Dessa vez vários liberais que apoiaram Bolsonaro para derrotar Lula e o PT reagiram contra os arroubos nazistas do secretário da Cultura do Governo. Foi um teste importante ver mobilizados, imediatamente, não só todo o mundo da cultura e da ciência e de todos os partidos democráticos, incluindo os liberais do Governo, como também todas as instituições do Estado, como o Congresso, o Senado e o Supremo, junto com as principais associações civis como a de advogados, promotores e juízes e dezenas de instituições democráticas, assim como a imprensa nacional que denunciou que o Governo havia cruzado a linha vermelha da democracia.
Dessa vez não foi uma reação da esquerda contra a ultradireita. O protesto ultrapassou os partidos e as ideologias, para gritar um não do país a tudo o que tenha referência ao nazismo hitleriano dos campos de concentração e do Holocausto.
Há somente um ano eu alertava nessa mesma coluna do perigo de que o Brasil poderia estar entrando em um estado de pré-nazismo e pré-fascismo, após a entrada do furacão de Bolsonaro com seus ódios a todos os diferentes, sua exaltação de um nacionalismo de cunho fascista e sua consigna de “Brasil acima de tudo”, copiada dos tempos do nazismo: “Alemanha acima de tudo”. E das tentativas de criar uma teocracia evangélica em substituição ao Estado laico assim como uma cultura e uma educação entranhadas nos valores militares e medievais.
Dessa vez uma parte do Governo viu com preocupação os arroubos nazistas dos bolsonaristas mais rígidos. Como demonstra, por exemplo, a satisfação do general do Exército, Augusto Heleno, que faz parte do Governo e é um dos assessores mais próximos ao Presidente e que também ele havia flertado com medidas extraordinárias no caso do Brasil se transformar em um novo Chile. Heleno, dessa vez, assustado com o escorregão nazista do secretário da Educação, elogiou a reação positiva do Brasil. Chegou a felicitar a reação da sociedade com essas palavras: “Fantástica e até emocionante a reação de intelectuais, artistas, historiadores, professores, estudantes, militares e da Nação como um todo, ao infeliz resgate de pensamentos nazistas”. E acrescentou que isso “mostra uma face da convicção e do apego de nosso povo à democracia e às liberdades individuais”. Até o importante militar entendeu que o Governo poderia estar se dirigindo à barbárie.
A reação democrática da sociedade brasileira e de todas as instituições do Estado às tentações nazistas e fascistas que começaram a levantar a cabeça em várias áreas do Governo, é fundamental. O perigo de involução, de fato, existe, já que vemos aflorar a cada dia mais saudades dos tempos da ditadura que levam Bolsonaro a tomar medidas drásticas e antidemocráticas quando, segundo eles, o Congresso e o Supremo não se dobram aos seus caprichos autoritários. O fato de o Brasil dizer não a essa loucura significa um acréscimo de esperança na defesa dos valores democráticos.
E não foi por acaso ter sido no delicado e importante campo da cultura o local em que os brasileiros de todas as crenças disseram não a essa tentação do Governo de dar lugar no Brasil a uma única forma de criar e de ensinar, de fazer arte, e do perigo de ver castrada a liberdade de pensamento. Os brasileiros, conservadores em hábitos e costumes, não aceitam a imposição de um único tipo de cultura, muito menos de cunho nazista.
O brasileiro, historicamente, está acostumado a uma grande pluralidade cultural que surge da mistura de todas as expressões e as correntes mais livres de criar e de fazer cultura que leva em suas veias. Não por acaso é um dos povos com tradições populares mais fortes e arraigadas às que dificilmente renuncia, muito menos em benefício de uma ideologia.
Essa reação inesperada e feliz da sociedade brasileira às tentações nazistas de alguns dos ministros do Governo e do próprio presidente, abre um caminho de esperança aos democratas de coração, os que amam as liberdades, sejam de direita e de esquerda, porque somente em um húmus de democracia consolidada se constrói uma sociedade livre e feliz. No Brasil, de fato, o peso de uma escravidão nunca resolvida deixou marcas profundas de desigualdade social, de dor e de discriminação racial que dura até nossos dias.
Dessa vez, felizmente, é como se o Brasil tivesse despertado para dizer não aos bárbaros e para dar o alerta de que tudo tem um limite e que não importa se governa a direita, a esquerda e o centro, mas nunca os filhos bastardos de nostalgias de campos de extermínio.
A reação da sociedade brasileira à injúria nazista de quem deveria velar pelas liberdades que defendem ou criar cultura em liberdade e sem marcas ideológicas, não pode, entretanto, nos fazer dormir em nossos louros. É verdade que a reação imediata do presidente em demitir o secretário da Cultura, algo que a maior das manifestações não teria conseguido, não pode nos deixar totalmente tranquilos. Bolsonaro viu que todas as forças vivas ficavam contra ele e ratificavam não querer entrar nos corredores de morte do nazismo, e dessa vez reagiu com rapidez e sem hesitação. Isso não significa, entretanto, que tenha se arrependido da política racista da qual está imbuído. Não foi uma conversa. Foi obrigado pelo grito de uma sociedade que começa a dizer: “Daqui não se passa”. E hoje sabemos, além disso, que por ele teria esperado para decidir a demissão do secretário da Cultura. Foram os militares de dentro do Governo que o obrigaram a não esperar sequer mais uma hora.
Pensar que Bolsonaro pode mudar é, na verdade, uma vã utopia. Como Hitler não mudou, a quem o presidente gosta de imitar em sua linguagem e até no corte de cabelo. Quem precisa continuar firme é a sociedade e suas instituições para que continuem detendo-o sempre que tentar atropelar as liberdades e nos introduzir no túnel escuro do autoritarismo. Está claro que ele não irá mudar. Seu repúdio e desprezo por todos os diferentes como nos tempos de Hitler dessa vez começando pelos afrodescendentes, dos quais chegou a dizer, após visitar um quilombo: “o mais leve pesava sete arrobas. Não fazem nada. Acho que nem como procriadores eles servem”. Não suporta a diversidade de gênero e já avisou que preferia um filho morto do que vê-lo chegar em casa “com um bigodudo”. Não suporta as mulheres e até se lamenta de que dos cinco filhos um, o último, nasceu mulher. O que os judeus eram para Hitler, para Bolsonaro o são todos os diferentes, aos quais acrescentou os jornalistas de quem chegou a ofender as mães.
Quero acabar essa coluna que se move entre a esperança e o medo, com as palavras de Reinado Azevedo que escreveu que não podemos dormir, já que para Bolsonaro que, terrível paradoxo, se revela amigo dos judeus, o que para os nazistas de Hitler eram os judeus hoje no Brasil o são os negros, as mulheres, os LGBTs, os índios, os jornalistas e todos os que não se ajoelham diante dele.
A sociedade brasileira deu seu primeiro grito. Se ele continuar em sua fúria iconoclasta contra todos os valores democráticos, de costas à liberdade de ação de pensamento que são os que criaram as melhores e mais livres sociedades do mundo, o segundo grito pode ser: “Agora chega!”.
O Brasil pode e ainda está em tempo. Amanhã talvez possa ser tarde demais e de nada adiantaria chorar lágrimas de crocodilo. Se já se disse um dia de Paris que ela bem valia uma missa, o Brasil, com tantos ou mais motivos bem vale esse despertar contra os pesadelos que lhe querem impor insensatas tentações de assassinar e manipular a cultura e as liberdades.
Mais do que o lema bolsonarista de “Brasil acima de tudo”, o que precisamos é de um Brasil que seja de todos e para todos, em que ninguém se sinta superior e desprezado, ou não será de ninguém. E então nos restariam somente os escombros.