talvez até o trecho “não há inferno”, diretamente contestado pelo Vaticano. Francisco não falou algo realmente novo, mas inclinou a doutrina da Igreja num rumo adequado aos desafios contemporâneos.

O Catecismo da Igreja Católica, publicado em 1992, assegura que, “imediatamente após a morte, as almas dos mortos em pecado mortal descem ao inferno”. O inferno, esclarece o texto, é “fogo eterno”. A interpretação tradicional da doutrina apresenta dois problemas dilacerantes. De um lado, a queda de todos os pecadores capitais ao inferno implica uma derrota da obra divina – e, portanto, de Deus. De outro, a ideia da punição corporal eterna converte o Deus misericordioso num torturador sádico. Há tempo, a Igreja busca saídas para essas armadilhas.

Adúlteras penduradas pelo cabelo sobre lama fervente, assassinos lançados em covas repletas de répteis venenosos, idólatras arremessados do alto de penhascos, caluniadores mastigando as próprias línguas, infiéis assados no fogo perene – a iconografia cristã do inferno não abre frestas à exegese. Contudo, bem antes de Francisco, surgiu uma reinterpretação do infindável sofrimento físico como metáfora da dor espiritual experimentada pelas almas separadas de Deus. Na sua evolução, o antiliteralismo conduziu à noção, expressa pelo papa, da instantânea aniquilação das almas. O fogo é eterno; a alma pecadora é fugaz: evapora para sempre.
Resultado de imagem para o inferno e o papa

O revisionismo extirpa o inferno do inferno sem solucionar o problema de fundo: a perda definitiva de parte da obra divina. A resposta a isso encontra-se na expansão do conceito de purgatório. A ideia muito antiga de um fogo purificador transitório, explicou o medievalista Jacques Le Goff em O nascimento do purgatório, sedimentou-se como dogma apenas no Concílio de Lyon (1245). Na prática, o resultado da decisão conciliar foi o estímulo às orações pelos mortos e à compra de indulgências, meios de intercessão em favor das almas capturadas na instância intermediária.

O purgatório, um lugar “inventado”, ausente das Escrituras, o “terceiro lugar”, como Lutero o classificou derrisoriamente, desempenhou funções cruciais para a Igreja: afinal, “a vida do crente transforma-se quando ele pensa que nem tudo fica perdido com a morte”, escreveu Le Goff. O purgatório do concílio medieval era uma paragem geográfica concreta, não um mero estado da alma. Mas, para além do figurativismo primitivo medieval, a incorporação ao dogma da possibilidade de penitência e salvação após a morte rompe um dique teológico. Se, afinal, alguns pecadores podem se redimir no outro mundo, por que a mesma via não estaria disponível a todos?

Platão viu no castigo uma benesse dos deuses. Na Alexandria do início da era cristã, Clemente (circa 150-215) e Orígenes (circa 184-253) extraíram disso uma conexão entre punição e educação. O castigo divino serviria para purificar e salvar. “Deus não exerce vingança, pois a vingança é pagar o mal com o mal”, de acordo com o primeiro. Já o segundo deu um passo além, afirmando que todos os seres humanos, mesmo os justos, devem passar pela experiência do fogo, porque inexiste homem absolutamente puro. O pensamento dos dois “fundadores do purgatório” inspirou a escola teológica universalista que, nascida no século 19, contesta a noção de inferno.

Os universalistas, exegetas protestantes, invocam passagens esparsas do Novo Testamento para revisar a doutrina católica, estendendo o privilégio do purgatório aos infiéis. Nas interpretações deles, o inferno é reduzido a um purgatório geral que, no fim, abriria o portal do céu mesmo aos piores e mais descrentes pecadores. Por essa via heterodoxa, toda a obra de Deus se salvaria.

Não é fácil harmonizar as ideias dos universalistas com o conjunto do texto bíblico, nem com o catecismo oficial da Igreja. Francisco pode ter dito que “não há inferno” apenas para negar a ideia petrificada de punição eterna das almas – ou, no limite, e desafiando suas próprias homilias, pode ter oferecido uma chancela informal à exegese universalista. De um jeito ou de outro, o papa reposicionou a Igreja na paisagem de sua própria história e no cenário da concorrência entre religiões.

As gráficas torturas da Santa Inquisição replicam cenas dos suplícios do inferno. O Deus que não tortura serve como condenação da Inquisição medieval, uma chaga aberta na história da Igreja, e das perseguições inquisitoriais do fundamentalismo islâmico atual. As correntes neopentecostais avançam sobre o rebanho católico prometendo a salvação, a felicidade e a prosperidade no mundo terreno. O Deus que não pune serve como réplica à pregação neopentecostal “pare de sofrer”. Francisco, o crente, fala por meio de Scalfari, o descrente.

Paisagem brasileira

Tiradentes-MG 16/02/15  Ruas coloniais calçadas com pedras pés-de-moleque, com o preservado casario colonial. Na foto prédio da cadeia publica (1730) hoje funciona o Museu de  arte Sacra.   Foto Agliberto Lima

As togas, as palavras e os gestos

Quando os ministros do STF adentram ao palco dizem coisas de outros modos e ainda antes de abrir a boca ou de escrever.

Os cabelos, as gravatas, os ternos, os sapatos, os broches, os distintivos, e os colares e os vestidos no caso das ministras, eis alguns signos que falam, aos quais são acrescentados os xampus, os perfumes, as cores artificiais de algumas cabeleiras, o esmalte das unhas, os cuidados com as sobrancelhas, os óculos ou lentes, enfim as idiossincrasias peculiares a cada um dos onze.

Resultado de imagem para ministros do stf charge

Não é novidade que o corpo fala e bem antes das palavras ditas e escritas. Mas como fala o corpo e desde quando?

A saudação com a mão aberta destinou-se originalmente a mostrar ao semelhante a ausência de pedras, de paus ou de outras armas em tal aproximação.

O sorriso, o esgar, o sobrolho, a respiração em ritmo tranquilo e a ausência do vermelho no branco dos olhos completam este quadro tão expressivo.

Quando os ministros começam a falar já disseram muito. E o corpo e seus adereços prosseguirão falando para reforçar ou negar o voto, às vezes antecipado em vazamentos na mídia, em ilações de jornalistas ou mesmo em entrevistas de ministros que falam fora dos autos.

Os ministros não dão socos e nem pedradas ainda, mas alguns deles têm lançando suspeitas e palavras ofensivas uns aos outros, sem contar ameaças (não tão veladas) de macular o notório saber jurídico e a elevada reputação que só pareceram óbvias a quem os indicou para a mais alta corte e àqueles que os sabatinaram.

Toga é do mesmo étimo de teto e de detetive, que tudo cobre no primeiro caso e tudo descobre no segundo.

O tempora! O mores! (Ó tempos! Ó costumes!). Nem se pode mais aplicar outro dito famoso: ridendo castigat mores (rindo, ele repreende os costumes). O momento é de lágrimas, de choro e às vezes de ranger de dentes, mas não de rir.

Deonísio da Silva

A sombra do messianismo

A prisão do ex-presidente Lula marca o fim de uma era para os governantes latino-americanos cuja imagem se apoia na ideia de proteção dos pobres e igualdade social. Embora tenha alcançado alguns resultados consistentes, essa pregação populista deixou de dar frutos e vem retrocedendo diante da inviabilidade de projetos políticos frequentemente corruptos. Os populistas contemporâneos veem hoje esgotadas suas tentativas de se manter no poder a qualquer custo, sob a pena de desmoralização e de destruição do Estado que governam.

Naufragou a ideia de que líderes providenciais e iluminados pela graça divina poderiam salvar o povo, mudar a ordem vigente e combater as injustiças. O exemplo mais notável desse fracasso messiânico é a Venezuela, país que Hugo Chávez e seu sucessor Nicolás Maduro conseguiram levar à bancarrota. Outros lugares, como a Bolívia ou a Nicarágua, também lidam com presidentes salvadores da pátria que deixaram para trás as suas possibilidades de sucesso e insistem em se manter dominantes. No Brasil, “o socialismo do século 21”, como Chávez classificou o sistema que proliferou na América Latina em um passado recente, se transformou em uma cleptocracia em que sonhos de prosperidade se converteram em uma realidade decadente.


“A política obedece a um movimento pendular, o populismo teve um momento importante na região a partir do final dos anos 1990, sustentado em um ideário progressista, mas esse modelo entrou em crise”, afirma o cientista político Rodrigo Gallo, da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). “Um dos problemas é que a insistência de alguns líderes carismáticos em se reeleger acaba sendo nociva para o próprio sistema republicano.” Para se perpetuarem no poder, esses governantes tentam mudar regras eleitorais, asfixiar a oposição e acabam descambando para o autoritarismo. A crença de que estão acima do bem e do mal os leva a recusar a derrota política, ainda que evidente. Na Venezuela, Maduro, hoje sem qualquer apoio de outros países, tenta emplacar eleições ilegítimas e sufocar a assembléia oposicionista, além de reprimir protestos nas ruas e praticamente expulsar a população do país, por falta de trabalho, alimentos e outros insumos básicos. Mesmo na porta da prisão, Lula insiste em querer ser candidato e mantém a crença de que só ele pode levar o Brasil a um futuro grandioso. Apesar de manterem alguma base popular, nomes como Lula e Maduro perderam definitivamente a simpatia da maioria dos eleitores.

O boliviano Evo Morales é um dos casos mais representativos do fim desse novo ciclo populista latino-americano. Por suas origens étnicas, Morales chegou ao poder de uma forma heroica, identificado com a população pobre e disposto a lutar pelos direitos dos grupos indígenas. Seu primeiro governo foi em 2006 e ele já está no quarto mandato. Apesar de ainda repousar sobre os louros do crescimento econômico do país, sofreu uma dura derrota eleitoral em fevereiro do ano passado, em um claro sinal contra sua vontade de se perpetuar no poder. A maioria dos bolivianos, 51,3%, rejeitou em referendo uma reforma constitucional que permitiria ao atual presidente se candidatar a um quarto mandato. Diante do novo quadro, Morales terá que rever sua estratégia para garantir seu futuro político a partir de 2020, quando termina o atual governo. Outro país em que há um arrefecimento do modelo populista de esquerda é o Equador, onde Rafael Correa, um seguidor do bolivarianismo venezuelano que governou o país entre 2007 e 2017, deixou o poder, além de uma enorme dívida pública, mas não se conformou com isso. Virou o principal opositor do presidente Lenin Moreno, que ajudou a eleger. Desde Bruxelas, onde se instalou, Correa passou a atacar Moreno com a acusação de que ele está destruindo o projeto político erguido nos últimos dez anos.

“A grande razão da crise do populismo na América Latina foi a queda do preço das commodities, a partir de 2011”, afirma o cientista político e professor do Insper, Fernando Schuler. “Com a diminuição da riqueza, houve uma deterioração das políticas públicas e um enfraquecimento dos programas sociais.” Quando chega ao fim, o ciclo de poder populista normalmente deixa um déficit fiscal crônico, causa fuga de investimentos e expõe gargalos econômicos que não foram superados, além de deixar as instituições em frangalhos. Caso típico é o da Argentina, onde a vitória do empresário Maurício Macri, em 2015, representou com clareza um esgotamento do modelo populista local, o kirchnerismo, fundado por Néstor Kirchner e levado adiante, depois de sua morte, em 2010, por sua esposa, Cristina. A perda do controle sobre a economia também está na base do impeachment sofrido pela ex-presidente Dilma Rousseff, eleita no vácuo da popularidade de Lula. No segundo mandato de Dilma, o Brasil entrou na mais dura recessão desde o início do século 20. A maior parte do crescimento econômico realizado na década passada foi neutralizada pelos erros posteriores na condução do país. Os programas sociais do governo começaram a perder verbas a partir de 2016. O Programa Minha Casa, Minha Vida perdeu 74% das verbas orçamentárias na comparação com 2015. O Bolsa Família encolheu 5,7% no período.

Enquanto há programas sociais e a máquina do governo funciona a pleno vapor, a vontade populista se impõe, mas quando eles mínguam, a população se torna mais crítica e menos paciente com o personalismo de seus líderes. “A longo prazo é muito difícil a convivência do populismo com a democracia”, reflete Schuler. “O populismo é autodestrutivo e precisa do gesto autoritário”. Apoiados em certa fantasia mística, esses governantes acreditam que representam a vontade geral da nação e que serão capazes de ficar ao lado do povo na sua luta contra as elites exploradoras. Para se garantir, tratam de ocupar o Estado e aparelhar as instituições para que funcionem a seu favor. O ex-guerrilheiro Daniel Ortega, presidente da Nicarágua, é um desses governantes messiânicos que descamba para o autoritarismo. Ortega foi presidente da Nicarágua entre 1985 e 1990 e voltou ao cargo em 2006. Desde então, está à frente do governo – foi reeleito em 2011 e 2016. Para isso, ele praticamente acabou com a oposição. Antes de ganhar a eleição pela última vez, conseguiu expulsar 16 deputados oposicionistas do Congresso, todos do Partido Liberal Independente (PLI), e impôs ao país, na prática, um regime de partido hegemônico, dominado pela Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN). Na ocasião, o escritor e ex-vice-presidente Sergio Ramirez, principal intelectual nicaraguense, disse que há no país “um socialismo em que a pobreza não diminui e o número de milionários só aumenta.”

O populismo do século 21 tem relação direta com outros movimentos políticos que aconteceram no século passado na América Latina, liderados por ditadores como Getúlio Vargas, no Brasil, Juan Domingo Perón, na Argentina, ou mesmo Augusto Pinochet, que governou o Chile entre 1973 e 1990, e associados ao fenômeno regional conhecido com caudilhismo. Vargas e Perón tiveram seu poder robustecidos por um forte apoio sindical e conquistaram a confiança dos trabalhadores. Perón foi eleito pela primeira vez em 1946, depois de se destacar no cargo de Secretário do Trabalho e Segurança Social e adotar medidas populares, como a criação dos tribunais trabalhistas e a ampliação das verbas rescisórias para todos os trabalhadores. Ganhou mais duas eleições posteriormente. Vargas foi ditador de 1937 a 1945 e criou a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Ganhou o título de “pai dos pobres”.

A diferença maior entre as duas gerações de populistas é que antes as sociedades eram mais fechadas, não havia uma cultura democrática consolidada e os governos tinham condições de controlar as informações e se impor mais facilmente de maneira autoritária. Hoje a situação é diferente. Seja como for, esses líderes populistas costumam chegar ao poder de uma forma heróica e terminar seus dias de maneira melancólica.

E da mentira

Somos da paz, não da injustiça nem da violência
Dilma Rousseff

A prisão, o passado. E o futuro?

Guimarães Rosa dizia que à ''muita coisa importante falta nome''. A sentimentos coletivos, sobretudo. A prisão de Luiz Inácio Lula da Silva, o homem e sua história, é um pouco disso: ''fogo que arde sem se ver''. Fogo de paixão de amor; fogo de paixão de ódio. Paixões que queimam sem resultar em energia, nem produzir calor. Paixões de desconcerto.

Para uns, a prisão de Lula é ''ferida que dói e não se sente''; para outros, ''um contentamento descontente''. O certo é que as imagens de logo mais, quando Lula já for prisioneiro não mais do mito que construiu, mas das grades, os sinos das seis da tarde dobrarão, pouco depois, despertando sentimentos diversos aos quais faltará nome.

Terá sido bom? Terá sido mau? Que destino amassamos sob os pés nessa hora incerta?

Tudo dependerá da disputa de narrativas que se formará logo na sequência da prisão. A luta pelo ''enquadramento da foto'', nos jornais, nas TVs, nas redes, na memória de cada vivente, eleitor ou não. A política seguirá agora ainda mais como uma guerra de comunicação.

Naturalmente, haverá os que comemorarão, soltando rojões, como na Copa do Mundo, redenção de um time há tempos humilhado e sem títulos. Felizes, como se essa prisão bastasse para consertar o país. E dar-se-ão por satisfeitos, como piranhas que devoram o boi, desatentas ou sem se importar com a boiada que atravessou o rio às suas costas.

E haverá os que chorarão jurando desforra, como órfãos da Faixa de Gaza. Sem admitir, no entanto, os erros do caminho; as faltas de processo ou de caráter, a conivência cúmplice ou a capitulação ao poder. Sem perceber nem negar a arrogância e o sectarismo pueril que levou a nada e só trouxe até aqui.

Mas, haverá também outros, que não vestem camisas nem de uns, tampouco as faixas palavras-de-ordem de outros. Para quem tudo o que sobra mesmo é esse enorme desconcerto. A lucidez, num momento como este, tudo o que traz é o desconcerto.

E frustação com o que não se cumpriu, com o que poderia ter sido o país e não foi. E, talvez, nunca será. Um desconcerto, vergonha alheia e de ninguém, mais das circunstâncias, talvez, do fundo-de-poço sem luz que parece ser o presente. O desconcerto que, no entanto, obriga a olhar para frente.

O fato é que o país não se conserta sem Lula tanto quanto não se consertaria com ele. Os problemas estruturais são profundos e não se resumem a fulano. É um sistema que rui; crise das instituições e entre as instituições. Um deserto de lideranças, onde não há Legislativo, não há presidente e, possivelmente, nem República haja.

Mesmos juízes e promotores que se arvoram paladinos, prometendo justiça ou greve de fome, são um pouco resultado do vazio e da desolação com a falta de Política. Da Grande Política com ''P'' maiúsculo, que insatisfeitos comentadores de Blogs não conseguem alcançar o que seja. Não é mesmo fácil alcançar seu sentido.
***

Há duas noites, o pânico se alastra pelo sistema: na primeira, o Supremo negou um habeas corpus o qual, talvez, não pudesse mesmo conceder. ''Consequencialistas'' gelaram: na liberdade de Lula, muita gente se abrigaria, escondendo a impunidade. ''Garantistas'' arderam: vão-se lá com os privilégios também os direitos e o que resta de segurança. Cada um com sua razão, talvez estejam todos certos. É fato que não há escolha fácil.

Na segunda noite, já sob o impacto com o rápido gatilho da decretação de prisão, os sons das bruxas soaram às portas: amanhã, logo cedo, o Japonês da Federal pode chegar para qualquer um. Não haverá mais tranquilidade no reino desse magote de nababos da política. Há duas noites, muita gente, preocupada, não dorme. Gilmar Mendes já alertara: serão os Lulas de amanhã, no MDB, no PSDB, em todo lugar,

É exatamente isto o que não se sabe.

Se Lula for o único, independente do gáudio punitivo da moçada dos patos e dos panelaços, o processo estará desmoralizado. Se Lula for o único, se revelará o preconceito ao mesmo tempo em que emergirá desse cárcere seletivo a vítima, o mártir encarnado. Se Lula for o único, o país estará acabado de verdade.

Por isso, talvez, Raquel Dodge tenha se estimulado a pedir ao STF que torne Aécio Neves réu definitivamente e a sério. Por isso, talvez, Luís Roberto Barroso se aferre com vontade aos calcanhares de Michel Temer, nos processos que envolvem a si e a seus amigos do peito. Por isto, talvez, o sentimento de desconcerto tenha que acelerar o botão da eliminação do foro privilegiado.

O que se passa é que os que jogam pedras em Lula terão que olhar para entulho de dentro de casa; os mensalões de Minas, as malas andarilhas pelo Brasil, o rodoanel e os merendeiros protegidos em São Paulo. Os cadáveres no armário, os corruptos favoritos, a cegueira ocasional. Instigar isto tudo e remover a dissimulação será bom? Será ótimo. Até porquê, sem isto, comemorar a prisão de Lula será fogo tão fátuo quanto farisaísmo deslavado. Bumerangue que volta à testa.

Novamente, Guimarães Rosa: o “julgamento é sempre perigoso, porque o que a gente julga é o passado”. Julga o passado engolindo quinhões do futuro, engasgando com a fumaça do presente, digerindo a agonia pão nosso de cada dia que a vida nos dá hoje.

O que Rosa — o Guimarães, não a Weber — talvez tenha pretendido dizer é que julgar o passado é pouco para anunciar o futuro. O meio-julgamento do passado é menos ainda. Que se julgue e puna todo o resto e se institucionalize um novo padrão ou o futuro será apenas a interminável continuidade deste presente.
***

Ninguém saberá dizer se, ao final, a prisão de Lula regenerará o presente ou se calcinará o futuro. Somente a história dirá. E mesmo ela nem sempre é sábia. Às vezes, a única coisa que a história faz é fazer-se acontecer, resultando em nada. Mais uma vez, resultará em nada?

Carlos Melo