quarta-feira, 14 de abril de 2021
O processo da pandemia
Já o presidente do Senado, que teve à mão uma forma eficaz de intervir e mudar os rumos da catástrofe, imaginou que poderia aplicar um sofisma parlamentar. Como dependia da sua assinatura a instalação da CPI, tentou postergá-la. Exercitou o golpe de Pilatos e lavou as mãos. Um passo em falso nas cenas iniciais da sua liderança de um dos poderes da República.
Obrigado a cumprir o dever por decisão judicial, acabou por perder o controle da situação.
A experiência das CPIs mostra que, mais do que as investigações, as denúncias ganham dimensões de provas.
Por isso, haja o que houver, e mesmo que Bolsonaro tenha conseguido truncar a CPI, o culpado por esta crise política e institucional tem nome, sobrenome e endereço: o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado. Ele vislumbrou dominar o processo com silêncios e retardamentos.
Definido por seu público como um político tático e tendo surgido no Senado como uma novidade bem-vinda ao jogo parlamentar, parecia uma espécie de ressurreição dos políticos mineiros que fizeram história. É curto o caminho percorrido, mas Rodrigo Pacheco, até agora, está frustrando estas expectativas.
Os argumentos que mobilizou para não instalar a CPI são superficiais e às vezes parecem sobrenaturais, porque tomam distância da realidade.
Estreante, o senador Pacheco desprezou mais de 30 assinaturas de senadores de diferentes partidos e ideologias. Apegou-se ao argumento, depois capturado pelo governo, que a CPI não podia funcionar por meio virtual. Hoje, no planeta, da assembleia de condomínio ao programa de auditório, sem falar no plenário dos tribunais, as sessões realizam-se remotamente.
Outro dos problemas mencionados seria a impossibilidade de dar segurança às testemunhas. Por quê? O presidente e o relator podem acompanhar a testemunha numa reunião, enquanto os inquiridores trabalham de outras latitudes. Surgiu ainda a alegação estapafúrdia, logo incorporada por representantes do investigado, de que a CPI da Pandemia, se realizada durante a pandemia, seria um ato político e atrapalharia o enfrentamento da doença. E para completar recorreu ao lugar-comum: a CPI seria um “ponto fora da curva”. Qual é a curva?
Enquanto fugia de suas atribuições constitucionais, o senador Pacheco não se recusava a tentar desempenhar competências do Executivo, buscando formas de comprar vacinas e toda sorte de providências que não tinha condições legais de assinar. Perda de tempo. Até aceitou liderar um comitê decorativo, criado por Bolsonaro para envolver suas responsabilidades numa cortina de fumaça.
O fato de o destemido Jair Bolsonaro estar com medo de ser investigado é até um bom sinal. Poderia significar que tem consciência dos atos perversos que praticou na gestão da pandemia. Já o presidente do Senado poderia ter evitado a crise e baixado a temperatura de mil formas. Quem sabe, se tivesse instalado a CPI quando foi proposta, por exemplo, não saberíamos hoje as verdadeiras razões das quatro mudanças de ministros da Saúde neste governo, em menos de um ano.
Ao submeter-se ao capricho do presidente, o senador Pacheco talvez não tenha percebido que a grife da presidência do Senado só é desfrutável quando se está no exercício do cargo. Quem se lembra hoje do senador Davi Alcolumbre?
Bolsonaro está com medo
Na sexta-feira, o presidente vociferou contra o ministro Luís Roberto Barroso. Acusou-o de fazer “politicalha”, “militância” e “jogada casada” com a oposição. Faltou dizer que o juiz se limitou a aplicar a lei.
Barroso anotou que a comissão parlamentar de inquérito é um direito da minoria. O Supremo reconheceu isso quando contrariou o governo Lula e determinou a abertura das CPIs dos Bingos e do Apagão Aéreo.
No sábado, Bolsonaro passou do protesto à conspiração. Em conversa com o senador Jorge Kajuru, sugeriu retaliar a Corte com uma ofensiva para destituir ministros. “Tem que fazer do limão uma limonada”, justificou.
No mesmo telefonema, ele disse que desejava “sair na porrada” com o senador Randolfe Rodrigues. Um presidente que ameaça bater no líder da oposição parece avacalhação demais até para o Brasil de 2021.
No desespero, o governo ainda tentou desviar o foco da investigação para mirar em governadores e prefeitos. A ideia esbarrou num detalhe: o Senado não pode invadir o terreno de Assembleias e Câmaras. A comissão se limitará a apurar o destino de repasses federais a estados e municípios.
Bolsonaro sabe o que fez e deixou de fazer para que o Brasil se transformasse no epicentro da pandemia. Agora a CPI poderá identificar suas digitais na falta de vacinas, na sabotagem às medidas sanitárias e na morte de pacientes por falta de oxigênio.
No melhor cenário para o capitão, a investigação ampliará seu desgaste às vésperas da campanha. No pior, ajudará a responsabilizá-lo criminalmente pelo morticínio.
Ontem o senador Fernando Collor escancarou os riscos que o presidente passou a correr. “Temos que ter consciência do momento em que vivemos”, discursou. “Falo isso como alguém que já passou e viveu episódios dramáticos da vida nacional.”
No caso dele, a CPI deu em impeachment.
Para senadores, lockdown só em causa própria
Temem que uma medida como essa produza graves danos à economia, embora o lockdown venha sendo adotado mundo afora de tempos em tempos, e com bons resultados.
Extinção do nome Bolsonaro
Mas, assim como há séculos não deve haver mais Drakuls por lá, não se conhecem também Torquemadas na Espanha —quem vai admitir ser descendente de Tomás de Torquemada, que mandou milhares de hereges e judeus para a fogueira no século 15? E de quantos Hitlers você ouviu falar na Alemanha e na Áustria desde o suicídio de Adolf em 1945? É verdade que, possivelmente broxa, o Führer não deixou filhos, mas não terão sobrado sobrinhos e primos com seu nome? E será conveniente ter hoje o sobrenome Tsé-tung na China, Amin Dada em Uganda e Pol Pot no Camboja? Os três somados ordenaram quase 80 milhões de mortes no século 20.
Façanhas invejáveis até por Jair Bolsonaro, responsável por boa parte dos por enquanto 13,6 milhões de brasileiros contaminados com a Covid e 358 mil mortos, números de que logo sentiremos saudade. Aos quais Bolsonaro chegou por um somatório de negação, sabotagem e mentiras, imortalizadas em tantas declarações gravadas. Nunca um criminoso se entregou tanto pela palavra.
O nome Bolsonaro também desaparecerá por falta de quem ouse usá-lo. Claro que, sabendo como seus filhos devem lavar o cérebro de seus próximos, talvez leve mais uma ou duas gerações para ele se tornar uma maldição.
Neste momento, pelo menos, já desprende um hálito putrefato, impossível de disfarçar.
A ascensão do terrorismo bolsonarista
E não são só militares. Também em março, um empresário do interior paulista fez um vídeo, armado, com ameaças ao ex-presidente Lula. O governador de SP, João Doria, decidiu se mudar de sua casa para o Palácio dos Bandeirantes depois das ameaças de manifestantes bolsonaristas.
A pandemia e o isolamento deixam todos nós sob estresse constante. Some-se a isso discursos extremistas e teorias da conspiração, e temos o coquetel perfeito para novos surtos com consequências letais.
Bolsonaro e seus cabos eleitorais não precisam incitar violência diretamente contra alguém. Se o fizessem, sofreriam um processo criminal. É o que ocorre quando um deles, como o deputado Daniel Silveira ou a militante Sara Winter, se exalta e perde a linha. A receita é mais difusa, mas o resultado é similar e conta com vistas grossas das autoridades.
Doutrine a cabeça de seguidores com teorias da conspiração, paranoia e maniqueísmo político. Eleja alguns adversários como alvos preferenciais do ódio. Conclame a uma atitude genérica de resistência, revolta, a alguma “ação” não especificada para levar à vitória; deixe tudo no ar. Boa parte do público alvo entenderá a mensagem. Uma minoria de desequilibrados irá colocá-la em prática. É só aguardar. Quando a tragédia previsível acontecer, faça cara de paisagem, lamente o ocorrido e siga adiante, na esperança silenciosa de que os fanáticos se encarregarão de intimidar qualquer crítico.
Em privado, Bolsonaro revela suas reais intenções sem medo. Na reunião ministerial de 22 de abril de 2020, depois tornada pública pelo STF, disse com todas as letras que queria o povo armado para resistir às ordens de governadores. Seu sonho se aproxima da realidade com o decreto de armas que entraria em vigor nesta terça (13) e teve trechos suspensos pela ministra Rosa Weber.
No que depender de Bolsonaro, a produção e venda de armas e munições no país fica mais facilitada e menos rastreada. O laudo de capacidade técnica para se armar será emitido, não pelas autoridades, mas por clubes de tiro. O limite de armas e munições que cada um pode ter deve ser generosamente aumentado. Para atiradores, chega a 60 armas. E poderão ainda andar com elas carregadas por aí. Milicianos agradecem.
Em post desta segunda (12), diz Bolsonaro: “Hoje você está tendo uma amostra do que é o comunismo e quem são os protótipos de ditadores”. Sim, no discurso bolsonarista, as medidas restritivas têm como objetivo implantar uma ditadura comunista.
Ao fim do post, conclui o presidente: “Pergunte o que cada um de nós poderá fazer pelo Brasil e sua liberdade e ... prepare-se”. O recado está dado, e os meios para se “preparar” também. População armada e alimentada com propaganda sediciosa em seus celulares. Policiais chamados ao motim. Quantos desses jovens PMs, por sinal, serão alunos de Olavo de Carvalho, que oferece seu curso —nada mais do que fanatização sectária— gratuitamente a policiais desde 2019? Como se não bastasse a Covid, agora temos que lidar também, e cada vez mais, com o terrorismo bolsonarista.
E daí?
O que aumenta a transmissão e custa vidas é confusão, complacência e medidas de saúde públicas inconsistentes e sua aplicação
Brasil do desemprego recorde tem vagas em fábricas de caixões
“A demanda mais do que dobrou, e estamos fazendo tudo que a gente pode para aumentar a produção para conseguir atender todo mundo”, diz o presidente da Godoy Santos, uma das maiores desse setor.
“Ficamos assustados com esse aumento, e isso deve continuar até pelo menos abril. É muito preocupante.”
Em um momento em que o país enfrenta um desemprego recorde e muitas empresas estão demitindo por causa da pandemia de covid-19, fabricantes de caixões como a Godoy Santos estão contratando.
A equipe da empresa de Dois Córregos, no interior de São Paulo, aumentou pouco mais de 10% com os 15 funcionários que chegaram recentemente.
As jornadas ficaram mais longas, e as férias foram suspensas — dentro do que a lei permite, Marinho faz questão de frisar.
A empresa também passou a oferecer para os clientes só 2 dos 45 modelos que tem no catálogo, para tentar acelerar a produção.
Marinho diz que já conseguiu aumentar a fabricação em cerca de 30%, mas calcula que vai precisar elevar ainda mais para tentar atender a todos.
“Tá bem esquisito, tá todo mundo ressabiado. Cidades que tinham três, quatro óbitos por mês, de repente, têm oito, dez, e esse número fica constante. Isso assusta.”
Nunca morreu tanta gente no Brasil quando no período da pandemia.
Foram quase 1,5 milhão de óbitos entre março de 2020 e fevereiro de 2021, de acordo com a Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil).
É o recorde do monitoramento desde que ele começou a ser feito, em 2003.
As mortes no ano da pandemia ficaram 31% acima da média e 13,7% do ano anterior.
E foi justamente o último mês do levantamento que teve o maior número de mortes de toda a série histórica.
Em fevereiro de 2021, 120 mil novos atestados de óbito foram emitidos por cartórios em todo o país.
Os fabricantes de caixão foram um dos primeiros a notar esse aumento fora da curva.
Esse é um mercado em que a previsibilidade é a norma. Fora algo excepcional, o número de nascimentos e mortes costuma ser relativamente regular — descontadas as variações sazonais e as mudanças no perfil da própria população.
Por isso Leandro Rigon diz que soube logo de cara que o aumento de pedidos que ele estava vendo em sua fábrica em Constantina, no interior do Rio Grande do Sul, em outubro do ano passado, não era normal.
Em um primeiro momento, diz o empresário, as funerárias tinham algum estoque para dar conta do aumento dos velórios e enterros.
“Aí pegou forte a partir de fevereiro (de 2021). Houve um aumento muito, muito grande de pedidos”, afirma o diretor-executivo das Urnas Rigon, empresa que foi criada pelo seu pai há 31 anos.
“Estou no ramo há 24. Claro que tem picos todos os anos, mas nada se compara com isso. Nunca teve algo assim.”
Leandro Rigon diz que sua produção aumentou em um terço depois que ele contratou mais 20 funcionários.
A fábrica também passou a funcionar uma hora a mais todos os dias e também aos sábados e feriados.
O empresário conta que precisou conversar com algumas funerárias. “Sabe o que aconteceu com o papel higiênico? Então, eu acho que a mesma coisa aconteceu aqui, algumas pessoas correram para estocar.”
As encomendas grandes demais foram renegociadas, para fracionar a entrega. “Se um pedir demais, o outro vai ficar sem”, justifica Rigon.
Os fabricantes dizem que a situação ficou ainda mais crítica porque está faltando matéria-prima para fazer os caixões e urnas.
Eles contam que desde o fim do ano passado começou a ficar difícil achar madeira, compensado, aço, plástico, tecido — os materiais que costumam ser usados para fazer esse tipo de produto.
Com real desvalorizado, o câmbio ficou mais favorável às exportações, e os produtores nacionais passaram a priorizar as vendas para o exterior, diz Gisela Adissi, presidente da Associação dos Cemitérios e Crematórios Privados do Brasil (Acembra).
“Os fabricantes ainda estão conseguindo atender os pedidos, mas estão reduzindo as entregas. Março deve ser o pior mês e provavelmente vai dar uma melhorada em abril, mas ainda vai ser difícil”, afirma Adissi.
Ela diz que as associações do mercado funerário decidiram fazer uma campanha para ninguém estocar esses produtos.
Adissi acredita que não vai faltar caixão e urna no mercado, mas reconhece que a preocupação é grande.
“Não pode ir a velório, não pode ir a enterro (por culpa das restrições sanitárias)… A gente já está sofrendo demais com a privação de vários dos nossos rituais. Sem esses símbolos tão familiares e habituais, começa a ficar caótico”, diz a empresária.
Os fabricantes também se mobilizaram e vieram a público no início de março pedir a ajuda. O apelo surtiu efeito, diz Antônio Marinho, que também é presidente da Associação de Fabricantes de Urnas do Brasil.
Ele afirma que as empresas conseguiram uma interlocução com o governo de São Paulo, de onde sai mais da metade da produção de urnas e caixões no país.
“Eles nos colocaram no comitê contra a covid e estão ajudando no diálogo com os fornecedores de matéria-prima. Está funcionando, o pessoal está sendo mais flexível e aumentando a cota. Acho que isso vai resolver o problema”, diz Marinho.
Com a pouca oferta de materiais e a grande procura, alguns produtos encareceram bastante, e teve preço que dobrou ou triplicou, reclamam os fabricantes.
“As pessoas acham que se está ganhando muito dinheiro no mercado funerário, mas não é assim não, pelo contrário”, afirma Leandro Rigon. “Estamos empatando, quase tendo prejuízo”
As margens de lucro ficaram mais apertadas não só por causa do aumento de gastos com funcionários e matérias-primas, diz Rigon. Os caixões que mais saem hoje também são os mais baratos.
“Antes, as compras eram mais diversificadas. Agora, não. Focam em comprar só o mais basicão porque não vai ter velório”, afirma o empresário. E o lucro era maior com os modelos mais caros.
A Bignotto, uma fábrica de Cordeirópolis, no interior de São Paulo, enfrenta ainda outra dificuldade por causa da pandemia.
Muita gente tem ficado doente, e o entra e sai de funcionários na produção aumentou bastante.
Thomaz Bignotto, que dirige a empresa com os três irmãos, calcula que cerca de um quinto dos 200 funcionários estão afastados atualmente por causa da covid-19.
Isso fez triplicar o número de contratações na empresa por semana. De duas em média para cinco ou seis hoje em dia.
“Estamos basicamente repondo os afastamentos”, diz Bignotto.
Esse é um dos motivos por que sua produção está hoje uns 40% abaixo do que era antes da pandemia. E o empresário não vê muitas alternativas de aumentar esse volume.
Primeiro, porque falta material e tudo está mais caro. “Repassamos só uma parte desse aumento para os preços dos produtos, o resto não. Estamos no zero a zero, não estamos tendo lucro”, diz Bignotto.
Mas também porque “não é fácil conseguir 40 funcionários da noite para o dia para abrir um novo turno de trabalho” em uma cidade pequena como Cordeirópolis, afirma Bignotto.
Ele explica que também não adianta comprar mais máquinas, porque esse investimento está fadado a se tornar prejuízo mais pra frente, quando o número de mortes voltar ao normal.
Ou melhor, quando ficar abaixo do normal — Bignotto acredita que a pandemia alterou o ritmo normal de nascimentos e mortes e isso reserva dias não muito animadores para o seu negócio no futuro próximo.
“O que está acontecendo agora adiantou as mortes. As pessoas que iam morrer depois estão morrendo agora. Quando acabar a pandemia, vai ter um declínio muito grande”, acredita.
O Brasil é um papagaio que matamos a cada dia
São assustadores os resultados da pesquisa sobre insegurança alimentar conduzida pela Universidade de Berlim, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais e a Universidade de Brasília. Insegurança alimentar é um eufemismo para fome. Há fome em vários graus, mas sempre será fome.
De acordo com a pesquisa, em 6 de cada 10 domicílios brasileiros existe alguma dificuldade para a obtenção de alimentos. Esse problema ocorre principalmente no Nordeste, onde essa proporção sobe para 7 em cada 10 domicílios.
Quando se disseca os números gerais, a insegurança é relatada como leve em 32% das casas, moderada em 13% e grave em 15%. Grave é fome total, aquele buraco que se abre no estômago e engole todos os pensamentos e sentimentos, mas mesmo na moderada ou leve é um fantasma que deve atormentar o tempo inteiro.
Os brasileiros também estão comendo menos e pior. Houve queda superior a 40% no consumo de carnes e frutas e de 37% no consumos de verduras e legumes. A pesquisa mostra ainda que em 63% dos domicílios o auxílio emergencial serviu para comprar comida. Comida da mais básica, que enche barriga, mas não alma.
Renata Motta, professora de sociologia na Universidade Livre de Berlim e integrante da equipe que realizou a pesquisa, resume: “O aumento ainda maior da insegurança alimentar, bem como a redução drástica no consumo regular de alimentos saudáveis, eram esperados por múltiplos fatores, de ordem econômica e política. Os efeitos da desaceleração da economia desde 2015 não foram, como quando houve a queda do PIB com a crise financeira mundial de 2008, mediados por políticas sociais anticíclicas de garantia da renda. A pandemia veio neste caldo e tornou ainda mais visíveis as consequências das escolhas políticas recentes do País.”
Sem dúvida, os amortecedores sociais são essenciais, em especial num momento de emergência como este, mas o fato incontornável é que, apesar de todas as mistificações em torno de governantes e partidos políticos, ainda há fome no Brasil e a sua erradicação para sempre nunca foi prioridade oficial. Se ela diminuiu ao longo dos últimos 100 anos, foi por obra quase que exclusiva dos milhões de cidadãos desesperados que saíram das suas regiões para buscar oportunidades em outras e das iniciativas beneméritas de caráter privado.
Governo erradica fome não apenas com políticas assistenciais. No mais das vezes, aliás, ela é apenas moeda de troca eleitoreira que tende a perpetuar a emergência. Governo erradica fome promovendo educação de boa qualidade, formação profissional e estimulando a criação de empresas e, consequentemente, de empregos. No Brasil, não se faz nada disso. Os governos servem a si próprios, aos amigos e aos amigos dos amigos. Quando tivemos ambientes econômicos favoráveis para a virada histórica, eles se dedicaram a endividar gente pobre, por meio de crédito farto e caro, além de iludir os seus rebentos com o ingresso em faculdades de meia tigela. A tigela nenhuma, no Brasil, é exatamente isto: fruto de governos de meia tigela.
A pandemia só tornou a nossa tragédia preexistente ainda mais visível, como disse a professa da Universidade Livre de Berlim. É vergonhoso e revoltante que ainda haja brasileiros com fome, muitos dos quais vivendo como a família de retirantes nordestinos de Vidas Secas, o clássico de Graciliano Ramos, Só que, agora, não há mais lugar do qual retirar-se.
No romance publicado em 1938, Graciliano Ramos descreveu a fome numa cena que julgo das mais pungentes que já li: “Ainda na véspera eram seis viventes, contando com o papagaio. Coitado, morrera na areia do rio, onde haviam descansado, à beira de uma poça: a fome apertara demais os retirantes e por ali não existia sinal de comida. (A cachorra) Baleia jantara os pés, a cabeça, os ossos do amigo, e não guardara lembrança disto. Agora, enquanto parava, dirigia as pupilas brilhantes aos objetos familiares, estranhava não ver sobre o baú de folha a gaiola pequena onde a ave se equilibrava mal. Fabiano também às vezes sentia falta dela, mas logo a recordação chegava. Tinha andado a procurar raízes, à toa: o resto de farinha acabara, não se ouvia um berro de rês perdida na catinga. Sinha Vitória, queimando o assento no chão, as mãos cruzadas segurando os joelhos ossudos, pensava em acontecimentos antigos que não se relacionavam: festas de casamento, vaquejadas, novenas, tudo numa confusão. Despertara-o um grito áspero, vira de perto a realidade e o papagaio, que andava furioso, com os pés apatetados, numa atitude ridícula. Resolvera de supetão aproveitá-lo como alimento e justificara-se declarando a si mesma que ele era mudo e inútil. Não podia deixar de ser mudo. Ordinariamente a família falava pouco.”
Graciliano Ramos foi pungente e exato há 83 anos. O Brasil continua a ser um papagaio que matamos a cada dia, para tentar saciar uma fome infinita.
Ilhados com Bolsonaro
E aí, amigo, onde serão suas próximas férias? A depender do andar da carruagem global do pós-pandemia, por aqui mesmo. Estamos condenados a ficar ilhados com Jair Bolsonaro e seu séquito de negacionistas, ressentidos e cafonas, já que, cada vez mais, seremos proscritos de um mundo que quer superar uma pandemia na qual resolvemos chafurdar indefinidamente.
Você aí que botou fé na cloroquina, fez uma festinha “só” para 50 pessoas no réveillon, foi no grupo de WhatsApp da sala do filho divulgar abaixo-assinado pelo impeachment do governador que decretou esse ab-sur-do de manter escolas fechadas enquanto a média móvel chegava a 3 mil mortos por dia, onde vai fazer suas “compritchas” quando todo este pesadelo passar?
Melhor já ir pensando num destino por aqui mesmo, uma vez que que Paris e suas lojas de alta costura não são uma opção viável no momento para a “cepa” de brasileiros, esses que acham por bem contrariar o bom senso, a razoabilidade, os conceitos mínimos de solidariedade e empatia durante uma crise sanitária — e ainda dão algo como 24% de menções de “ótimo ou bom” ao pior presidente da face da Terra plana.
A decisão do governo da França de proibir voos do Brasil é um indicativo concreto, que atinge justamente a elite mais egoísta, aquela que está louca para que as lojas Havan vacinem logo seus funcionários e para que a vida “volte ao normal”, porque mostra a ela um espelho duro de encarar: somos vistos fora daqui como a imagem e semelhança do “Mito” que alguns ainda insistem em cultuar, alheios às evidências abundantes de desgoverno absoluto em todas as áreas da vida nacional.
Mas nossa classe mais abastada segue anestesiada e fazendo seus planos cada vez mais excludentes e alheios à realidade que atinge o país. Começam a abundar relatos de quem vai tirar férias para fazer uma conexão Cancún-Miami (sim, porque os Estados Unidos também não estão dando mole para deixar brasileiro entrar lá sem uma escala prévia que funcione como quarentena).
Aqueles que chamam os prefeitos de ditadores por não ter academia aberta acham que tudo bem ficar de 10 a 14 dias trancados em quartos de hotéis em países que, vejam só!, adotam distanciamento social, só para ter acesso a imunizantes que o governante para o qual passam pano se negou a comprar para o conjunto da população. O que é restrição à liberdade individual em casa vira chique e civilizado nos cada vez mais escassos lugares do mundo que ainda aceitam passaporte brasuca.
Involuímos. Em tudo. E o resultado é que chegaremos muito depois do resto do planeta ao mundo pós-covid. Na economia, na educação, nos indicadores sociais (que, ademais, demoraremos a conhecer, porque Bolsonaro conseguiu a façanha de demolir o Censo Demográfico!), na recuperação dos sequelados pelo vírus, no estabelecimento dos protocolos que terão de ser seguidos daqui para a frente diante da evidência de que outras pandemias virão cedo ou tarde, no compartilhamento de informações científicas oriundas de um esforço histórico por vacinas e medicamentos, de que fomos apenas espectadores letárgicos.
Estamos fadados a trocar essas discussões do nosso tempo, as que definirão os rumos do trabalho, das relações afetivas, das artes, do turismo, do comércio global num mundo paralisado pelo vírus por outras só nossas, como as jabuticabas: se posso comprar 2 ou 6 armas, se o Senado pode fazer uma CPI para investigar estados ou municípios, se devemos usar máscaras (que ano é hoje?), se viraremos jacarés depois de tomar vacina, se teremos voto impresso em 2022. Estamos na Idade da Pedra do mundo pós-covid, trancados em casa e condenados a um convívio forçado com o vírus e com Bolsonaro, sem que saibamos qual deles é mais letal para o futuro do Brasil, nem sequer que futuro será esse.