quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

O grito do Brasil a Bolsonaro: Nazismo, não!

No momento em que o Brasil tem uma das imagens mais baixas no cenário mundial pelo atual Governo de extrema-direita com adornos nazifascistas, é um dever destacar dessa vez a surpresa da reação de todo o país, de todas as suas instituições, incluindo a militar, contra o escorregão de cunho nazista do secretário de Cultura do Governo, Roberto Alvim, que atravessou a linha proibida ao copiar as palavras e o ritual do ministro de Propaganda de Hitler, Joseph Goebbels. O presidente de extrema-direita, Bolsonaro, se viu cercado por um clamor nacional e não esperou 24 horas para demitir seu ministro amigo.

Dessa vez vários liberais que apoiaram Bolsonaro para derrotar Lula e o PT reagiram contra os arroubos nazistas do secretário da Cultura do Governo. Foi um teste importante ver mobilizados, imediatamente, não só todo o mundo da cultura e da ciência e de todos os partidos democráticos, incluindo os liberais do Governo, como também todas as instituições do Estado, como o Congresso, o Senado e o Supremo, junto com as principais associações civis como a de advogados, promotores e juízes e dezenas de instituições democráticas, assim como a imprensa nacional que denunciou que o Governo havia cruzado a linha vermelha da democracia.

Dessa vez não foi uma reação da esquerda contra a ultradireita. O protesto ultrapassou os partidos e as ideologias, para gritar um não do país a tudo o que tenha referência ao nazismo hitleriano dos campos de concentração e do Holocausto.


Há somente um ano eu alertava nessa mesma coluna do perigo de que o Brasil poderia estar entrando em um estado de pré-nazismo e pré-fascismo, após a entrada do furacão de Bolsonaro com seus ódios a todos os diferentes, sua exaltação de um nacionalismo de cunho fascista e sua consigna de “Brasil acima de tudo”, copiada dos tempos do nazismo: “Alemanha acima de tudo”. E das tentativas de criar uma teocracia evangélica em substituição ao Estado laico assim como uma cultura e uma educação entranhadas nos valores militares e medievais.

Dessa vez uma parte do Governo viu com preocupação os arroubos nazistas dos bolsonaristas mais rígidos. Como demonstra, por exemplo, a satisfação do general do Exército, Augusto Heleno, que faz parte do Governo e é um dos assessores mais próximos ao Presidente e que também ele havia flertado com medidas extraordinárias no caso do Brasil se transformar em um novo Chile. Heleno, dessa vez, assustado com o escorregão nazista do secretário da Educação, elogiou a reação positiva do Brasil. Chegou a felicitar a reação da sociedade com essas palavras: “Fantástica e até emocionante a reação de intelectuais, artistas, historiadores, professores, estudantes, militares e da Nação como um todo, ao infeliz resgate de pensamentos nazistas”. E acrescentou que isso “mostra uma face da convicção e do apego de nosso povo à democracia e às liberdades individuais”. Até o importante militar entendeu que o Governo poderia estar se dirigindo à barbárie.

A reação democrática da sociedade brasileira e de todas as instituições do Estado às tentações nazistas e fascistas que começaram a levantar a cabeça em várias áreas do Governo, é fundamental. O perigo de involução, de fato, existe, já que vemos aflorar a cada dia mais saudades dos tempos da ditadura que levam Bolsonaro a tomar medidas drásticas e antidemocráticas quando, segundo eles, o Congresso e o Supremo não se dobram aos seus caprichos autoritários. O fato de o Brasil dizer não a essa loucura significa um acréscimo de esperança na defesa dos valores democráticos.

E não foi por acaso ter sido no delicado e importante campo da cultura o local em que os brasileiros de todas as crenças disseram não a essa tentação do Governo de dar lugar no Brasil a uma única forma de criar e de ensinar, de fazer arte, e do perigo de ver castrada a liberdade de pensamento. Os brasileiros, conservadores em hábitos e costumes, não aceitam a imposição de um único tipo de cultura, muito menos de cunho nazista.

O brasileiro, historicamente, está acostumado a uma grande pluralidade cultural que surge da mistura de todas as expressões e as correntes mais livres de criar e de fazer cultura que leva em suas veias. Não por acaso é um dos povos com tradições populares mais fortes e arraigadas às que dificilmente renuncia, muito menos em benefício de uma ideologia.

Essa reação inesperada e feliz da sociedade brasileira às tentações nazistas de alguns dos ministros do Governo e do próprio presidente, abre um caminho de esperança aos democratas de coração, os que amam as liberdades, sejam de direita e de esquerda, porque somente em um húmus de democracia consolidada se constrói uma sociedade livre e feliz. No Brasil, de fato, o peso de uma escravidão nunca resolvida deixou marcas profundas de desigualdade social, de dor e de discriminação racial que dura até nossos dias.

Dessa vez, felizmente, é como se o Brasil tivesse despertado para dizer não aos bárbaros e para dar o alerta de que tudo tem um limite e que não importa se governa a direita, a esquerda e o centro, mas nunca os filhos bastardos de nostalgias de campos de extermínio.

A reação da sociedade brasileira à injúria nazista de quem deveria velar pelas liberdades que defendem ou criar cultura em liberdade e sem marcas ideológicas, não pode, entretanto, nos fazer dormir em nossos louros. É verdade que a reação imediata do presidente em demitir o secretário da Cultura, algo que a maior das manifestações não teria conseguido, não pode nos deixar totalmente tranquilos. Bolsonaro viu que todas as forças vivas ficavam contra ele e ratificavam não querer entrar nos corredores de morte do nazismo, e dessa vez reagiu com rapidez e sem hesitação. Isso não significa, entretanto, que tenha se arrependido da política racista da qual está imbuído. Não foi uma conversa. Foi obrigado pelo grito de uma sociedade que começa a dizer: “Daqui não se passa”. E hoje sabemos, além disso, que por ele teria esperado para decidir a demissão do secretário da Cultura. Foram os militares de dentro do Governo que o obrigaram a não esperar sequer mais uma hora.

Pensar que Bolsonaro pode mudar é, na verdade, uma vã utopia. Como Hitler não mudou, a quem o presidente gosta de imitar em sua linguagem e até no corte de cabelo. Quem precisa continuar firme é a sociedade e suas instituições para que continuem detendo-o sempre que tentar atropelar as liberdades e nos introduzir no túnel escuro do autoritarismo. Está claro que ele não irá mudar. Seu repúdio e desprezo por todos os diferentes como nos tempos de Hitler dessa vez começando pelos afrodescendentes, dos quais chegou a dizer, após visitar um quilombo: “o mais leve pesava sete arrobas. Não fazem nada. Acho que nem como procriadores eles servem”. Não suporta a diversidade de gênero e já avisou que preferia um filho morto do que vê-lo chegar em casa “com um bigodudo”. Não suporta as mulheres e até se lamenta de que dos cinco filhos um, o último, nasceu mulher. O que os judeus eram para Hitler, para Bolsonaro o são todos os diferentes, aos quais acrescentou os jornalistas de quem chegou a ofender as mães.

Quero acabar essa coluna que se move entre a esperança e o medo, com as palavras de Reinado Azevedo que escreveu que não podemos dormir, já que para Bolsonaro que, terrível paradoxo, se revela amigo dos judeus, o que para os nazistas de Hitler eram os judeus hoje no Brasil o são os negros, as mulheres, os LGBTs, os índios, os jornalistas e todos os que não se ajoelham diante dele.

A sociedade brasileira deu seu primeiro grito. Se ele continuar em sua fúria iconoclasta contra todos os valores democráticos, de costas à liberdade de ação de pensamento que são os que criaram as melhores e mais livres sociedades do mundo, o segundo grito pode ser: “Agora chega!”.

O Brasil pode e ainda está em tempo. Amanhã talvez possa ser tarde demais e de nada adiantaria chorar lágrimas de crocodilo. Se já se disse um dia de Paris que ela bem valia uma missa, o Brasil, com tantos ou mais motivos bem vale esse despertar contra os pesadelos que lhe querem impor insensatas tentações de assassinar e manipular a cultura e as liberdades.

Mais do que o lema bolsonarista de “Brasil acima de tudo”, o que precisamos é de um Brasil que seja de todos e para todos, em que ninguém se sinta superior e desprezado, ou não será de ninguém. E então nos restariam somente os escombros.

Que ninguém se iluda, ou então nada seremos

Em 1995, no Colégio Militar de Porto Alegre, oito cadetes elegeram Hitler como a personalidade que mais o impressionaram ao longo da história. Criticados pela imprensa, Jair Messias saiu em defesa dos "garotos". Militar da reserva, em seu segundo mandato como deputado federal, classificou a predileção dos cadetes como "apenas gracejo, brincadeira". De lá para cá, só piorou. Na sessão de impeachment de Dilma, ao votar, Bolsonaro teve o descaramento de citar o nome do degenerado torturador Brilhante Ustra.


E Alvim caiu. Não há o que comemorar. A vocação nazista de Roberto Rego Pinheiro, codinome Roberto Alvim, agrada Bolsonaro. O discurso extremista do agora ex-Secretário de Cultura reflete rigorosamente o pensamento do presidente. Bolsonaro conhece bem Alvim. Adorou a idéia da "próxima década (da cultura) heroica e nacional profundamente vinculada às aspirações urgentes de nosso povo", declarada em vídeo por Alvim.

O ex-secretário de Cultura era um bom aluno. No mesmo dia em que publicou seu vídeo "cópia cola de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Hitler",  recebeu, ao vivo, rasgados elogios do Capitão. "Agora temos, sim, um secretário de Cultura de verdade. Que atende o interesse da maioria da população brasileira, população conservadora e cristã".

O texto declarado por Bolsonaro é parecido ao recitado por Alvim-Goebbles. Os dois falam em "interesses da maioria da população brasileira", como se deles dependesse o que, como, quando, onde a "maioria" dos brasileiros podem ver, ouvir, e aplaudir a arte no Brasil. Declaram a censura. Covardemente. Mas "a arte, Capitão, não é um espelho do mundo, é sim, uma ferramenta para consertá-lo", no poema de Vladimir Maiakóvski.

O valentão Capitão não mudou de opinião da noite para o dia sobre Alvim, o Secretário de Cultura "de verdade" ou os "ideais de Goebbles ou de Hitler". Que ninguém se iluda. Bolsonaro não resistiu às pressões. Teve que demitir o secretário depois do ricochete da comunidade judaica internacional. Adorador de Benjamin Netanyahu, ficou sem opção.

Saiu Alvim. Restaram fantasmas e desenredos. Certamente menos tóxica, Regina Duarte não terá fiança da grande parte da classe artística. E dificilmente resistirá às intimidações, à compressão do poder. Corre o risco de sair destruída. Regina não parece ter o sangue de barata que corre nas veias de Sérgio Moro.

Regina deve saber que não é Roberto Alvim que assina as idéias de Goebbles, como disse antes de ser demitido. É Bolsonaro. São seus filhos. São seus assessores mais próximos. São ministros. O pensamento nazista impera no governo.

A repercussão nacional e internacional do texto de Alvim nos dá vigor. A vigilância permanente da sociedade civil nos dá folego. Partiu de uma advogada anônima a identificação do plágio nazista, imediatamente jogado na mídia pelo Site "Jornalistas Livres".

A vigília não é só necessária, é vital. "Você não pode deixar ninguém invadir o seu jardim para não correr o risco de ter a casa arrombada", de novo, do poeta russo Vladimir Maiakóvski, morto aos 36 anos, em 1930.

PS: Enquanto nos distraímos com Alvim, uma dezena de denúncias de "mal feitos" pipocam dentro e fora do Palácio, com quem detêm a informação e a torna pública... Cadê o presidente da Casa da Moeda, que destituiu toda a diretoria para nomear um amigo por $ 40 mil? Eduardo Zimmer Sampaio e o amigo nomeado são vizinhos de Bolsonaro no Condominio Vivendas da Barra. Cadê o Flavio Bolsonaro? Cadê o Queiroz? Quem mandou matar Marielle? O que é "veremos lá na frente"?

Veremos. Vigilantes. Prevenidos.

Future-se, Brasil


Maestro da orquestra de cordas, Paulo Guedes toca tambor no Fórum de Davos

Paulo Guedes foi enviado à Suíça como representante da ala modernizante da administração de Jair Bolsonaro. Mas o ministro da Economia iniciou sua participação no Fórum Econômico Mundial de Davos ecoando a pregação do bloco troglodita do governo. "A pior inimiga do meio ambiente é a pobreza", disse Paulo Guedes numa das reuniões de Davos.

Nessa versão, as pessoas destroem a natureza porque "têm fome". Com suas palavras, o ministro tornou-se porta-voz internacional de uma desculpa esfarrapada do seu colega do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Quando quer desviar o foco das queimadas que arderam na Amazônia, Salles fala em harmonizar economia e ambiente, provendo oportunidades para "os "os 20 milhões de pobres que foram deixados para trás na Amazônia —a região mais rica em recursos naturais.".


Atribuir a devastação da floresta aos pobres é uma aberração a serviço da desinformação. A tragédia ambiental de Brumadinho foi fruto de negligência criminosa da Vale, uma das maiores mineradoras do planeta. Na Amazônia, é antiga a ação da rede criminosa que une desmatadores e grileiros. O crime aumentou em 2019 porque Salles e o próprio Bolsonaro sinalizaram que a fiscalização seria afrouxada.

Ao avalizar desculpas que não se sustentam, Paulo Guedes piora a sua estampa sem melhorar a imagem do Brasil. O mundo representado em Davos está conectado à realidade. Consome informações científicas e acompanha as insanidades que Bolsonaro e seus trogloditas pronunciam.

Maestro da orquestra de cordas de Brasília, Guedes compôs uma partitura harmônica. Inclui a reforma da Previdência, déficit fiscal declinante, inflação sob controle e juros miúdos. Por razões que a sensatez desconhece, o ministro atravessou sua própria música com o ruído do tambor ambiental da gestão Bolsonaro. Por sorte, o fórum de Davos vai até sexta-feira. Se quiser, Guedes dispõe de tempo para fazer soar os violinos.

A caça às feiticeiras

O problema é dificílimo. Todo o mundo está de acordo em que o governo precisa identificar e punir os inimigos públicos que estavam leiloando o Brasil a essa espécie de socialismo degenerado que se convencionou chamar "comunismo internacional". Mas todo o mundo também exige que a eliminação dos focos de insurreição se faça sem se cair no erro extremo da caçada cega às feiticeiras, sem se atacar essa cidadela que é o próprio coração da democracia: a liberdade de pensamento e de palavra.

Quando se escutam os aplausos entusiásticos com que nos saúdam a imprensa e os governos de Salazar e Franco, a gente fica de orelha em pé: que é que nós estamos fazendo ou prometendo de ruim, para eles se alegrarem tanto? Será que esperam que a marcha da Revolução nos arraste a uma ditadura semelhante à deles, sem nos sabermos livrar do falso dilema – ou fascismo ou comunismo – deixando de parte a terceira posição, que é a única verdadeira, a simples democracia?

Tenho medo. O doente está grave e a operação é melindrosa. Tanto o pode salvar como acabar de matar. 


E não pode ser adiada, nem torneada, nem desconversada, essa operação indispensável. É imperioso demarcar logo o limite exato, separando o que é crime e o que é direito de homem livre. Quem se provou culpado de conspiração, entendimento com o estrangeiro, desvio de dinheiros públicos para fins subversivos, preparação de luta armada, insuflamento do povo contra as instituições constitucionais, que pague o seu crime. Jornalista que incitava operários e soldados a greves políticas, à insubmissão e ao motim, esse jornalista incidiu em crime, e merece punição, é claro. Mas o jornalista que, usando da liberdade de imprensa, declarava suas convicções políticas, fossem quais fossem – como se pode prender e condenar esse homem, sem lhe cercear a mesma e sagrada liberdade de pensamento e de palavra?

Funcionário que utilizou criminosamente o dinheiro dos contribuintes para subvencionar organizações ilegais ou promover a insurreição cometeu crime e deve ser demitido, julgado, condenado, e com severidade. Porém, se esse funcionário tem apenas "ideias subversivas", como o punir? Ou antes, com que direito o punir? 

Na hora em que se declara, seja qual for o pretexto e o momento, que ter ideias é crime, então nessa hora está tudo muito mal. Quando se exige que um cidadão, para usar dos seus direitos civis, assine um daqueles "atestados de ideologia" de malfadada memória, é sinal de que há um desequilíbrio grave na balança democrática. 

Sob a alçada da justiça revolucionária só pode ser posto o fato atual, o fato concreto, o crime perpetrado. (E há uma legião enorme de candidatos à cadeia, dentro dessa faixa.) Mas ter qualquer ideia dentro da própria cabeça, seja que ideia for, isso só é crime em terras como a Rússia, a China, Cuba, ou na Espanha e no Paraguai.

Ser comunista ou acreditar que o comunismo é a solução para os problemas do mundo pode ser um erro, um engano trágico, mas não é um crime. Democraticamente não o é. Só começa a ser crime quando o cidadão abandona a simples ideologia e entra no terreno da organização revolucionária, da conspiração e da revolta.

Parece tão óbvio tudo isso. Mas tão difícil de realizar com honestidade e justiça. A grandeza da democracia coincide precisamente com a sua maior fraqueza. Na liberdade, que é o seu fundamento e a razão de sua existência, está também o seu maior risco, estão em potencialidade todos os perigos. Mas acontece que, dessa grandeza e dessa debilidade, desse risco, participa a própria natureza humana. O reconhecimento do livre arbítrio, que é a base de todos os códigos religiosos, nasce da ânsia imanente de liberdade da natureza do homem. Deus Nosso Senhor – qualquer que seja o nome sob que o invoquem – consagra essa liberdade essencial: do espírito como fundamento de toda a sua justiça. Deus, em todas as religiões civilizadas, revela a verdade, mas não a impõe, deixando ao homem o direito de errar, numa demonstração de que a democracia é instituição divina, já que se baseia no inalienável livre arbítrio por Deus reconhecido.

Quando leio nos jornais que a casa de fulano de tal foi "visitada pela polícia" que, em suas buscas, apreendeu grande cópia de "literatura comunista", tremo. Apesar de toda a minha gratidão pelo milagre que foi esta revolução, de toda a minha confiança nos homens que a chefiam, tremo. Polícia que censura livros, revolução democrática que tem medo do pensamento e faz autos de fé, assustam. Será que os agentes apreendedores são capazes de fazer a indispensável distinção entre a boçal literatura de propaganda da insurreição, fartamente distribuída pelas agências internacionais do comunismo, e a literatura propriamente dita, os livros onde o pensamento humano se entrega ao seu mais nobre exercício, que é a especulação e a discussão dos problemas eternos – sociais, morais, religiosos? Que qualificação intelectual terão os agentes de polícia que dão as buscas para fazer essa distinção sutil, mas vital?

A caça às feiticeiras é um esporte sanguinário e embriagante. Precisa muita força de alma para lhe resistir, quem tem o dever de caçar simples criminosos. 

E não é ocioso lembrar que, afinal de contas, quem acabou com as bruxas e com a bruxaria não foram as fogueiras dos fanáticos; foi, ao contrário, a razão livre, o pensamento livre, o raciocínio livre dos homens, homens livres.

Engana-se quem quer

Era de imaginar que, a essa altura, a gente tivesse aprendido a lição, tivesse aprendido a dominar as artimanhas com que essas coisas tapeiam a gente, mas as pessoas nunca se fartam.

Elas aplaudem, agitam bandeiras, contratam bandas militares para desfilar. Sim, sim, coisas formidáveis, coisas milagrosas, máquinas de estontear a imaginação
Paul Auster, "Timbuktu"

A sedução do autoritarismo

Eles pertencem a mundos distintos. Humberto Costa, de 62 anos, é psiquiatra e senador pelo PT de Pernambuco. Eduardo Bolsonaro, de 35 anos, é policial e deputado pelo PSL de São Paulo. Na aparência, não têm muito em comum, além do hábito de abusar dos gritos nos ataques aos adversários em plenário. Mas acabaram se encontrando em peculiares interpretações sobre a palavra “liberdade”.

Costa propôs ao Senado a criação de um “órgão independente” para controlar a internet. Pretende liquidar “mídias sociais” que “destroem reputações e disseminam o ódio”.

O senador se esqueceu de definir “mídias sociais” no projeto (PRS nº 56). Nem citou nomes. Só não deixou de lembrar a criação de 24 cargos nessa “instituição” (5) e no seu “conselho multissetorial” (19).

Costa quer impor ordem na “desordem informacional” da rede mundial, que tem 209 milhões de usuários brasileiros. Não é difícil imaginá-lo à frente da brigada de catalogação infinita de sites e mensagens, para intimar provedores à “remoção de conteúdos”, como prevê no seu projeto.

Ao lado, na Câmara, o deputado Eduardo Bolsonaro batalha por uma lei (PL 5358) para “criminalizar a apologia ao comunismo”. Pretende punir quem “fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos”, entre eles a foice e o martelo,

O deputado sonha com o impossível, pois “ideias não podem ser assassinadas” — ensinava o presidente argentino Domingo F. Sarmiento (1811-1888), que duplicou o número de escolas e construiu uma centena de bibliotecas públicas no seu país. No caso, uma idealização política inspirada, goste-se ou não, nos Evangelhos e cuja formulação orgânica remonta a Platão, na Grécia Antiga.

Bolsonaro quer proibir, por exemplo, símbolos da China, comunista e dona de 30% da energia, de metade da rede telefonia e com US$ 100 bilhões anuais em comércio com o Brasil.

O senador do PT e o deputado do PSL se encontraram na sedução do autoritarismo. Ficaram caricatos na aposta em censura para impor “ordem” ao século XXI. Podem não ter percebido, mas já foram atropelados pela História.

Mudanças climáticas podem gerar crise financeira sistêmica

As mudanças climáticas podem desencadear uma crise financeira sistêmica, ao menos que medidas sejam tomadas para conter os riscos, alerta um novo livro lançado nesta segunda-feira pelo Banco de Compensações Internacionais (Bank for International Settlements, ou BIS, considerado o banco central dos bancos centrais). E, sozinhos, os bancos centrais não poderão salvar o planeta do caos no clima, alertam os autores.

Em “Cisne Verde”, os analistas traçam um paralelo entre a teoria do Cisne Negro com o caos climático. Em obra publicada em 2007, Nassim Nicholas Taleb descreve que os eventos do cisne negro possuem três características: eles são inesperados e raros, fora das expectativas; seus impactos são amplos ou extremos; e eles só podem ser explicados após acontecerem. Exemplos são ataques terroristas, o surgimento de tecnologias disruptivas ou catástrofes naturais.

Os cisnes verdes, ou “cisnes negros climáticos”, podem ser encaixados nessa discrição. Os riscos se caracterizam pela incerteza e não-linearidade, suas chances de ocorrência não se refletem em dados do passado, e a possibilidade de valores extremos não pode ser descartada. Entretanto, existem algumas particularidades dos cisnes verdes. Apesar de imprevisíveis, existe um alto grau certeza de que os riscos irão se materializar; o potencial para reações em cadeia ambientais, geopolíticas, sociais e econômicas imprevisíveis; e consequências mais sérias que crises financeiras: as catástrofes climáticas são ameaças existenciais para a Humanidade.

— Cisnes verdes ou cisnes negros climáticos apresentam muitas características dos cisnes negros típicos — afirmou Luiz Awazu Pereira da Silva, vice-gerente geral do BIS e coautor do estudo, em entrevista coletiva, segundo a agência Bloomberg. — As abordagens tradicionais de gerenciamento de riscos, que consistem na extrapolação de dados históricos e hipóteses de distribuições normais, são em grande parte irrelevantes para avaliar riscos futuros relacionados com o clima.


O livro foi publicado na semana seguinte ao anúncio de que a última década foi a mais quente do planeta, com o registro de 19 dos 20 anos mais quentes da História. O número de eventos climáticos extremos quadruplicou nos últimos 40 anos, o que reforça a urgência no trato do tema. A elevação do nível do mar ameaça a existência de cidades costeiras, tempestades e secas mais brutais e frequentes tornam catástrofes o novo normal.

— Acho que estamos prestes a observar algo que poderá estar por trás da próxima crise financeira sistêmica — afirmou Pereira da Silva, segundo a Reuters.

No livro, os autores destacam que os bancos centrais possuem limitações para agir contra as mudanças climáticas. Contudo, se apenas aguardarem por ações de outras agências, eles poderão ser expostos ao risco de não serem capazes de manterem a estabilidade financeira das nações. Os cisnes verdes podem forçar a intervenção dos bancos centrais, com a compra de grandes quantidades de ativos desvalorizados para salvar a estabilidade do sistema financeiro, como já aconteceu no passado.

“Contudo, as fundações biofísicas de tal crise e seu potencial de impactos irreversíveis mostraria rapidamente os limites desta estratégia”, dizem os autores, no livro. “Por outro lado, bancos centrais não podem (e não devem) simplesmente substituir outros atores governamentais e privados em suas ações insuficientes”.

— Não existe bala de prata — alertou Pereira da Silva. — Os bancos centrais não irão salvar o mundo novamente.

Mas isso não significa inação. Os autores recomendam que bancos centrais atuem de forma proativa, contribuindo na coordenação com outros atores, promovendo a integração dos riscos relacionados com o clima na regulação dos mercados e no monitoramento da estabilidade financeira, inclusive com a adoção de novas abordagens na modelagem e de novas ferramentas analíticas que melhor dão conta das incertezas e da complexidade do tema. Eles podem adotar critérios sustentáveis nas suas políticas e, “o mais importante, os bancos centrais precisam coordenar suas ações com um conjunto mais amplo de medidas que devem ser implementadas por outros atores”.

“Essa tarefa de coordenação é urgente, dado que os riscos relacionados com o clima continuam aumentando e os impactos negativos podem se tornar irreversíveis”, dizem os autores. “Existe um conjunto de ações que deve ser consistentemente implementado. As mais óbvias são a necessidade de precificar o carbono e a divulgação sistemática de riscos relacionados ao clima pelo setor privado”.

“A dura realidade é que estamos perdendo a luta contra a mudança climática”, escreveu o governador do Banco Central francês, François Villeroy de Galhau, no prefácio do livro. “Se os bancos centrais querem preservar a estabilidade financeira na era das mudanças climáticas, é de seu interesse ajudar a mobilizar todas as forças necessárias para vencer essa batalha”.