terça-feira, 16 de fevereiro de 2021
Redes sociais, o monstro digital que é preciso domar
Quem nunca passou pela seguinte situação? Ia só dar uma olhada nas redes sociais, aí, quando por fim tira os olhos, agora avermelhados, do monitor, passou-se de novo uma hora, ou mais.
Plataformas de internet são devoradoras de tempo, e intencionalmente: graças ao nosso tempo e atenção, os conglomerados de Silicon Valley entraram para a liga das companhias mais valiosas do mundo, nossos dados "pescados" em massa por elas não passam de um acessório indispensável.
Na "economia da atenção", a competição é dura. Como dano colateral, restam nossas sociedades cada vez mais divididas: iradas, polarizadas, deprimidas, desinformadas – e à disposição de "flautistas de Hamelin" de todas as tendências ideológicas possíveis.
Isso porque, diante da questão de o que oferecer ao usuário, as inteligências artificiais dos supercomputadores só atentam para uma coisa: o que prende a atenção? O que promove engajamento? O que faz se envolver com a plataforma? A resposta: o que fala mais às emoções. E que sentimentos são mais fáceis de provocar? Medos. E, intimamente relacionada a eles, a raiva.
Quem se pergunta por que de repente velhos conhecidos começam a tagarelar sobre chemtrails, ou a acusar Bill Gates de querer, furtivamente, implantar chips na humanidade através da vacinação, encontra aqui pelo menos parte da resposta.
Quando os algoritmos recomendam novos conteúdos, para eles tanto faz quanta verdade contenham e o que desencadeiem nos usuários. Decisivo é apenas: o usuário permanece no site? Para monetizar nossa atenção, conteúdos cada vez mais extremos tendem a ser mais reforçados, numa espécie de espiral descendente movida a tecnologia. E a "voz da razão", talvez um tanto mais monótona, fica de fora.
Ativistas designaram esse modelo de negócios com a fórmula "hate for profit" – ódio traz lucro. Mesmo que apenas um indivíduo em cada 100 seja receptivo a teorias de conspiração, o Facebook tem mais de 2 bilhões de usuários em todo o mundo, e o Youtube, quase isso.
No entanto, as redes sociais, enquanto distribuidoras de informação centrais, direcionam o modo como vemos o mundo. E enquanto, por um lado, conteúdos não comprovados e extremos são varridos das margens da sociedade para seu interior; por outro, cada vez mais as informações pesquisadas e verificadas das mídias estabelecidas desaparecem por trás dos paywalls de acesso pago.
Melhoras meramente reativas
Para existir, a democracia depende de cidadãos que possuam uma base comum de diálogo. Não é difícil imaginar para onde se encaminha uma sociedade de gente desinformada que não encontra mais uma linguagem comum.
Sob a pressão pública, Facebook, Google e companhia estão agora dando um pouco de jeito nessa situação, ao empregar um punhado de estudantes para, reativamente, apagar as aberrações mais gritantes. Mas isso não basta. Por um lado, pelo fato de os gigantes da mídia social operarem em escala global e em centenas de idiomas – enquanto a verificação dos conteúdos basicamente só ocorre em algumas línguas ocidentais.
Um exemplo, em que até mesmo o Facebook admite parte da culpa, foi a expulsão de Mianmar da minoria muçulmana dos rohingya, em 2017. A rede social se tornara a tal ponto um polo de discurso de ódio e incitação à violência que em 2018 uma investigadora das Nações Unidas a tachou de "monstro".
Apesar disso, na sede da Facebook em Menlo Park, Califórnia, não se sabe hoje sobre os conteúdos em outros idiomas da Ásia e África muitos mais do que se sabia em 2017 sobre o em birmanês. O mesmo vale para o Youtube e demais concorrentes.
Acima de tudo, uma abordagem reativa não bastará enquanto o sucesso da empresa depender de nos manter o maior tempo possível na plataforma apelando aos nossos instintos mais baixos, sem levar em consideração os eventuais danos.
Atualmente os serviços de internet desempenham um papel tão central em nossas sociedades que precisam ser regulamentados, da mesma forma que o abastecimento de água ou eletricidade. Para o bem da saúde pública, faz mais sentido tratar a água antes de ela fluir pelos encanamentos do que instalar filtros em cada residência.
As redes sociais deveriam ser encaradas com pelo menos esse grau de cuidado. A questão não é "censurar": já se ganharia muito se não apenas os conteúdos mais extremos fossem promovidos. Mais ainda, se se oferecesse, em primeira linha, aquilo que contribua para evoluirmos, como indivíduos e como sociedade. Por exemplo, se o critério para concessão de licenças fosse "seres humanos na frente dos lucros".
Nossa atenção é um recurso importante demais para pô-la nas mãos de empresas sem qualquer regulamentação. Muito obrigado pela sua atenção.
Matthias von Hein
Plataformas de internet são devoradoras de tempo, e intencionalmente: graças ao nosso tempo e atenção, os conglomerados de Silicon Valley entraram para a liga das companhias mais valiosas do mundo, nossos dados "pescados" em massa por elas não passam de um acessório indispensável.
Na "economia da atenção", a competição é dura. Como dano colateral, restam nossas sociedades cada vez mais divididas: iradas, polarizadas, deprimidas, desinformadas – e à disposição de "flautistas de Hamelin" de todas as tendências ideológicas possíveis.
Isso porque, diante da questão de o que oferecer ao usuário, as inteligências artificiais dos supercomputadores só atentam para uma coisa: o que prende a atenção? O que promove engajamento? O que faz se envolver com a plataforma? A resposta: o que fala mais às emoções. E que sentimentos são mais fáceis de provocar? Medos. E, intimamente relacionada a eles, a raiva.
Quem se pergunta por que de repente velhos conhecidos começam a tagarelar sobre chemtrails, ou a acusar Bill Gates de querer, furtivamente, implantar chips na humanidade através da vacinação, encontra aqui pelo menos parte da resposta.
Quando os algoritmos recomendam novos conteúdos, para eles tanto faz quanta verdade contenham e o que desencadeiem nos usuários. Decisivo é apenas: o usuário permanece no site? Para monetizar nossa atenção, conteúdos cada vez mais extremos tendem a ser mais reforçados, numa espécie de espiral descendente movida a tecnologia. E a "voz da razão", talvez um tanto mais monótona, fica de fora.
Ativistas designaram esse modelo de negócios com a fórmula "hate for profit" – ódio traz lucro. Mesmo que apenas um indivíduo em cada 100 seja receptivo a teorias de conspiração, o Facebook tem mais de 2 bilhões de usuários em todo o mundo, e o Youtube, quase isso.
No entanto, as redes sociais, enquanto distribuidoras de informação centrais, direcionam o modo como vemos o mundo. E enquanto, por um lado, conteúdos não comprovados e extremos são varridos das margens da sociedade para seu interior; por outro, cada vez mais as informações pesquisadas e verificadas das mídias estabelecidas desaparecem por trás dos paywalls de acesso pago.
Melhoras meramente reativas
Para existir, a democracia depende de cidadãos que possuam uma base comum de diálogo. Não é difícil imaginar para onde se encaminha uma sociedade de gente desinformada que não encontra mais uma linguagem comum.
Sob a pressão pública, Facebook, Google e companhia estão agora dando um pouco de jeito nessa situação, ao empregar um punhado de estudantes para, reativamente, apagar as aberrações mais gritantes. Mas isso não basta. Por um lado, pelo fato de os gigantes da mídia social operarem em escala global e em centenas de idiomas – enquanto a verificação dos conteúdos basicamente só ocorre em algumas línguas ocidentais.
Um exemplo, em que até mesmo o Facebook admite parte da culpa, foi a expulsão de Mianmar da minoria muçulmana dos rohingya, em 2017. A rede social se tornara a tal ponto um polo de discurso de ódio e incitação à violência que em 2018 uma investigadora das Nações Unidas a tachou de "monstro".
Apesar disso, na sede da Facebook em Menlo Park, Califórnia, não se sabe hoje sobre os conteúdos em outros idiomas da Ásia e África muitos mais do que se sabia em 2017 sobre o em birmanês. O mesmo vale para o Youtube e demais concorrentes.
Acima de tudo, uma abordagem reativa não bastará enquanto o sucesso da empresa depender de nos manter o maior tempo possível na plataforma apelando aos nossos instintos mais baixos, sem levar em consideração os eventuais danos.
Atualmente os serviços de internet desempenham um papel tão central em nossas sociedades que precisam ser regulamentados, da mesma forma que o abastecimento de água ou eletricidade. Para o bem da saúde pública, faz mais sentido tratar a água antes de ela fluir pelos encanamentos do que instalar filtros em cada residência.
As redes sociais deveriam ser encaradas com pelo menos esse grau de cuidado. A questão não é "censurar": já se ganharia muito se não apenas os conteúdos mais extremos fossem promovidos. Mais ainda, se se oferecesse, em primeira linha, aquilo que contribua para evoluirmos, como indivíduos e como sociedade. Por exemplo, se o critério para concessão de licenças fosse "seres humanos na frente dos lucros".
Nossa atenção é um recurso importante demais para pô-la nas mãos de empresas sem qualquer regulamentação. Muito obrigado pela sua atenção.
Matthias von Hein
As eleições de 2022 à sombra do Capitólio
Encontra-se a democracia numa sala de emergência.. qAssim como nos hospitais, a racionalidade se preserva se forem seguidas as regras, as evidências e as ações pautadas na devida justificação.
Recentemente, na condenável invasão do Capitólio norte-americano, o que ocorreu foi nitidamente o oposto: 1) a não aceitação do resultado eleitoral em eleição normal e legítima; 2) a incitação à usurpação de outro poder; 3) violência e mortes. Relevante observar o evento reprovável pela perspectiva inversa, daquilo que poderia ter acontecido e não ocorreu: não prosperou a violação da ordem jurídica democrática com um golpe de Estado, e isso por três razões fundamentais: as Forças Armadas e de segurança se mantiveram em suas funções; a reação protetiva da democracia das lideranças políticas e da sociedade foi enfática; e a comunidade internacional repudiou a tentativa de golpe.
O arbítrio não é um léxico fora de moda. O Brasil está sob a ameaça de repetir a nociva experiência e fazê-lo de modo agravado. Cumpre vigiar e proteger a democracia brasileira. Impende defender o sistema eleitoral. As eleições em 2022 serão o mais duro teste para a democracia após 1988.
Sabe-se que toda eleição, por si só, é um desafio, pois se trata da maior mobilização da sociedade em tempos de paz. Organizar o processo eleitoral e garantir eleições livres e competitivas exige um enorme esforço logístico. Mas, para isso, a Justiça Eleitoral está sempre pronta. A preparação de toda eleição tem início assim que a anterior se encerra e as sucessões na presidência do TSE não exercem qualquer impacto negativo na continuidade desses trabalhos, pois, além de contar com um corpo técnico permanente muito qualificado, sempre existiu um diálogo entre os presidentes para que a continuidade administrativa seja assegurada. Em 2022 não será diferente.
Obviamente que toda eleição guarda suas singularidades, na medida em que é muito sensível às disputas políticas. A polarização que guiou as eleições de 2018 ainda se faz presente e onde ela germina dificilmente se colhe entendimento, respeito pelo opositor e tolerância. Nesse ambiente, os principais desafios serão as fake news e o movimento de criação, às vezes dissimulado, às vezes indisfarçável, de um ambiente de inconformismo antecipado com o resultado das urnas, em uma espécie de disputa que só admite um vencedor. Isso é muito grave, pois atinge um dos pilares da disputa sadia pelo poder que é a incerteza dos resultados. Um concordância prática exigida nas democracias é a aceitação do resultado derivado das escolhas populares.
Em 2022 é possível que tenha sido controlada a pandemia, sendo para tanto imprescindível a universalização gratuita da vacina, e as eleições serão realizadas em um clima de normalidade. De qualquer modo, sob a liderança do ministro Luis Roberto Barroso, a Justiça Eleitoral deu provas de rápida adaptação às adversidades e soube, por meio de um diálogo republicano com o Poder Legislativo e por meio de parcerias cidadãs com a sociedade civil, congregar esforços para tornar possível a transição de cargos políticos de forma democrática. Essa experiência já integra nosso acervo de conhecimento e dá provas de que, mesmo em um ambiente de disputa pelo poder, existem consensos mínimos que precisam ser preservados. A sucessão democrática e o respeito à exata extensão dos mandatos foram protegidos.
A exigência da imparcialidade, simbolizada pela veste da toga, também impõe à magistratura eleitoral zelar pelo sistema eleitoral contra as ilicitudes de mentes autoritárias que propagam ruínas e disseminam confusões propositais. Até mesmo nas refinadas esferas do pensamento há quem embanane a herança de Jânio Quadros com o legado de Rui Barbosa, misturando, na curta sombra do anoitecer, gatos e lebres.
Ao sinal do que aconteceu no Capitólio, o Brasil tem uma tarefa a cumprir. Desse encargo o futuro da democracia brasileira nos dirá. E será em breve. Um presidente da República não pode, nem deve, instigar a invasão de outro poder. A República exige responsabilidade de seus agentes. Não pode ser somente palco de coalizões de interesses e de oportunismo, nem de barganhas políticas de ocasião.
É grave o quadro. Atentados contra a liberdade de imprensa, apologia à ditadura, à tortura e à repressão política, retorno à militarização do governo civil, intimidações inadmissíveis a outros poderes, depreciação do valor do voto, xenofobia, misoginia, incentivo às armas e à violência, incitação à animosidade entre as Forças Armadas e instituições civis, o negacionismo, o silêncio cúmplice das elites e a naturalização da corrupção são alguns dos sintomas que compõem uma ameaça corrente.
A emergência democrática necessita do oxigênio que representa o respeito pelo processo e pelo resultado das eleições. Diante da situação urgente e complexa para o Estado de Direito, o paciente corre risco.
O câncer do autoritarismo mata. Sem democracia não há liberdade, nem garantias individuais ou racionalidade coletiva, muito menos segurança jurídica. É da democracia que deve emergir o vírus contra o arbítrio, e não do autoritarismo com verniz de populismo político.
Recentemente, na condenável invasão do Capitólio norte-americano, o que ocorreu foi nitidamente o oposto: 1) a não aceitação do resultado eleitoral em eleição normal e legítima; 2) a incitação à usurpação de outro poder; 3) violência e mortes. Relevante observar o evento reprovável pela perspectiva inversa, daquilo que poderia ter acontecido e não ocorreu: não prosperou a violação da ordem jurídica democrática com um golpe de Estado, e isso por três razões fundamentais: as Forças Armadas e de segurança se mantiveram em suas funções; a reação protetiva da democracia das lideranças políticas e da sociedade foi enfática; e a comunidade internacional repudiou a tentativa de golpe.
O arbítrio não é um léxico fora de moda. O Brasil está sob a ameaça de repetir a nociva experiência e fazê-lo de modo agravado. Cumpre vigiar e proteger a democracia brasileira. Impende defender o sistema eleitoral. As eleições em 2022 serão o mais duro teste para a democracia após 1988.
Sabe-se que toda eleição, por si só, é um desafio, pois se trata da maior mobilização da sociedade em tempos de paz. Organizar o processo eleitoral e garantir eleições livres e competitivas exige um enorme esforço logístico. Mas, para isso, a Justiça Eleitoral está sempre pronta. A preparação de toda eleição tem início assim que a anterior se encerra e as sucessões na presidência do TSE não exercem qualquer impacto negativo na continuidade desses trabalhos, pois, além de contar com um corpo técnico permanente muito qualificado, sempre existiu um diálogo entre os presidentes para que a continuidade administrativa seja assegurada. Em 2022 não será diferente.
Obviamente que toda eleição guarda suas singularidades, na medida em que é muito sensível às disputas políticas. A polarização que guiou as eleições de 2018 ainda se faz presente e onde ela germina dificilmente se colhe entendimento, respeito pelo opositor e tolerância. Nesse ambiente, os principais desafios serão as fake news e o movimento de criação, às vezes dissimulado, às vezes indisfarçável, de um ambiente de inconformismo antecipado com o resultado das urnas, em uma espécie de disputa que só admite um vencedor. Isso é muito grave, pois atinge um dos pilares da disputa sadia pelo poder que é a incerteza dos resultados. Um concordância prática exigida nas democracias é a aceitação do resultado derivado das escolhas populares.
Em 2022 é possível que tenha sido controlada a pandemia, sendo para tanto imprescindível a universalização gratuita da vacina, e as eleições serão realizadas em um clima de normalidade. De qualquer modo, sob a liderança do ministro Luis Roberto Barroso, a Justiça Eleitoral deu provas de rápida adaptação às adversidades e soube, por meio de um diálogo republicano com o Poder Legislativo e por meio de parcerias cidadãs com a sociedade civil, congregar esforços para tornar possível a transição de cargos políticos de forma democrática. Essa experiência já integra nosso acervo de conhecimento e dá provas de que, mesmo em um ambiente de disputa pelo poder, existem consensos mínimos que precisam ser preservados. A sucessão democrática e o respeito à exata extensão dos mandatos foram protegidos.
A exigência da imparcialidade, simbolizada pela veste da toga, também impõe à magistratura eleitoral zelar pelo sistema eleitoral contra as ilicitudes de mentes autoritárias que propagam ruínas e disseminam confusões propositais. Até mesmo nas refinadas esferas do pensamento há quem embanane a herança de Jânio Quadros com o legado de Rui Barbosa, misturando, na curta sombra do anoitecer, gatos e lebres.
Ao sinal do que aconteceu no Capitólio, o Brasil tem uma tarefa a cumprir. Desse encargo o futuro da democracia brasileira nos dirá. E será em breve. Um presidente da República não pode, nem deve, instigar a invasão de outro poder. A República exige responsabilidade de seus agentes. Não pode ser somente palco de coalizões de interesses e de oportunismo, nem de barganhas políticas de ocasião.
É grave o quadro. Atentados contra a liberdade de imprensa, apologia à ditadura, à tortura e à repressão política, retorno à militarização do governo civil, intimidações inadmissíveis a outros poderes, depreciação do valor do voto, xenofobia, misoginia, incentivo às armas e à violência, incitação à animosidade entre as Forças Armadas e instituições civis, o negacionismo, o silêncio cúmplice das elites e a naturalização da corrupção são alguns dos sintomas que compõem uma ameaça corrente.
A emergência democrática necessita do oxigênio que representa o respeito pelo processo e pelo resultado das eleições. Diante da situação urgente e complexa para o Estado de Direito, o paciente corre risco.
O câncer do autoritarismo mata. Sem democracia não há liberdade, nem garantias individuais ou racionalidade coletiva, muito menos segurança jurídica. É da democracia que deve emergir o vírus contra o arbítrio, e não do autoritarismo com verniz de populismo político.
Privada bucal
O certo é tirar de circulação, não vou fazer isso porque eu sou um democrata, Globo, Folha de S. Paulo, Estadão, Antagonista… que são fábricas de fake news. Agora deixa o povo se libertar. Logicamente que se alguém extrapolar em alguma coisa, tem a Justiça para recorrerJair Bolsonaro
Representação truncada
A pandemia invadiu a vida das pessoas de forma nunca vista, introduzindo a doença e o medo da morte no seio de cada família. Diante de tão aterrorizante realidade, a população vê os países mais avançados se vacinando e abrindo caminho para o futuro, enquanto os responsáveis pelo governo federal se comprazem com malabarismos da pior qualidade, num cenário que, não fosse trágico, seria cômico. Os discursos são tão disparatados e anacrônicos que sua mera listagem, além de longa, seria enfadonha.
Em todo caso, da “gripezinha” à luta contra a vacina “chinesa”, passando pelo dito “tratamento precoce”, uma espécie de poção mágica para incautos, o espetáculo oferecido à Nação é de completa irresponsabilidade. Pessoas adoecendo e morrendo, e a única preocupação dos políticos parece ser a eleição presidencial de 2022. E até lá quantos padecerão?
A crise fiscal se avoluma, os gastos não são cortados, os privilegiados de sempre guardam os seus benefícios e os estamentos estatais defendem os “seus” direitos – aliás, só os deles. Enquanto isso, o País definha economicamente, com alto desemprego, milhões na miséria, à beira da sobrevivência, e a expectativa de vida cai.
A democracia vive na medida em que suas instituições sejam fortes. No momento em que os parlamentares e os eleitos em geral, no Executivo e no Legislativo, apresentam, sem nenhum pudor, o jogo do “toma lá dá cá”, sem que dele se siga nenhum projeto ou realização coletiva, numa espécie de tributo que o vício poderia pagar à virtude, ocorre a debacle da representação política. A política esgotar-se-ia nessa negociação, à qual se seguiriam outras, num jogo sem fim.
Em todo caso, da “gripezinha” à luta contra a vacina “chinesa”, passando pelo dito “tratamento precoce”, uma espécie de poção mágica para incautos, o espetáculo oferecido à Nação é de completa irresponsabilidade. Pessoas adoecendo e morrendo, e a única preocupação dos políticos parece ser a eleição presidencial de 2022. E até lá quantos padecerão?
A crise fiscal se avoluma, os gastos não são cortados, os privilegiados de sempre guardam os seus benefícios e os estamentos estatais defendem os “seus” direitos – aliás, só os deles. Enquanto isso, o País definha economicamente, com alto desemprego, milhões na miséria, à beira da sobrevivência, e a expectativa de vida cai.
O atual governo foi eleito com uma agenda liberal, que, dizia-se, seria conduzida com rigor. No primeiro ano de mandato, nada foi feito, salvo uma reforma da Previdência amplamente preparada pelo governo anterior. No segundo ano, a desculpa foi a pandemia, contra a qual nada foi levado a cabo. E neste começo do terceiro, volta o palavrório usual com a reforma da economia e do Estado.
Curiosamente, temos uma situação paradoxal, pois a esquerda retoma a luta contra o “neoliberalismo”, contra a responsabilidade fiscal, sem que liberalismo nem contenção de gastos se tenham realizado. O pior serviço do atual governo consiste em ter matado a ideia liberal sem que ela tenha sequer existido praticamente.
Os partidos e os políticos, por sua vez, em vez de vocalizarem os anseios da sociedade, estão mais preocupados com suas brigas intestinas, como se estas fossem o mais importante problema da República. Talvez o sejam em sua conotação negativa, ao expressarem o desmonte da representação política. A sociedade não se reconhece em seus representantes. É como se os parlamentares e os partidos vivessem num mundo à parte, só deles, povoado por emendas, cargos e interesses particulares dos mais diferentes tipos, dotados de vida própria. A vida dos cidadãos não é levada em consideração, enquanto esses seres inanimados guardam toda a sua vitalidade. Raras, infelizmente, são as exceções.
As disputas pela presidência da Câmara dos Deputados e do Senado, com suas intrigas e traições, exibiram uma cena parlamentar e partidária desconectada da realidade. O governo procurou eleger os seus e desestruturar as oposições, os parlamentares negociavam individualmente ou coletivamente os seus votos, enquanto o País seguia à deriva. A sociedade, alarmada, observou um processo longínquo, distante dos seus afazeres cotidianos de sobrevivência e de luta pela vida. Há um crescente estranhamento entre a sociedade e a sua representação, tendo como resultado o enfraquecimento das instituições representativas.
A democracia vive na medida em que suas instituições sejam fortes. No momento em que os parlamentares e os eleitos em geral, no Executivo e no Legislativo, apresentam, sem nenhum pudor, o jogo do “toma lá dá cá”, sem que dele se siga nenhum projeto ou realização coletiva, numa espécie de tributo que o vício poderia pagar à virtude, ocorre a debacle da representação política. A política esgotar-se-ia nessa negociação, à qual se seguiriam outras, num jogo sem fim.
Os partidos perdem o seu valor, o seu significado. A sociedade não se vê naqueles que deveriam ser os seus representantes. A “velha política”, tão abominada nas últimas eleições presidenciais, bandeira do então candidato Bolsonaro, é agora conduzida por “novos” e “velhos” políticos, incluídos militares que se apresentavam como avessos a tais práticas. A contradição é manifesta.
Se o divórcio entre a representação política e a sociedade se acentua, se a política renuncia a valores morais e a noções de bem coletivo, se instituições e estamentos do Estado não tornam viável o bem público, se os interesses mais comezinhos tomam a cena pública, o caminho está aberto para soluções demagógicas e autoritárias. Se os partidos e as instituições nada valem, líderes procurarão estabelecer contato direto com uma sociedade aflita e desamparada.
Cria-se um caldo de cultura propício à emergência de “salvadores” da pátria, daqueles mesmos que tudo fazem para corroer e desestruturar a democracia. O discurso passa a ser sem mediações entre o líder e a sociedade, vendendo qualquer narrativa, contanto que ela pegue, suscitando a adesão, por mais mentirosa que seja. E aí de nada adianta dizer que foi o resultado das urnas, pois eleições sozinhas, sem instituições democráticas, podem ser também a via para o autoritarismo.
Denis Lerrer Rosenfield
Cultura cidadã e violência urbana
Existem fatores culturais que afetam o processo de desenvolvimento da sociedade. Esses fatores estão relacionados com os princípios e valores defendidos, praticados ou tolerados pelas pessoas.
Cada lugar é fruto de uma experiência histórica que constrói uma espécie de identidade coletiva compartilhada por sua população. São maneiras de ver o próximo e de compreender a vida que decorrem do percurso de formação política, econômica e social, e que constituem um senso comum em relação a determinados assuntos.
Podemos falar de cultura musical, cultura empreendedora, cultura cooperativa, cultura esportiva, cultura belicista, cultura naturalista, ou de muitos outros ramos da cultura que variam para diferentes grupos e lugares.
A cultura cidadã é uma dessas faces de um povo, resultante da sua história, das suas dificuldades, dos seus conflitos, das miscigenações, da geografia, entre outros ingredientes.
Cultura cidadã diz respeito ao conjunto de valores e princípios que fundamentam o pensamento de uma população acerca do exercício de seus direitos e de suas responsabilidades, sejam individuais ou coletivos. Ou seja, define a amplitude de sua compreensão sobre Cidadania.
Normalmente a cultura cidadã permeia diferentes camadas sociais de uma população, definindo suas reações e suas posturas comuns diante de questões como democracia, racismo, opção de gênero, criminalidade, solução de conflitos, meio ambiente, corrupção, solidariedade, respeito às leis, direitos das mulheres, ascensão social etc.
Nesse contexto, certamente encontraremos diferenças visíveis de cultura cidadã ao compararmos habitantes do Rio de Janeiro, Paris, Medellín, Teerã, Montreal e Déli. A maneira e a intensidade com que reagem, praticam, interpretam ou admitem os fenômenos citados acima variam.
É fundamental compreender as origens, a composição e as expressões da cultura cidadã de um lugar para que se possa implementar políticas eficientes de segurança urbana, cujos efeitos se sustentem no longo prazo, principalmente no que se refere à prevenção da violência.
O aprofundamento técnico, na fase de diagnóstico municipal da segurança, sobre essas características culturais permite identificar mecanismos e dinâmicas que favorecem práticas criminais como a violência contra mulheres e pessoas LGBTQI+, racismo, adesão a facções do narcotráfico, crimes do colarinho branco, transgressões de trânsito, extremismo político, solução violenta de conflitos pessoais, homicídios dolosos, vandalismo, desmatamento, entre outras.
Cada lugar é fruto de uma experiência histórica que constrói uma espécie de identidade coletiva compartilhada por sua população. São maneiras de ver o próximo e de compreender a vida que decorrem do percurso de formação política, econômica e social, e que constituem um senso comum em relação a determinados assuntos.
Podemos falar de cultura musical, cultura empreendedora, cultura cooperativa, cultura esportiva, cultura belicista, cultura naturalista, ou de muitos outros ramos da cultura que variam para diferentes grupos e lugares.
A cultura cidadã é uma dessas faces de um povo, resultante da sua história, das suas dificuldades, dos seus conflitos, das miscigenações, da geografia, entre outros ingredientes.
Cultura cidadã diz respeito ao conjunto de valores e princípios que fundamentam o pensamento de uma população acerca do exercício de seus direitos e de suas responsabilidades, sejam individuais ou coletivos. Ou seja, define a amplitude de sua compreensão sobre Cidadania.
Normalmente a cultura cidadã permeia diferentes camadas sociais de uma população, definindo suas reações e suas posturas comuns diante de questões como democracia, racismo, opção de gênero, criminalidade, solução de conflitos, meio ambiente, corrupção, solidariedade, respeito às leis, direitos das mulheres, ascensão social etc.
Nesse contexto, certamente encontraremos diferenças visíveis de cultura cidadã ao compararmos habitantes do Rio de Janeiro, Paris, Medellín, Teerã, Montreal e Déli. A maneira e a intensidade com que reagem, praticam, interpretam ou admitem os fenômenos citados acima variam.
É fundamental compreender as origens, a composição e as expressões da cultura cidadã de um lugar para que se possa implementar políticas eficientes de segurança urbana, cujos efeitos se sustentem no longo prazo, principalmente no que se refere à prevenção da violência.
O aprofundamento técnico, na fase de diagnóstico municipal da segurança, sobre essas características culturais permite identificar mecanismos e dinâmicas que favorecem práticas criminais como a violência contra mulheres e pessoas LGBTQI+, racismo, adesão a facções do narcotráfico, crimes do colarinho branco, transgressões de trânsito, extremismo político, solução violenta de conflitos pessoais, homicídios dolosos, vandalismo, desmatamento, entre outras.
Assim, é possível implementar programas que tratem a cultura cidadã na escola, na família, na empresa, na política, no espaço púbico, na legislação, no sistema penitenciário, nos esportes, nas religiões, desde a primeira infância, elevando o nível de qualidade da convivência humana.
Falar em cultura cidadã como elemento da insegurança urbana não significa desmerecer o trabalho da polícia, assim como não se trata de transferir a culpa do crime para os cidadãos vitimizados. Da mesma forma, não desconsidera a vulnerabilidade econômica e racial potencializada pelos fluxos normais da economia atual.
Contudo, sem reconhecer as características culturais que constituem a forma de pensar a vida predominante em cada lugar, fica muito mais difícil obter êxitos perenes nas políticas de segurança das cidades.
Felipe Sampaio, colaborador do projeto Centro de Soberania Clima e Desenvolvimento Sustentável e ex-secretário executivo de Segurança Urbana do Recife
Falar em cultura cidadã como elemento da insegurança urbana não significa desmerecer o trabalho da polícia, assim como não se trata de transferir a culpa do crime para os cidadãos vitimizados. Da mesma forma, não desconsidera a vulnerabilidade econômica e racial potencializada pelos fluxos normais da economia atual.
Contudo, sem reconhecer as características culturais que constituem a forma de pensar a vida predominante em cada lugar, fica muito mais difícil obter êxitos perenes nas políticas de segurança das cidades.
Felipe Sampaio, colaborador do projeto Centro de Soberania Clima e Desenvolvimento Sustentável e ex-secretário executivo de Segurança Urbana do Recife
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