domingo, 4 de dezembro de 2016

Para que alguém necessita ter a sua disposição milhões de dólares?

Frequentemente me pergunto por que certas pessoas indiscutivelmente inteligentes insistem em manter atitudes políticas indefensáveis, já que, na realidade, não existem mais.

Estou evidentemente me referindo aos que adotaram a ideologia marxista, que, de uma maneira ou de outra, militaram em partidos de esquerda, fosse no Partido Comunista, fosse em organizações surgidas por inspiração da Revolução Cubana.

Não tenho dúvida alguma em afirmar que Karl Marx foi uma personalidade excepcional, tanto por sua inteligência como por sua generosidade, pois dedicou a sua vida à luta por um mundo menos injusto.


Ruben Grillo/
Graças a homens como ele, as relações de capital e trabalho –que, na época, eram simplesmente selvagens– mudaram, alcançado as conquistas que as caracterizam hoje. Marx contribuiu para mudar a sociedade humana, muito embora o seu sonho da sociedade proletária se tenha frustrado.

Nisso ele errou, e nós, que acreditávamos em suas ideias, erramos com ele. Isso não significa, porém, que o sonho da sociedade igualitária tenha que ser sepultado. Continua vivo e o que importa é encontrar outros meios de torná-lo realidade. Já alguns países têm avançado nessa direção.

Mas, para que esse avanço prossiga é necessário reconhecer que o sonho marxista estava errado, ainda que bem-intencionado. Se insistirmos nos dogmas ditos revolucionários –como a luta de classes e a demonização da iniciativa privada –, não sairemos do impasse que inviabilizou o regime comunista onde ele se implantou.

Há que reconhecer que, se sem o trabalhador não se produz riqueza, sem o empreendedor também não. Entregar o destino da economia a meia dúzia de burocratas foi um dos equívocos que levaram ao fracasso os regimes comunistas onde ele se implantou.

Tampouco pode-se negar que o regime capitalista se move essencialmente pela exploração do trabalho e pela acumulação do lucro. A ambição desvairada pelo lucro é o mal do capitalismo que deve ser extirpado. E, creio eu, isso talvez possa ser feito sem violência, uma vez que, de fato, ninguém necessita de acumular fortunas fantásticas para ser feliz.

A sociedade também não necessita ser irretorquivelmente igualitária, mesmo porque as pessoas não são iguais. Um perna de pau não deve ganhar o mesmo que o Neymar, nem o Bill Gates o mesmo que ganha um chofer de táxi.

E, por falar nisso, para que alguém necessita ter a sua disposição milhões e milhões de dólares? Para jantar à tripa fora? Se ele investir esse dinheiro numa empresa, criando bem e dando emprego às pessoas, tudo bem. Mas ninguém necessita ter dez automóveis de luxo, vinte casas de campo nem dezenas de amantes.

Tais fortunas devem ser divididas com outras classes sociais, investidas na formação cultural e profissional das pessoas menos favorecidas, usadas para subvencionar hospitais e instituições para atender pessoas idosas e carentes.

Sucede que só avançaremos nessa direção se pusermos de lado os preconceitos esquerdistas e direitistas, que fomentam o ódio entre as pessoas.

Sabem por que Bill Gates deixou a presidência de sua empresa capitalista para dirigir a entidade beneficente que criou? Porque isso o faz mais feliz, dá sentido à sua vida.
ferreira gullar
Última crônica publicada neste domingo
Ferreira Gullar (1930-2016) 

O Brasil como interrogação

Obra do modernista Cassiano Ricardo, ‘Martim Cererê’, da Editorial Record, é um longo poema indigenista e nacionalista, no qual o índio, o negro e o branco tomam posse e inventam um novo país. Publicado pela primeira vez em 1928, integra a trilogia de textos antropológicos do modernismo, com ‘Manifesto Antropófago’, de Oswald de Andrade, e ‘Macunaíma’, de Mário de Andrade. Retrata as origens do Brasil desde seus primórdios, passando pelo processo de interiorização do território e seu desenvolvimento, com criaturas fantásticas, gigantes, lendas brasileiras. Nossa rica mitologia é utilizada na poesia de Cassiano, um precursor, digamos, de nossa “hibridização” cultural.

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Tudo isso teria se perdido no tempo e ficado restrito aos estudiosos das Letras se a Imperatriz Leopoldinense, no carnaval de 1972, não houvesse revisitado a sua obra com um enredo que incendiou a avenida, graças aos versos curtos e ao refrão magistral de Zé Catimba: “Vem cá Brasil/Deixa eu ler a sua mão menino/Que grande destino/Reservaram pra você/Fala Martim Cererê/Lá lá lá lá lauê/Fala Martim Cererê/Lá lá lá lá lauê/Fala Martim Cererê”.

Era o auge do regime militar e o “milagre econômico” abafava as críticas da oposição. O samba fazia uma síntese do programa de integração nacional e desenvolvimentista da ditadura: “Tudo era dia/O índio deu a terra grande/O negro trouxe a noite na cor/O branco a galhardia/E todos traziam amor/Tinham encontro marcado/Pra fazer uma nação/E o Brasil cresceu tanto/Que virou interjeição”.

Alguns anos depois, o cenário havia mudado, veio a crise do petróleo, o partido do governo começou a sofrer derrotas acachapantes e a economia desandou de vez. O projeto dos militares foi por água abaixo, não tinha sustentabilidade, do ponto de vista da situação internacional, da legitimidade política e pelo fato de que não produzia riquezas suficientes para financiar o setor público e redistribuir renda. A intervenção do Estado na economia se esgotou e entrou em colapso. O oba-oba do “Pra frente Brasil!” se apoiava em um modelo econômico ufanista e perdulário, mais ou menos como aconteceu recentemente, no segundo mandato de Lula e no primeiro de Dilma.

Nos idos de 2010, ano da consagração de Lula e da eleição de Dilma, um poste de saias, um repeteco do samba da Imperatriz, teria tudo a ver: “ Lá lá lá lá lauê/Fala Martim Cererê/Lá lá lá lá lauê/Fala Martim Cererê/Gigante pra frente a evoluir/Laiá laiá/Milhões de gigantes a construir/Laiá laiá laiá/Gigante pra frente e a evoluir/Laiá laiá/Milhões de gigantes a construir.” Mas deu tudo errado novamente.

O modelo nacional desenvolvimentista não deu conta do recado, seja com a direita ou com a esquerda no poder. O Brasil não consegue crescer com sustentabilidade, muito menos oferecer um padrão de classe média à maioria da população. Como chegar nesse patamar se não tem serviços públicos de qualidade na saúde, na educação, na segurança e na mobilidade urbana? Fez do consumo um fetiche, sustentado à custa do endividamento de idosos, servidores públicos e assalariados.

No ufanismo de Zé Catimba, porém, o Brasil era uma interjeição positiva, ou seja, com a expressão de emoções, sensações, estados de espírito, sem necessidades de estruturas linguísticas mais elaboradas, em um patamar que buscava parâmetro nos países mais ricos. O Brasil era apelo e exclamação ao mesmo tempo, o que os torcedores costumam escutar nas transmissões dos jogos da seleção brasileira de futebol, desde a Copa do Mundo de 1970, no México.

Por que falar de samba-enredo ainda longe do carnaval? Ora, porque o Brasil hoje é uma interrogação, que enseja emoções, sensações e os estados de espírito de natureza completamente diferentes. O país está uma droga, para não dizer outra coisa. Parece que os políticos não estão percebendo a mudança de humor da população. A situação desandou e quase nada acontece para reverter o quadro.

O governo Temer está meio perplexo e paralisado diante da crise ética, para não dizer, em pânico; a recessão se aprofundou, as reformas não andam e as previsões de saída da crise, por parte da equipe econômica, são cada vez mais a longo prazo. Finalmente, parece que a Operação Lava-Jato enlouqueceu os políticos e subiu à cabeça dos procuradores da República. As manifestações de hoje são um sinal de que o presidente Temer correr sério risco de desestabilização. É preciso, porém, fazer alguma coisa para chegarmos a 2018 sem uma ruptura institucional, sem colapso total da economia. As alternativas que se apresentam, à direita e/ou à esquerda, tendem a repetir os erros históricos de ambas. Urge um novo projeto de Brasil.

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Lisa Kristine

A crise dos leitores

A inclusão digital cada vez mais ampla e precoce, ao contrário do que se poderia supor, não vem acompanhada pelo aumento da qualificação dos jovens leitores. A geração que tem sob os dedos um volume de informação jamais produzido ao longo de toda a experiência humana é incapaz de distinguir, em meio à torrente de dados que passa por seus smartphones, tablets e computadores todos os dias, o que é uma notícia de fonte confiável, um texto tendencioso ou uma simples mentira. É o que se conclui de uma pesquisa da Universidade de Stanford realizada entre janeiro de 2015 e junho de 2016 com 7.804 estudantes americanos de nível fundamental, médio e superior, de diferentes estratos sociais.

Os alunos foram submetidos a testes que os desafiavam a avaliar o grau de confiabilidade de uma determinada informação que lhes era passada. Evidentemente, para cada nível de escolaridade era esperado um resultado específico. No entanto, o que surpreendeu os pesquisadores foi o fato de todos os grupos – já consideradas as variações do grau de exigência – apresentarem um desempenho classificado por eles como “sombrio”. O resultado da pesquisa adquire especial projeção no momento em que a confiabilidade das informações no ambiente digital pauta o debate nos Estados Unidos após a eleição de Donald Trump.

A cidade deserta onde cada um se isola em seu mundo, acabando com o contato pessoal.:
John Holcroft
Não é possível extrapolar o campo de observação adotado pelos pesquisadores da Universidade de Stanford para pautar uma reflexão acerca do desempenho dos estudantes brasileiros caso fossem submetidos aos mesmos testes. Entretanto, dado o volume de notícias falsas que provocam alto engajamento dos brasileiros em seus perfis nas redes sociais, especialmente durante eleições – a ponto de candidatos serem obrigados a criar sites apenas para a publicação de desmentidos –, é razoável supor que os resultados não seriam muito distantes dos observados pela pesquisa original.

A confiabilidade de uma informação era preponderantemente aferida por sua origem em publicações sólidas e facilmente reconhecidas, produzidas por jornalistas e corroboradas por especialistas nas matérias em foco. No ambiente digital, longe de qualquer regulamentação e, sobretudo, ética profissional, isso não é mais exigido, tanto de quem produz a “notícia” como de quem a consome. O futuro dirá se a profusão de informações e a amplitude de acesso a elas está forjando uma geração mais inteligente e informada ou mais ignorante e estreita, fechada em nichos por onde circulam informações que apenas reforçam convicções. Ter a exata dimensão deste problema hoje é o passo inicial para prevenir um futuro desolador em que milhões de jovens estarão inaptos a empreender o confronto de dados, passo fundamental para o processo de formação de conhecimento. Uma geração que cresce sem referências – até mesmo para contestá-las – é uma geração que respira por aparelhos.

Há alguns anos se fala em “crise do jornalismo”. É uma qualificação imprecisa para o momento por que passa a atividade jornalística. Dada sua natureza, ela é imprescindível para a vida em sociedade e assim sempre será. Não se pode pensar em uma sociedade livre e vibrante sem a produção de informações confiáveis, consistentes e contextualizadas. Os desafios da profissão e dos veículos de comunicação como modelos de negócios são de meio, não de fim. Talvez sejam mais fáceis de serem resolvidos do que a crise por que passam as novas gerações de leitores. Como a informação chegará a eles no futuro, certamente, ainda passará por um processo de transformação. O que se pode afirmar é que o jornalismo ainda será essencial enquanto houver sociedades organizadas.

A internet multiplica o intercâmbio de ideias e amplia o campo de debate na esfera pública, oferecendo amplas possibilidades para a transformação da vida social e política. Mas um ambiente livre de qualquer controle não está imune ao perigo da difusão de toda sorte de informação, incluindo mentiras e difamações. A desinformação é uma grave ameaça à democracia e não se pode descuidar disso.

A lei segundo os bandidos

Há sempre um momento para travar a batalha decisiva. O Brasil está diante dele. Durante o luto nacional, quando ainda se chorava a morte das vítimas do acidente com o avião da Chapecoense, os investigados decidiram criar uma lei para controlar juízes e procuradores. Seria o único país do mundo a tolerar essa afronta. No meio da semana, a equipe da Lava-Jato ameaçou renunciar se a lei da intimidação for sancionada. Mas é hora de resistir. Mais cedo ou mais tarde, viria a mãe de todas as batalhas. As tardes de domingo talvez não sejam mais as mesmas. Será preciso gritar e muito. Mas a resistência aos bondes de investigados, que redigem leis e defendem a corrupção, não deve se limitar apenas à presença nas ruas.

A Justiça brasileira foi atingida em cheio. Ela pode, simplesmente, declarar inconstitucional a lei da intimidação, porque os deputados legislaram em causa própria pois são investigados. Isso também não basta. Enquanto não se julgarem os processos de todos os políticos no Supremo, vão tentar criar leis que lhes dê a blindagem necessária para sobreviver. Também para eles é uma questão de vida e morte.

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Por isso a batalha é interessante. Se Renan Calheiros e sua tese de controlar as investigações prevalecerem, então terão matado não só a Lava-Jato, mas a própria esperança de decência na vida pública. O país entraria numa estranha ditadura. Os bandidos teriam vencido e ditariam as leis. Só nos restaria a resistência. Para alguns de nós não é novidade ser jogado numa luta de vida ou morte.

A novidade é que agora são milhões de pessoas a resistir. Eles não darão trégua nem esquecerão em 2018 quem são os deputados que trabalham contra elas. Se não fosse a profunda crise econômica até que seria divertido derrotá-los, continuadamente, até que fossem varridos do mapa político.

Mas a crise não dá tréguas, o presidente é fraco, todo o governo pode ser levado de cambulhada nessa aventura final de sua base parlamentar junto com a oposição: nesse caso, lutam por uma causa comum. Sempre de madrugada, quando o nível de estupidez é mais alto, eles simplesmente se voltam para o país e dizem: vamos fazer as regras do jogo para nos blindar da Justiça. Enquanto todos choravam a morte dos jogadores, eles resolveram não apenas desrespeitar o luto mas se aproveitar dele para dizer: de agora em diante quem manda somos nós.

Certamente, deve ter havido alguém para lembrar que o momento econômico é difícil, que havia um luto nacional, mas ainda assim partiram para o ataque contra as pessoas que se cansaram de ser roubadas. O que passa na cabeça de Renan Calheiros para ser o general desse exército? Por baixo de todos os cálculos, há um desespero, o medo da hora que chega.

Só o desespero em alguns e a profunda ignorância política podem aproveitar o momento de luto para golpear a Justiça, as pessoas que esperam um país melhor. Que tipo de expectativa têm neste momento? Que tipo de simpatia pode trazer a defesa da corrupção? Sempre achei que havia uma tendência suicida no Congresso. Desta vez, ela foi longe demais: eles querem se suicidar e não nos deixam outro caminho a não ser ajudá-los. É um gesto de compaixão bani-los da vida pública.

A insensatez chegou a um ponto que eles podem se machucar muito e machucar os outros, jogar o país numa situação desesperadora. Será preciso muito esforço para evitar a violência. As ruas vão se tornar um inferno permanente para eles. Será que não passou pela cabeça deles que teriam de prestar contas, circular, falar com os vizinhos, enfim, ter uma vida normal?

Eles escolheram confronto e lançaram um desafio a cada um de nós. De uma certa maneira, depois de tantos roubos, tentam nos roubar uma ideia do Brasil, arrasar com a autoestima nacional. Pelo menos nos deram uma nova oportunidade de estarmos juntos, protestar, mostrar para eles, entre panelaços e manifestações, que o Brasil não se curva.

Assim que o luto se abrandar e todos se derem conta da traição que sofreram na madrugada, estaremos em condições de dar a batalha decisiva. O primeiro front essencial seria este: julgar todos os inquéritos sobre os deputados e senadores que votaram pela lei da intimidação. Legislaram em causa própria.

Assim como Eduardo Cunha, Renan está lutando sua última batalha enlouquecido. Ele precisa perdê-la logo. Mesmo na sua loucura, talvez saibam que foram longe demais. Vão se encontrar no Olimpo das celas de Curitiba. Ali outros delírios de poder e fortuna também acharam seu espaço.

A equipe da Lava-Jato não pode se demitir. A História não é uma repartição, o impacto do trabalho deles é um patrimônio da sociedade. É só ter um pouco de paciência que a própria sociedade vai se mover. Não ficará pedra sobre pedra, embora seja precisa tirá-las com cuidado para evitar grandes desmoronamentos.

Fernando Gabeira

Em meio à tempestade

Deu a louca no mundo e a roda do destino parece estar girando para trás. De um horizonte cosmopolita, que ainda ontem se podia divisar, estamos sendo devolvidos, por poderosos golpes inesperados, como o do Brexit dos ingleses e desse que nos atinge o queixo em cheio com a eleição de Donald Trump, ao espaço anacrônico do Estado-nação hobbesiano. A política ameaça regredir às trevas dos anos 1930, tendendo a convertê-la, como naquela década sombria, a instrumento exasperador da competição econômica por mercados que nos levou à hecatombe da 2.ª Guerra Mundial. Entre tantos sinais nefastos que se prenunciam – plausível uma vitória eleitoral da extrema direita na França –, estão aí as investidas contra a União Europeia e a ONU, visando a rebaixar seu papel civilizatório e recusar suas promessas em favor da concórdia e de paz entre os povos.

Os riscos a que estamos expostos não resultam, obviamente, de causas naturais, mas da imprevidência humana, que, mesmo advertida pelo lento derruimento de nossas instituições da democracia política a que inermes temos assistido, principalmente pelo esvaziamento dos partidos e da vida associativa, não foi capaz de reagir ao que havia de legítimo nas queixas e no sentimento de descrença do homem comum quanto a elas.

Não deixa de ser irônico que, diante de um diagnóstico quase consensual sobre a perda de centralidade do mundo do trabalho na cena contemporânea, tenha vindo de redutos tradicionais da vida operária, na Inglaterra do Brexit e dos EUA de Trump, um bom contingente de votos a favorecer a vitória desses dois movimentos recessivos. Não lhes faltaram motivos, pois ficaram excluídos do rol dos ganhadores com o processo da globalização, quer pelas transformações introduzidas nos processos produtivos que suprimiram postos de trabalho, quer pela transferência de fábricas dos antigos centros industriais para a periferia do nosso sistema-mundo.

Mais que minguar demograficamente, essas classes foram, em boa parte, esvaziadas do seu poder social e influência política, e, pior, suas gerações mais velhas, sem condições de adaptação a essas mudanças, foram relegadas ao limbo com o resultado de diluir sua outrora orgulhosa identidade, deixando-as vulneráveis à síndrome do ressentimento, cujos efeitos negativos ora testemunhamos em tristes episódios. A globalização, mais que um processo – que, aliás, vinha de muito longe –, foi também uma estratégia orientada para fins econômicos, diplomáticos e políticos na boa intenção de incentivar a cooperação internacional e criar as bases para uma sociedade cosmopolita.

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Contudo seu sistema de orientação, tal como se evidencia na história da criação da União Europeia, confiou mais na capacidade da economia de produzir os resultados desejados do que nas dimensões integrativas da política e do social, que não avançaram na mesma medida. Por ironia, o script do século 19, em sua crença nos mecanismos benfazejos de uma economia que se autorregula, como nos textos do filósofo vitoriano Herbert Spencer, como que ressurgiu de modo encapuzado e contraditório em meados do século seguinte, momento em que o welfare State parecia experimentar seu auge. Passou-se ao largo da dura crítica em que Émile Durkheim, ainda em 1893, no clássico Da Divisão do Trabalho Social, sustentou com boas razões que, ao invés de nos trazer a solidariedade social que ela prometia, ainda mais fragmentaria o corpo social.

Não têm sido poucos os que denunciam, J. Habermas à frente – que não ignorou Durkheim em sua obra maior –, o déficit democrático que persiste como marca de origem da União Europeia, arquitetura que lhe veio da obra de elites ilustradas por cima da soberania popular, como um dos responsáveis pela ressurgência de temas e comportamentos que pareciam condenados à obsolescência, como a xenofobia e o nacionalismo, entre outras pragas que agora nos assolam.

Os alertas soam de todos os lados sobre os perigos de um cenário em que a economia se torne meio de projeção de poder dos Estados-nação, sob o registro do protecionismo e da autarquização dos mercados nacionais numa versão desastrada do populismo latino-americano. Contra isso já se contam instituições como a ONU e a própria União Europeia, que se espera atualize seu repertório às novas circunstâncias reinantes, além da consciência de que se torna cada vez mais necessário estimular a emergência de uma sociedade civil internacional. Utopias realistas nesse novo e ameaçador cenário se fazem cada vez mais ao alcance das mãos, a partir de processos já em curso, como os da legislação ambiental e os da mundialização do Direito, que abrem portas para uma sociedade cosmopolita, tão bem estudados pela pesquisadora francesa Meireille Delmas-Marty.

Ações políticas guarnecidas por governos de Estados poderosos podem refrear esse movimento, mas não têm o condão de fazê-los regredir porque há algo de irresistível neles. Aqui, no nosso canto latino-americano, não devemos apequenar-nos em meros espectadores do que se passa no mundo. Participar ativamente importa para nós consolidar e aprofundar as instituições da nossa democracia política, procurar as brechas no novo cenário internacional que se avizinha, tal como procedemos nos anos críticos de 1930, a fim de encontrarmos oportunidades para alavancar a economia e nos movermos no sentido de pacificar politicamente o País.

Se esses objetivos, antes da recente sucessão presidencial nos EUA, não contavam com soluções fáceis, eles parecem tornar-se ainda mais espinhosos depois dela. Com tirocínio político, que não nos faltou em outros momentos agudos da nossa História, podemos chegar a um bom porto. Em meio aos muitos perigos que nos rondam, inútil ficar com o olhar perdido em 2018. A hora da grande política é agora.

Cálculos renais

Faço aqui uma afirmação polêmica, mas totalmente baseada em cálculos matemáticos.

A mágica chama-se “estratificação da amostragem”. Que diabo é isso? É um diabo que permite responder a seguinte pergunta: quantas pessoas você precisa entrevistar numa pesquisa para identificar uma tendência? Metade da população? Um quarto? Pois cálculos estatísticos precisos mostram que, se a amostra for devidamente estratificada, ou seja, se ela representar fielmente o universo pesquisado, ela pode ser infinitamente menor. Isto mostra por que uma pesquisa com duas mil pessoas representa, com grande precisão, uma população de 200 milhões de habitantes, com margem de erro mínima.

O problema é justamente a contaminação da amostragem, o que vem ocorrendo em todas as últimas pesquisas eleitorais superfaturadas que tivemos por aqui. Mas isto gera uma constatação interessante: nosso Congresso, como tudo que o Brasil vem fazendo ultimamente, peca pelo excesso: 600 políticos tiram a individualidade dos procedimentos, em favor de uma coletividade estúpida. Fica difícil descobrir quem trama com quem, numa votação.

Um terço dessa amostra me parece mais do que suficiente para representar o país dignamente. Algo assim como um político para cada milhão de habitantes, o que faria pouco mais de duzentos políticos tramitando na Câmara. Mais do que suficiente e a metade do que existe hoje em nosso lombo. E com uma cláusula de barreira de origem: só chega ao Congresso quem representa um milhão de pessoas. Simples assim. Adeus, corporativismos.

Eu iria ainda mais longe: sufragaria essa representatividade por regiões populacionais e não por Estados. São Paulo teria direito a mais de 40 representantes, enquanto o Espírito Santo, por exemplo, nos contemplaria com 3 ou 4. Ficou furioso? Mas essa é a representatividade matemática do nosso país, meus caros. Durma-se com ela e ponto. Já o caso do “Senador do Desempate” é outro absurdo típico da malemolência brasileira.

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Eu explico. Digamos que o Brasil pudesse ser simplificado – para efeito de cálculo – como nos Estados Unidos. Cem milhões de brasileiros seriam “democratas”, cem milhões “republicanos”, os primeiros concentrados nas áreas urbanas e os segundos nas zonas rurais. É razoável supor que dois senadores, um de cada legenda, representariam os interesses de cada uma das unidades federativas. Daria empate. Pois dane-se o empate. Que a coisa se resolva no diálogo, afinal é pra isso que a política tem de existir.

Se, no entanto, tivermos três senadores por unidade, digamos que um Estado tenha 51% de eleitores de uma legenda e 49% de eleitores de outra: Isto elegeria basicamente dois senadores de uma contra apenas um de outra, perfazendo uma representatividade avariada, com 66% para uma agremiação e 33% para outra, o que é fundamentalmente falso. Isto prova que 54 senadores é mais que suficiente para a política fluir, de forma a suscitar o debate entre as legendas.

E aí? Quer um Congresso com a metade dos vigaristas que hoje se encontram por lá? Comece a exigir hoje mesmo que eles defendam um automutilamento, antes que sejam mutilados de verdade por um exército de panelas. Chega de vigarices, meus caros. A “coletividade” que vá para o inferno. Só serve para “esconder malfeitos”. De políticos malfeitos estamos até a tampa.

O Mágico de Oz

O clássico "The Wizard of Oz" (1939) com Judy Garland  

O excesso de riqueza

O fenômeno que desemprega e joga na miséria milhões de brasileiros decorre de uma crise moral assombrosa que afetou a capacidade de discernimento das elites dominantes. O Brasil está em convulsão.

Neste domingo, provavelmente muita gente ocupará as ruas para protestar contra as atitudes tomadas por Câmara e Senado. Alguns parlamentares já são recebidos com manifestações violentas em aeroportos e outros locais públicos. A instituição aniquilou sua respeitabilidade a ponto de que qualquer atitude leva a pior e mais esquálida das interpretações.

Palpita um sentimento de tomada da Bastilha nos ânimos da população, provocado pelas tentativas de atender os interesses dos próprios congressistas. O afastamento de Eduardo Cunha não modificou o “modus operandi”, as revelações dos bastidores da corrupção devastaram a respeitabilidade da classe política, que tem no Congresso sua vitrine.

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O Poder Legislativo, em geral, passou a ser visto como um Poder que trocou o dever de fiscalização do Executivo pela submissão e exploração. O jornal da Globo de São Paulo mostrou os devaneios da Assembleia paulista com copeiros, manobristas e ascensoristas gozando de salários de R$ 13 mil.

Essa amostragem certifica que, faça sol ou chuva, o PIB avance ou retroceda, a farra não para nunca. Assim, as reservas de tolerância estão no fim. E o que as extingue são as últimas ações “corporativistas” tomadas pelo Congresso legislando despudoradamente em causa própria.

A palavra do Criador adverte que “ganharás o pão com o suor de teu rosto”, mas no meio político se consomem iguarias até com o sangue do povo vergastado e sofrendo com 12 milhões de desempregados. As medidas do Congresso são de aumentos de alíquotas, de sacrifícios da população e de aumento de mordomias incompatíveis com os serviços públicos sucateados e inoperantes.

Uma instituição sintonizada com o sofrimento da população, diante da crise que assola o país, depois de três anos de quedas terríveis de produção, estaria empenhada na procura de fórmulas para reerguer o Brasil. Nada disso: o Legislativo vota apenas, aos trancos, medidas que facilitem a vida dos congressistas.

O recado foi dado das ruas em 2013, num país que ainda não tinha mostrado ser o campeão da corrupção.

Marcado pelo distanciamento abissal da realidade, o Congresso reagiu com medidas corporativistas e absurdas, de costas para a tragédia nacional.

Num país que é recordista mundial de recessão, não se encontra entre as preocupações dos parlamentares uma proposta sequer para estancar o processo recessivo.

Um novo ano vem aí com perspectivas assombrosas para a população, mas ótimas para os parlamentares, sempre a salvo de renúncias.

O lado que carrega o Brasil ficou submisso a quem não trabalha, não deixa trabalhar e explora canhestramente a nação.

Gandhi fez notar que o sistema pacífico de governo é evidentemente impossível enquanto persistir o profundo abismo entre palácios opulentos e miseráveis tugúrios. Disse que “é inevitável, mais cedo ou mais tarde, uma revolução sangrenta, a não ser que uma renúncia voluntária às riquezas e ao poder que as riquezas comportam” surja para evitar o pior. O Congresso não se autolimita nem sonha com isso, não entendeu que, como instituição, precisa renunciar a privilégios exorbitantes.

Os projetos que poderiam acelerar a economia nacional estão fora da compreensão e dos interesses corporativos, o que se discute são propostas do Fundo de Financiamento da Democracia, um assalto legalizado de R$ 12 bilhões por legislatura, colocado nos ombros dos contribuintes.

A leiteira da paciência nacional entornou com a proposta de anticorrupção que transformou-se na limitação de poder do Judiciário. Não é que todas as propostas dos congressistas fossem totalmente erradas, mas, partindo de uma instituição desmoralizada, pareceu um insulto ao planeta.

Parece que o Congresso não acredita que renunciar espontaneamente aos excessos de riqueza e de poder seja a saída. Isso hoje é um dos maiores problemas.

Onde estão os pobres

Muitos dos ricos mais ricos estão ligados ao PT, como mostraram as apurações do mensalão e do escândalo da Petrobras.
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Pawel Kuczynski
 (...) Os pobres não estão em lugar nenhum, confinados nos currais de manipulação de sua vontade política 
José de Souza Martins

Bipolaridade demais, senso de menos

Política não é cartesiana. Nela, dois mais dois por vezes não somam quatro, e o antagonismo simplista é quase sempre um equívoco. Dizer isso em um planeta que tem preferido a grita (o nós x eles) à análise de fatos e à maturação de ideias beira o extemporâneo. Mas trata-se de prudência obrigatória, quanto mais diante de temas tão palpitantes quanto medidas para coibir a corrupção e o abuso de poder.

Em um país onde a carteirada é quase uma instituição e o “sabe com quem está falando” ainda é prática corrente, discutir abuso de autoridade seria benéfico. A rigor, muito mais útil para o cidadão comum do que para os poderosos. Especialmente em um ambiente em que os fortes são muitíssimo fortes - protegidos por foro privilegiado, que engloba políticos e altos servidores do Executivo, Legislativo e Judiciário, e tribunais especiais, caso de militares e policiais --, e os fracos, fraquíssimos, até por não ter recursos para pagar advogados.

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Mas longe de querer “coibir e punir condutas que escapem ao Estado democrático de direito, ao pluralismo e à dignidade da pessoa”, como o presidente do Senado, Renan Calheiros, expressa na justificativa de seu projeto de lei contra abuso de autoridade, os tais poderosos só passaram a se preocupar com o dito abuso depois de se tornarem alvo de escutas, prisões temporárias e preventivas, condenações. Em suma, até o Mensalão cutucá-los e a operação Lava-Jato seguir o rastilho de pólvora espalhado por delatores, tudo prestes a explodir.

Na semana passada Renan colheu duas derrotas. Perdeu por 44 a 14 a votação que pretendia conferir urgência ao projeto contra a corrupção aprovado pela Câmara dos Deputados, no qual se anexaram punições a magistrados e procuradores. E virou réu no Supremo, por crime de peculato, por 8 votos a 3. Na próxima terça-feira pretende votar o seu projeto sobre abuso - um texto com 45 artigos, entre eles alguns ainda mais draconianos do que o aprovado na Câmara.

Rechaçado pelo Ministério Público Federal (MPF), autor das 10 medidas contra a corrupção encaminhadas ao Parlamento como projeto popular com o aval de mais de dois milhões de signatários, o projeto que saiu da Câmara é um Frankenstein. Aprovado na fatídica madrugada em que os brasileiros choravam pelos chapecoenses mortos em um acidente aéreo bárbaro, o texto cravou de morte o coração da proposta e acrescentou punições a juízes e procuradores, algo completamente fora do corpo e do script.

O país reagiu diante do monstro construído: bradou nas redes sociais, perturbou o WhatsApp dos deputados, convocou um panelaço para o horário nobre e gente para as ruas neste domingo.

Renan não se fez de rogado. Obcecado para punir quem pode por direito puni-lo, tentou atropelar o processo legislativo. Perdeu. Mas imagina que pode dar o troco. Não nas medidas contra a corrupção, que tanto ele quanto a Câmara preferem ver adiadas para as calendas agora que já não podem mais incluir nelas a anistia ao caixa 2, mas na votação de seu projeto. E com especial apreço pelo artigo 30, que pune com pena de reclusão de um a cinco anos quem der “início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa, sem justa causa fundamentada”, sem que se diga o que vem a ser a tal “causa fundamentada”.

A urgência de muitos dos políticos – um terço dos 81 senadores e 148 dos 513 deputados são alvo de algum tipo de inquérito ou ação penal – faz com que o país não consiga ter uma lei contra o abuso de autoridade que realmente sirva à cidadania. E abusos não faltam. Não raro sem punição. Quase 50 juízes condenados por corrupção tiveram penas pífias – perda do cargo e afastamento com direito a aposentadoria integral – e poucos promotores acabaram atrás das grades depois de crimes severos, incluindo homicídio. Políticos com mandato na cadeia também se contam nos dedos.

Juízes e procuradores não são infalíveis – ninguém é. Erram e até abusam. Mas, como disse o juiz Sérgio Moro no plenário do Senado, “não podem ser intimidados por interpretações ou juízo de valor a respeito das provas proferidas nos processos sob sua responsabilidade”. Ao mesmo tempo, não há lógica em se imaginar provas ilícitas válidas em um processo ou o horror de pessoas delatando outras para auferir vantagens financeiras – o “reportante do bem” -- como pretendem os autores das 10 medidas contra a corrupção.

Por interesses próprios e inconfessáveis, por ignorância, oportunismo ou má-fé, esse debate tão necessário ao país se faz em favor de quem quer se livrar da Justiça. E se deixa aprisionar na paixão maniqueísta entre quem é contra e a favor das 10 medidas do MPF, contra ou a favor de se coibir abusos. Como na síndrome, a bipolaridade refuga o bom senso.

Centrais sindicais tocam o terror com seu dinheiro sem prestar contas

Organizadoras do “protesto pacífico” em Brasília, para o qual atraíram bandidos armados de porretes, barras de ferro, rojões e até coquetel molotov, entidades como CUT recebem por ano mais de R$ 3,2 bilhões do governo federal, aponta o Portal da Transparência. Em 2014, só as centrais levaram mais de R$ 180 milhões, a título de “imposto sindical”. Em 2016, o contribuinte feito de otário vai desembolsar R$ 3,5 bilhões.

As centrais sindicais milionárias, que só este ano embolsarão mais de R$ 300 milhões, nem sequer prestam contas aos órgãos de controle.


As centrais sindicais não recebiam um centavo sequer antes de 2008. Mas Lula inventou lei que lhes reserva parte do “imposto sindical”.

Na lei que tungou parte do imposto sindical para as centrais, Lula vetou o artigo que previa prestação de contas da montanha de dinheiro.

No Brasil existem 15.017 sindicatos, todos sem problemas financeiros. Os três maiores países da Europa, somados, têm pouco mais de 200.

Paisagem brasileira

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Paisagem rural, Virgílio della Monica (1889-1957)

Em Cuba, com ou sem volta?

Agora que 70 executivos da Odebrecht assinaram os pedidos de delação premiada e começarão a denunciar perto de 200 políticos envolvidos com a roubalheira, a moda é especular quais os “peixes grandes” que cairão na rede. A grande indagação é se o Lula será ou não premiado. Os vazamentos já estão no forno, mas resposta ainda não há. Como o ex-presidente viajou ontem para Cuba, a fim de participar dos funerais de Fidel Castro, a bolsa de apostas está em aberto. No PT, há quem se organize para tratar da defesa, como também existem os companheiros empenhados em deitar gasolina no fogo.

Para o governo Temer, seria o que de pior poderia acontecer. O Lula já declarou que se aparecer uma mínima insinuação de que participou da lambança, irá a pé para a primeira delegacia da Polícia Federal que encontrar, entregando-se à Justiça.

Divide-se o país. Metade, ávida de receber uma carta de alforria para o primeiro companheiro, o resto torcendo para ele ser definitivamente afastado da corrida sucessória.
Como vazamentos são inevitáveis, é possível que antes de retornar de Cuba o ex-torneiro-mecânico já tenha definida sua sorte. Há quem o aconselhe, até, de que se for incluído na lista dos acusados, poderá pedir asilo a Raul Castro. Aguardaria a decisão da justiça instalado numa das casas de visita nos arredores de Havana.

A História tem dessas reviravoltas. Registra-se uma situação daquelas consideradas inimagináveis há um ano atrás. Haverá que aguardar, especulando-se apenas a quantidade de malas que o primeiro-companheiro levou para Cuba.

A festa dos burros

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No tempo em que os animais falavam, os burros deram uma festa.

Os burros, como sabe quem lida com eles, não são nada burros, tanto que às vezes parece que eles é que lidam com a gente. E essa inteligência dos burros vem desde aquele tempo.

Tão inteligentes eram, que resolveram “dar” a festa... pedindo aos outros.

Pediram aos leões que levassem carne:

– Afinal, vocês são tão fortes e gostam tanto de caçar...

Aos macacos pediram que levassem frutas:

– Vocês vivem nas árvores, e são tão ágeis!

Pediram às aves que levassem sementes:

– Só vocês alcançam as castanhas e as nozes e amêndoas, e conseguem descascar com esse bicos tão hábeis!

Deixaram o som a cargo das toupeiras, dizendo que só elas batiam tão bem os rabos no chão:

– Ninguém faz tum-tum como vocês!

As toupeiras, porém, não gostavam de trabalhar, e contrataram um bando de araras e outro bando de maritacas, além de umas arapongas, para ficarem cantando durante a festa.

Assim não se ouvia nada, e todos tinham de gritar, urrar e bramir para se entender.

Acabaram ficando todos roucos, irritados, ainda mais porque a comida demorava.

As raposas, quatis e gambás, sem ter o que trazer para a festa, concordaram alegremente em servir os convidados, mas serviam primeiro as carnes mais duras e as frutas amassadas, para sobrar para eles o melhor. Mas tiveram de comer escondido e depressa, e depois passaram mal.

Mas há quem diga que isso foi porque as carnes, trazidas pelos leões, estavam babadas e sujas de terra, pois leões não são delicados para comer como as aves.

As aves, entretanto, logo cansaram de quebrar tantas castanhas e nozes e amêndoas para tantos bichos, e passaram a entregar as sementes com casca e tudo, de modo que só mesmo elas conseguiam comer. Os bichos, enraivecidos com isso, enxotaram-nas (alguns dizem que as enxotaram, outros dizem que enxotaram elas, o certo é que foram lá para os altos galhos e, de birra, ficaram de-fe-can-do sobre a festa dos burros).

Os macacos aproveitaram a confusão para também subir nas árvores, levando as frutas, comendo e jogando para baixo as cascas.

Aquilo irritou tantos os elefantes que debandaram bramindo e derrubando árvores. As girafas também se retiraram, embora elegantemente. Mas os rinocerontes se foram pisoteando quem achassem pela frente.

No fim, todos acabaram indo embora com raiva, e prometeram nunca mais ir a uma festa dos burros.

Desde então, coisa mal feita, ou feita com aquela economia que é a base da porcaria, ou som alto em festa, ou serviço ruim, tudo isso passou a ser chamado de burrice.

Mas os burros, os burros mesmo, inteligentemente nunca mais fizeram festa, desde então esperando ser convidados para alguma festa melhor; mas os animais, sabe-se lá por que, deixaram de falar e ficou por isso mesmo.

A pane seca

Quando leremos desculpas e compromissos de nossos políticos? Se o Brasil está em pane seca, com milhões de pessoas devolvidas à pobreza, é por ganância e incompetência de seus governantes
Ruth de Aquino

'O partido deixou para mim o Iphan'

Para o presidente do Senado, o sistema político brasileiro está falido, e a legislação eleitoral está decrépita. Assim, defende uma “radical reforma político-eleitoral”. O senador acerta no diagnóstico, mas receita aspirina para pneumonia.

Número de partidos, voto obrigatório, voto distrital e outros dispositivos que compõem o debate da reforma são relevantes, é claro. Mas, para além da crise de representação, que ocorre também em outras democracias consolidadas, no caso brasileiro há agravantes importantes.

É exemplar o caso do edifício Ladeira da Barra, em Salvador, que causou a demissão de dois ministros.

“O partido deixou para mim o Iphan. Queria outro órgão, mas no momento não tinha.” (Deputado Pastor Luciano, PMB-BA, no GLOBO)

O que pode interessar a um deputado federal a indicação do superintendente de um órgão técnico como o do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)? É da área o deputado? Não, é pastor da Igreja Internacional da Graça de Deus.


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O tráfico de influências é rotina em serviços de aprovação de obras e em governos de todos os matizes. Com quadros técnicos desprestigiados e legislação confusa, a nomeação política de um superintendente pode ser um negócio. Mas é uma minúcia, em vista do arcabouço legal construído nos últimos tempos.

Sucessivas leis têm produzido crescente embaralhamento na relação entre políticos e Estado, o que facilita a apropriação privada do que é público e lhe dá foros de legalidade. Exemplifica-se nas regras que regem a licitação de obras públicas.

Como se sabe, em 1998 foi criado um regime próprio para a Petrobras, permitindo licitar obras sem projeto. Deu no que deu. Mas, com o anúncio da Copa do Mundo, um manancial de medidas provisórias, transformadas em lei, estendeu esse regime, chamado por Contratação Integrada/RDC, para estádios (2011), obras do PAC (2012), o Minha Casa Minha Vida e equipamentos de saúde (2013) e, afinal, para todas as obras públicas, federais, estaduais e municipais (2015) e para as estatais (2016). Assim, superfaturamento, prazos dilatados e baixa qualidade das obras são a tônica.

Formatou-se um verdadeiro sistema integrado — leis, políticos, gestores, empreiteiras —, que se constitui em importante razão para o divórcio entre políticos e sociedade, que mina a representação política. A mudança eleitoral não fará a reconciliação.

Agora, enquanto o país se comovia com a tragédia da Chape e a Câmara dos Deputados laborava no pântano, descaracterizando o projeto anticorrupção, o Senado pôs em pauta totalmente alterado o PLS 559/13, concebido para modernizar a Lei de Licitações 8.666/93. Com conceitos confusos, sugerindo uma ideia e adotando sua contrária, o que já era absurdo é aprofundado nessa desfiguração.

A condenada Contratação Integrada/RDC, denunciada pelas entidades da arquitetura e da engenharia e pelos órgãos técnicos de contas do governo, serviu de escada para outra modalidade ainda mais permissiva, a Contratação Semi-Integrada, em que a empreiteira continua fazendo promiscuamente o projeto e a obra; mas agora o preço já não será fixo, mas unitário, e, portanto, indefinido. Mas não só. Entre outras, foi inventada uma modalidade em que o governante negocia com uma empreiteira o projeto e a obra e, depois, dá 20 dias para que alguma outra empresa ofereça mais vantagens. Efetiva-se o conluio.

O que esteve em pauta na Câmara é uma anistia aos crimes anteriores. O que está em pauta no Senado é uma anistia prévia às falcatruas. Passando, não haverá mais malversação de recursos públicos e obra malfeita. A lei cobre tudo. A Lava-Jato passará para a história como um conto infantil. A entrega do Iphan, angelical.

É nesse cipoal que a ideia de reforma político-eleitoral perde densidade. É maior, mais ampla, é mais profunda a crise.
Sérgio Magalhães