segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

A era da mediocridade

Sempre há medíocres. São perenes. O que varia é seu prestígio e sua influência
José Ingenieros




A mediocridade é ardilosa. Não ataca repentinamente. Avança sem pressa, como insidioso câncer. Apodera-se dos partidos, espraia-se pela economia, invade a mídia, explora as redes sociais. Ao nos darmos conta, os espaços públicos e privados já foram ocupados. Sobreviverão ilhas de inteligência e de caráter, habitadas por mulheres e homens capazes, cuja inferioridade numérica lhes dificulta a reação. Derradeiras esperanças são depositadas no aparecimento de alguém disposto a arregimentar o povo para campanha comprometida com a recuperação ética, cultural e econômica da Nação.

José Ingenieros (1877-1925) escreveu: “A psicologia dos homens medíocres caracteriza-se por um traço comum: a incapacidade de conceber uma perfeição, de formar um ideal. São rotineiros, honestos e mansos; pensam com a cabeça dos demais, compartilham a alheia hipocrisia moral e ajustam seu caráter às domesticidades convencionais (...). Não vivem para si mesmos, senão para o fantasma que projetam na opinião dos semelhantes. Carecem de linha; sua personalidade se borra como um traço de carvão sob o esfuminho, até desaparecer”. Registra Ingenieros que, ao se associarem, tornam-se perigosos, pois “a força do número supre a debilidade individual: juntam-se aos milhares para oprimir quantos desdenham encadear sua mente com os grilhões da rotina” (O Homem Medíocre, Ed. Ícone, SP, 2006).

Como definir o medíocre? Eça de Queiroz traçou-lhe o perfil na figura do talentoso Pacheco, José Joaquim Alves Pacheco. Em resposta à imaginária carta enviada pelo sr. E. Mollinet, interessado em saber quem é esse compatriota “cuja morte está sendo tão vasta e amargamente carpida nos jornais de Portugal”, escreveu Eça de Queiroz: “Eu casualmente conheci Pacheco. Tenho presente, como num resumo, a sua figura e a sua vida. Pacheco não deu ao seu país nem uma obra, nem uma fundação, nem um livro, nem uma ideia. Pacheco era entre nós superior e ilustre unicamente porque tinha um imenso talento. Todavia, meu caro Mollinet, este talento, que duas gerações tão soberbamente aclamaram, nunca deu, da sua força, uma manifestação positiva, expressa, visível! O talento imenso de Pacheco ficou sempre calado, recolhido, nas profundezas de Pacheco” (A Correspondência de Fradique Mendes).

O macunaíma medíocre não é reservado ou discreto. Além de inútil, é ambicioso e pedante. Alardeia a solução de problemas objetivos com frases feitas e ideias extravagantes. Analisa o povo como massa anônima e submissa. Conserva-se alheio ao mundo real, que lhe é indiferente e desconhecido. É por sua causa que continuamos subdesenvolvidos, analfabetos, pobres, sem saúde, sem educação, apesar de escorchante carga tributária. “O Brasil só não é subdesenvolvido na pretensão”, escreveu o jornalista Carlito Maia (1924-2002).

Analisemos o currículo dos membros da Assembleia Nacional Constituinte, escolhidos nas urnas após 20 anos de autoritarismo. Quando se esperava que o eleitorado atribuísse o ônus de representá-lo à elite ética, jurídica e intelectual, o que se observou foi o oposto. A preferência recaiu sobre maioria tacanha e despreparada. Depois de três décadas – tempo suficiente para a atrasada China se transformar em potência mundial – os resultados são constrangedores. O que esperar das eleições municipais de outubro? Políticos envelhecidos, ultrapassados, desacreditados espanarão a poeira do esquecimento para ressurgirem crentes na falta de memória, de interesse ou de vergonha do eleitorado. Aspirantes à vereança e às prefeituras disputarão o primeiro mandato investindo na fama conquistada como astros do palco e da televisão.

O progresso econômico deve-se a audazes pioneiros que acreditaram no agronegócio. Na indústria, breves lapsos de crescimento são acompanhados de anos de estagnação. O império da mediocridade pode ser avaliado no aumento da pobreza, nas filas do INSS, no desemprego de 12 milhões, na crescente violência, na desilusão dos jovens que buscam fazer a vida no exterior, na falência (para os pobres) dos sistemas de saúde e educação, no declínio da classe média. Escreveu Ingenieros que sob o governo da mediocridade “a política se degrada, converte-se em profissão”; “políticos sem vergonha existiram em todos os tempos e sob todos os regimes, mas encontram melhor clima nas burguesias sem ideais”.

O presidente Jair Bolsonaro derrotou o Partido dos Trabalhadores com o programa de combate à corrupção. Consumiu o primeiro ano do mandato na busca do equilíbrio fiscal e com a reforma da Previdência. Como se conduzirá em 2020? Governará para todos os brasileiros ou se dedicará à tarefa irrelevante de fundar legenda submissa, organizada à sua imagem e semelhança?

Dez meses nos separam de eleições destinadas à reconstrução da base da pirâmide política. Triunfará o desejo nacional de renovação, ou prevalecerá o domínio da mediocridade? É o desafio que pela enésima vez os eleitores serão chamados a decifrar.

Brasil da goleada diária


Ruído, veneno mortal

O ruído é uma epidemia, embora durante muitos anos tenha havido um boicote das autoridades, caso da própria Organização Mundial da Saúde e dos ministérios da Saúde, que bloquearam os resultados dos estudos feitos nas últimas décadas por entenderem que eram politicamente desconfortáveis. Mas os novos estudos são absolutamente demolidores e é impossível esconder mais. As estimativas feitas, e só com os dados da Europa Ocidental, apontam para que anualmente haja mais de um milhão de anos perdidos (mortes e anos de vida saudável, designados por disability adjusted life years). Mesmo com pressupostos muito conservadores, são 61 mil anos perdidos por doenças cardíacas, 900 mil anos em perda de vida saudável por distúrbios de sono, que não chega a ser profundo e reparador, e 45 mil por distúrbios cognitivos de crianças.

O ruído não é uma causa direta de morte, como aliás a poluição atmosférica não o é. Morre-se e perdem-se anos de vida saudável das complicações de saúde que resultam de uma resposta de stresse aguda se converter em crónica. O problema está no desgaste: quanto menos se conseguir controlar a origem do estímulo e confrontá-lo, maior o risco de danos físicos e psicológicos. No início, as pessoas até podem ficar mais ativas na tentativa de controle, mas se os esforços não funcionarem surge o chamado desamparo aprendido, que leva ao isolamento social. Seguem-se as complicações psico-fisiológicas: primeiro vem o incómodo, depois a desregulação hormonal e a hipertensão até aos problemas de coração.

A princesa Isabel, o imposto quebra-galho e a obscura reforma tributária

A princesa Isabel pode ficar em paz. Pelo menos a Lei Áurea deve ser preservada, se a equipe econômica tiver sucesso em sua campanha contra os direitos trabalhistas. O ministro da Economia, Paulo Guedes, continua a pregar a desoneração da folha de salários como se fosse o principal – quase único – objetivo de uma reforma tributária. Ele voltou a defender, em conversa com senadores, a criação de um imposto para compensar, do ponto de vista fiscal, a prometida redução dos encargos trabalhistas. Pode ser o tal “imposto sobre o pecado”, incidente em cigarros, bebidas alcoólicas e alimentos com açúcar, ou um tributo sobre transações eletrônicas. Noticiada pelo Estado, a conversa mostra mais que insistência – já é uma fixação – em eliminar direitos para baratear a mão de obra. Mostra também uma forma peculiar, e muito estranha, de entender a tributação e a tarefa, proclamada como prioritária, de reformar o sistema de impostos e contribuições. Há pelo menos dois pontos intrigantes e até assustadores.

Em primeiro lugar, dois tributos de tipos muito diferentes são igualados na função de quebra-galhos, isto é, de recobrar a receita perdida com a desoneração da folha.

Em segundo lugar, o tal imposto sobre transações eletrônicas, concebido para tributar grandes empresas de tecnologia, é reduzido à função menor, quase mesquinha, de facilitar a eliminação de encargos sociais. Mas serviria, mesmo, só para isso?

Este segundo ponto é particularmente preocupante. Encontrar meios de tributar a economia digital, um componente de peso enorme e crescente na vida econômica, é hoje uma das principais missões da OCDE, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico. O tema foi discutido em Davos, em janeiro, em reunião do Fórum Econômico Mundial.

O assunto é tão complicado quanto delicado. O governo francês meteu-se em conflito com a Casa Branca ao tributar operações de empresas como Google, Apple, Microsoft, Amazon e Facebook. Um entendimento bilateral foi anunciado pelo ministro da Economia da França, mas falta um esforço muito mais amplo para um acordo geral em relação ao projeto da OCDE.

Um tema dessa dimensão ficaria muito bem na pauta diplomática e, é claro, no projeto de reforma tributária do governo brasileiro. Mesmo sem a questão internacional, o assunto ainda seria excessivamente importante para ser tratado de forma isolada e, pior que isso, como simples quebra-galho fiscal.

Mas terá o governo, de fato, um projeto de reforma tributária? Não há sinal disso. Não há sinal, pelo menos, da existência de algo digno de ser classificado como projeto.

O ministro da Economia nunca foi muito além, nas suas declarações, de referências à criação de algo parecido com o extinto imposto do cheque, a CPMF, da redução do número de tributos e da eliminação dos encargos trabalhistas. A volta do imposto sobre movimentação financeira foi apresentada em várias ocasiões como forma de compensar o fim daqueles encargos. São, portanto, duas fixações, aparentemente muito fortes, mas insuficientes para compor uma reforma tributária.

Tampouco se encontram sinais de um projeto em declarações do presidente da República. Talvez ele esteja ocupado demais com a reeleição para cuidar de assuntos como esse. Além disso, o presidente nunca mostrou inclinação a pensar de forma organizada sobre questões tributárias. Ele se opôs à recriação da CPMF, mas sem um argumento econômico. Poderia usar vários, mas nunca deu sinal de pensar em algo diferente do custo político-eleitoral.

Esse tipo de preocupação ficou mais escancarado em outras ocasiões. Quando se falou pela primeira vez em “imposto sobre o pecado”, ele proibiu a incidência sobre a cerveja. Mas nada iguala a campanha para mudar ou eliminar a cobrança do tributo estadual sobre combustíveis.

A campanha é obviamente populismo tosco, mas esse talvez nem seja o dado mais importante. A proposta do imposto zero, nesse caso, revela também uma ignorância incomum sobre a aplicação, a gestão e a importância do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), o principal tributo dos Estados. Se a mistura de populismo, irresponsabilidade e ignorância incomodar o fã-clube de Bolsonaro, ele terá perdido alguns pontos nesse episódio. Mas incomodará, mesmo?

Não perguntem ao presidente a orientação e o sentido estratégico da reforma tributária, por ele apresentada como prioridade. Ele remeterá a questão ao ministro da Economia. Mas em relação a isso o ministro está inadimplente.

Ele nunca apresentou um quadro geral do novo sistema nem explicou os objetivos principais da reforma. Supõe-se haver algo além da redução do número de tributos e do alívio da folha salarial. A tributação da economia digital deveria ser parte de uma ampla modernização, mas foi apresentada como quebra-galho.

Perguntar sobre outra prioridade oficial, a reforma administrativa, deve ser igualmente frustrante. Uma resposta satisfatória dependeria de noções claras de administração e de funções de governo, itens obviamente escassos no repertório bolsonariano.

Mataram Marielle novamente

Escrevi nesta mesma coluna que a jovem ativista negra Marielle Franco, executada pelas milícias, acabaria sendo para o senador Flavio Bolsonaro, filho do presidente da República, mais perigosa morta do que viva.

De fato, Marielle, assassinada, continuava viva politicamente e sua figura de ativista comprometida com a defesa dos direitos humanos e sua luta contra as milícias, não havia morrido. Era como uma sombra e uma voz acusadora que sua morte não conseguiu dissipar. Marielle, símbolo da defesa da liberdade e de todos os excluídos por serem diferentes, não se apagou e continuou assustando desde o túmulo.

Sabiam muito bem disso aqueles que tiraram sua vida e todos os políticos que ficaram assustados com sua possível ressurreição.

A misteriosa e enigmática morte de um dos supostos envolvidos com a morte de Marielle, o capitão do Bope e miliciano Adriano da Nóbrega, pode ser um perigoso bumerangue que ameaça todos aqueles que a preferiam muda em seu túmulo.

Quiseram assassiná-la de novo porque entenderam que continuava viva e ameaçadora. Terão conseguido desta vez calando a voz de alguém que talvez soubesse mais sobre aquele crime que já havia atravessado as fronteiras do país?

Sobre a morte violenta do miliciano muito ainda será escrito e ele poderia falar hoje com mais perigo do que se estivesse vivo.

Este segundo assassinato de Marielle deve ser trazido à luz pública.

São muitas as perguntas que serão feitas nos próximos dias sobre o misterioso assassinato que aos poucos daqueles que amam a democracia poderá convencer de que era inevitável.

Talvez, em um dia não muito distante, aqueles que tanto desejavam o desaparecimento do líder da organização criminosa investigada pela morte de Marielle se arrependam de não o terem capturado vivo.

Com essa nova morte, as nuvens cinzentas da pior das suspeitas continuarão a perseguir os mandantes daquele crime que se recusa a morrer.

Brasil, as forças que continuam acreditando nos valores da liberdade precisam saber.

Como escrevi sobre Marielle tempos atrás, não é possível matar os mortos. Mas eles podem ressuscitar e exigir contas àqueles que forem culpados por um crime que dói e envergonha a todos nós.
Juan Arias

O Guedes liberal naufragou

Pode ter sido pela turbulência dos ventos ou por uma vontade danada de chegar lá ainda que em condições precárias. Mas é indisfarçável que a bússola do ministro Paulo Guedes – o único dito e havido como porto seguro do Governo Bolsonaro - está descalibrada. Talvez a imantação já estivesse comprometida antes mesmo de ele assumir o barco, quanto mais para pilotá-lo em meio de terraplanistas. Assim, o Guedes liberal naufragou.

Acuado pelas contas que não saem do vermelho, por uma economia que não rompe o nanismo e por um patrão que insiste em jogar contra, Guedes abandonou as promessas arrojadas e só pensa em mais impostos, suplicando pelo uso das velhas boias. Ora sobre transações digitais, um upgrade da CPMF para as movimentações online, ora no que ele chamou de “imposto do pecado”, incidente sobre cigarros, açúcares e bebidas, incluindo a cerveja, já descartada pelo chefe.

Pode-se dizer que nada saiu como planejado. Pouquíssimo deu certo.


A produção industrial refluiu 1,1% em 2019 depois de dois anos no azul; o tímido crescimento do emprego não chegou a representar alívio. É verdade que os juros e a inflação continuaram a trajetória de queda iniciada no governo Michel Temer, e isso é parte do pouco que se fez. Mas esses são indicadores perigosos, não raro associados à estagnação da economia.

Com a determinação do Parlamento e a despeito das críticas de seu chefe, Guedes pode exibir a vitória da nova Previdência, e pronto. Privatização, que seria a menina dos olhos, não andou, e o tal Plano Mais Brasil, que inclui um novo pacto federativo, emergência fiscal e fundos públicos, nem está cogitado para a pauta de 2020. As propostas governamentais para as reformas tributária (para a qual o Congresso já tem duas versões sem participação do Executivo) e administrativa só estão no gogó.

>Gogó que Guedes tem cada vez mais usado de forma errática, como uma cópia mal acabada da agressividade barata do presidente, que colhe sucesso entre fiéis com os seus maus modos. Guedes, não. Fala besteira – e não são poucas – e se vê obrigado a arrepender depois, alegando sempre que suas frases são divulgadas “fora do contexto”.

Foi assim na sexta-feira, ao comparar o funcionário público a um parasita. Também em Davos, ao dizer que “o pior inimigo do meio ambiente é a pobreza; as pessoas destroem o meio ambiente porque precisam comer”. Corroborou para a imagem de um Brasil que trata mal seus recursos naturais, completamente alienado quanto às questões ambientais. Ouviu o que não queria (mas precisava ouvir) do ex-vice-presidente americano Al Gore: “Desmatar a Amazônia é produzir pobreza”.

As derrapadas orais de Guedes não são casos isolados. Antes de tomar posse ele já havia desafiado o Congresso Nacional, ao qual daria “uma prensa” caso não votasse os projetos de interesse do presidente eleito. Na época da discussão da reforma da Previdência ameaçou deixar o governo e o país. E foi mais longe ao concordar com a baixaria de Bolsonaro contra Brigitte Macron, mulher do presidente da França Emmanuel Macron: “O presidente falou a verdade, ela é feia mesmo”. Em novembro, incorporou a ultra direita ao criticar o ex-presidente Lula que havia conclamado o povo a ir às ruas contra Bolsonaro: “Não se assustem se alguém pedir o AI-5”.

Nem parece o mesmo Guedes, que nas épocas áureas do Instituto Millenium, do qual foi um dos fundadores, mostrava-se um crítico feroz do digladio direita-esquerda: “A direita brasileira afundou a redemocratização por estar associada ao autoritarismo político e à insensibilidade social do regime militar. A esquerda afunda agora com a morte da velha política por estar associada à roubalheira, ao colapso do crescimento econômico e à insegurança nas ruas de uma decrépita Nova República”. Esse era o Guedes que Bolsonaro reduziu a um “Posto Ipiranga”, metáfora barata que o ministro permitiu popularizar.

Sobrou quase nada daquele liberal que em 2017 dizia que “o aperfeiçoamento das instituições de uma democracia emergente” era “mais importante do que as obsoletas disputas entre esquerda e direta, conservadores e progressistas, liberais e socialistas”.

Ainda que continue sendo a única aposta de muitos e que não abandone o navio, Guedes naufragou. Sua boia de salvação é a CPMF. E essa o país rejeita.