quinta-feira, 19 de outubro de 2023

A paz morreu?

Na noite de quatro de novembro de 1995, cem mil pessoas se aglomeravam na Praça dos Reis de Israel em Tel Aviv. Realizava-se um comício pela paz entre israelenses e palestinos. A multidão foi ao delírio quando o primeiro-ministro Ytzhak Rabin concluiu seu discurso histórico: “sempre acreditei que a maioria de nós quer a paz e está disposta a morrer por ela”.

Poucos minutos depois Rabin foi assassinado quando se dirigia ao seu carro. O assassino, Igal Amin, um jovem militante da extrema-direita israelense confessou:” O meu objetivo era eliminar o chamado processo de paz com os palestinos e para alcançá-lo achei que seria melhor eliminar Rabin”.

Os três tiros disparados nas costas de Ytzhak Rabin dizimaram o sonho de muita gente. Simbolicamente é visto como a morte do processo de paz entre dois povos que sempre foram inimigos históricos.

Pouco antes disso aconteceram os acordos de Oslo de 1993 onde, por meio de negociações secretas, o governo de Israel e a Organização para a Libertação da Palestina de Yasser Arafat se comprometeram a unir esforços pela paz. Passos importantes foram dados: Israel saiu de territórios ocupados e os palestinos passaram a contar com um embrião de Estado, a Autoridade Palestina.

Os ataques terroristas do Hamas de 7 de outubro parecem confirmar a morte definitiva da paz entre palestinos e Israel. O sonho de dois estados também parece soterrado. Com boa dose de razão, uma onda de pessimismo varre o mundo, dado o temor de uma escalada do conflito, generalizando-se para toda a região.



O risco existe, mas considerá-lo como irreversível pode levar à paralisia e a ignorar que não há, para israelenses e palestinos, uma alternativa segura senão a paz definitiva. Ela só acontecerá se for assegurada a existência dos estados de Israel e da Palestina e se as forças interessadas na radicalização exponencial do conflito armado forem isoladas e derrotadas.

É preciso não confundir o Estado de Israel com o governo fundamentalista e de extrema-direita de Netanyahu. Desde 1996, quando chegou ao poder pela primeira vez, Netanyahu teve como estratégia avançar em territórios palestinos, particularmente na Cisjordânia, por meio de novos assentamentos de judeus. Antes, quando foram sacramentados os acordos de Oslo, existiam 200 mil assentados em territórios palestinos. Trinta anos depois são 700 mil.

Seu outro objetivo foi o enfraquecimento da Autoridade Palestina.

Seus planos naufragaram com o 7 de Outubro. Seu fracasso em garantir segurança para os israelenses o leva agora a tentar uma guerra final contra os palestinos. Seu objetivo é promover a diáspora palestina, com o êxodo de seus habitantes.

Netanyahu tenta se apropriar do apoio do mundo democrático ao direito de Israel de se defender e de enfrentar militarmente o Hamas. A opinião pública mundial, não está, contudo, avalizando a ocupação da Faixa de Gaza ou ações que violem o direito internacional. Esse é o sentido do alerta do presidente americano, Joe Biden, de que o “Hamas deve ser derrotado, mas Israel ocupar Gaza é um erro”.

Biden reconheceu ainda o direito dos palestinos de ter o seu próprio Estado e na visita que anunciou fazer à região pretende abrir diálogo com o polo moderado do mundo árabe, com vistas a fortalecê-lo.

Israel é um estado democrático, com uma opinião pública dinâmica e de valores ocidentais. Ela foi às ruas quando Netanyahu tentou usurpar poderes do Judiciário. Seu estado tem mecanismos democráticos para a alternância do poder. Isso aconteceu em 1973, quando o governo de Golda Meyer foi surpreendido pela invasão da Síria e do Egito. No médio prazo, forças moderadas israelenses podem se constituir em governo.

Também não se pode confundir o Hamas com os palestinos. Pesquisas indicam que mesmo na Faixa de Gaza, 64% da população preferem o caminho da negociação com Israel e apenas 12% confiam no Hamas. Os palestinos também são vítimas do terror e são usados como escudo humano. Se dependesse da vontade dos palestinos, viveriam em uma sociedade laica e democrática.

Diferentemente de Israel, não há no território dominado pelo Hamas mecanismos democráticos para a alternância do poder. O grupo terrorista chegou ao poder em 2006, quando ganhou as eleições, mas um ano depois expulsou a Autoridade Palestina da Faixa de Gaza e estabeleceu uma ditadura fundamentalista.

Só será deslocado pela combinação do enfrentamento militar com sua derrota política. Pelo seu isolamento e o fortalecimento da Autoridade Palestina, uma força moderada que firmou posição clara ao declarar sua opção pela política e pela resistência pacífica.

A alternativa à paz é a reprodução em escala infinitamente ampliada do enfrentamento dado ao Estado Islâmico na Síria. O ISIS foi exterminado, mas 20 mil pessoas foram mortas. Caso essa seja a opção, como defende o governo de Netanyahu, o derramamento de sangue será superior, dada a densidade demográfica na faixa de Gaza.

É preciso fugir da armadilha da mata escura. De um lado, Netanyahu ver como solução final a anexação total da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, com a expulsão dos palestinos. E, de outro, a solução final do Hamas que é eliminar o Estado de Israel.

É imperioso reconectar-se com o espírito de Oslo, quando políticos do porte de Itzhaki Rabin, Shimon Peres e Yasser Arafat deram uma chance à paz e por isso mereceram o Prêmio Nobel da Paz de 1994.

À época, Rabin percebeu que não havia mais condição de manter os palestinos como subcidadãos em seu próprio solo. São extremamente atuais suas palavras, quando recebeu o Nobel: “Cemitérios militares em todos os cantos do mundo são um testemunho silencioso do fracasso dos líderes nacionais em santificar a vida humana.”

O ataque a um hospital da Faixa de Gaza, no qual centenas de civis palestinos foram mortos, a maioria crianças e mulheres, impõe aos líderes da comunidade internacional encontrar caminhos para estancar a insanidade da guerra no Oriente Médio.

Desonestidade


O Hamas fez uma obscenidade moral. Mas nada que Israel não tivesse feito aos palestinos vezes sem conta. Dizer uma coisa e não dizer a outra é profundamente desonesto
Terry Eagleton, filósofo e crítico literário britânico 

Preservar o espaço da paz: o trabalho do mundo durante a guerra contra o Hamas

Aviv Kutz, de 54 anos, morador do kibutz Kfar Aza, é amigo de infância de um amigo meu muito próximo. Aviv e a mulher, Livnat, de 49 anos, e os filhos Roten, de 19, Yonatan, de 17 e Yiftach, de 15, moraram em Kfar Aza por anos. Ainda que a família Ktuz tenha passado por vários ataques com foguetes e morteiros do Hamas ao seu kibutz, pais e filhos continuaram esperando pela paz.

Todo ano, a família organizava um festival de pipas, com o objetivo de criar um pequeno espaço pacífico na zona de guerra. Pipas coloridas, algumas com mensagens de paz, eram empinadas perto da cerca da fronteira com Gaza. A irmã de Livnat, Adi Levy Salma, que participou do festival nos anos anteriores disse que “a ideia é empinar as pipas perto da cerca para mostrar a Gaza que só queremos viver em paz”.

O festival de pipas deste ano estava programado para o sábado, 7 de outubro. “Festival de pipas 2023”, dizia o convite, “vamos nos encontrar no campo de futebol às 16h para enfeitar o céu”. Algumas horas antes do festival começar, os terroristas do Hamas invadiram e ocuparam o kibutz. Os terroristas foram de casa em casa torturando, matando e sequestrando sistematicamente dezenas de moradores do kibutz. Todos os cinco membros da família Kutz foram mortos.


Atrocidades como estas confundem a mente. Por que os seres humanos fazem coisas como estas? O que o Hamas esperava alcançar? O objetivo do ataque do Hamas não era capturar e manter território. O Hamas não tem a capacidade militar de controlar o kibutz por muito tempo diante do Exército israelense.

Três coisas devem ser apontadas, para entender os objetivos do Hamas. Primeiro, o Hamas focou amplamente neste ataque em matar e sequestrar civis, ao invés de soldados. Em segundo lugar, os terroristas torturaram e executaram adultos, crianças e até bebês no modo mais tenebroso que poderiam imaginar. E, em terceiro lugar, ao invés de tentar esconder as atrocidades, o Hamas garantiu que elas fossem divulgadas, até filmando algumas eles mesmos e compartilhando os vídeos chocantes nas redes sociais.

Essa é a própria definição de terrorismo, e já vimos coisas similares antes com o Estado Islâmico (EI). Diferente da guerra convencional que usualmente busca conquistar território ou degradar capacidades militares, o terrorismo é uma forma de guerra psicológica, que visa a aterrorizar. Ao matar centenas de pessoas de formas brutais e tornando isso público, organizações como o Hamas e o EI buscam aterrorizar milhões — israelenses, palestinos e pessoas do mundo.

O Hamas é diferente de outras organizações palestinas como a OLP (Organização para a Libertação da Palestina), e não deve ser equiparada a todo o povo palestino. Desde sua fundação, o Hamas recusou-se veementemente a reconhecer o direito de existência de Israel e fez tudo o que estava ao seu alcance para arruinar todas as oportunidades de paz entre israelenses e palestinos, e entre Israel e o mundo árabe.

O pano de fundo imediato do atual ciclo de violência são os tratados de paz assinados entre Israel e países do Golfo Pérsico, e o esperado tratado de paz entre issraelenses e sauditas. Havia a expetativa de que esse acordo não apenas normalizasse as relações entre Israel e boa parte do mundo árabe, mas também que, de algum modo, aliviasse o sofrimento de milhões de palestinos vivendo sob ocupação israelense, e que reiniciasse o processo de paz entre os dois lados do conflito.

Nada alarma mais o Hamas do que a possibilidade de paz. É por isso que ele lançou este ataque — e é por isso que matou a família Kutz e mais de mil outros civis israelenses. O que o Hamas fez é um um crime contra a Humanidade no sentido mais profundo do termo. Um crime contra a Humanidade não é apenas sobre matar seres humanos. É sobre destruir nossa confiança na Humanidade. Quando você testemunha coisas como pais sendo torturados e executados na frente dos filhos, ou crianças pequenas brutalmente assassinadas, você pede toda a confiança nos seres humanos. E corre o risco de perder sua humanidade também.

Os crimes do Hamas não podem ser justificados pela conduta passada de Israel. Dois erros não fazem um acerto. Há muito por criticar Israel por manter milhões de palestinos por décadas sob ocupação, e por abandonar, nos últimos anos, qualquer tentativa séria de paz.

No entanto, o assassinato da família Kutz e muitas outras atrocidades cometidas pelo Hamas, não tinham o objetivo de reiniciar o processo de paz ou tem alguma probabilidade de liberarem um único palestino da ocupação israelense. Em vez disso, a guerra lançada pelo Hamas impõe imenso sofrimento a milhões de palestinos. Impulsionado pelo seu fanatismo religioso, o Hamas simplesmente não parece se importar com o sofrimento humano – israelense ou palestino.

Diferente da laica OLP, muitos dos líderes e ativistas do Hamas parecem só se importar com suas fantasias de vida paradisíaca após a morte. Eles estão dispostos a entregar este mundo às chamas e a destruir as nossas almas no processo, para que as suas próprias almas possam supostamente desfrutar da felicidade eterna num outro mundo. Nós temos que vencer essa guerra de almas.

Em sua guerra contra o Hamas, Israel tem o dever de defender seu território e seus cidadãos, mas deve também defender sua humanidade. Nossa guerra é com o Hamas, não com o povo palestino. Os civis palestinos merecem desfrutar de paz e prosperidade em sua terra, e até no meio do conflito, seus direitos humanos básicos devem ser reconhecidos pelos dois lados. Isso se refere não apenas a Israel, mas também ao Egito, que partilha a fronteira com a Faixa de Gaza, que fechou parcialmente.

Já o Hamas e seus apoiadores devem ser excomungados pela Humanidade. Não só Israel, mas toda a comunidade humana deveria colocar o Hamas completamente fora dos seus limites, assim como fez antes com o EI. Os cidadãos de Israel não podem viver em lugares como Kfar Aza, com o Hamas do outro lado da cerca, assim como iraquianos e sírios não podiam viver como o EI à sua porta.

Dezenas de milhares de israelenses já fugiram das áreas de fronteira, e não podem voltar para suas casas antes que a ameaça a suas vidas seja removida. Em um nível mais profundo, as vidas de todos os seres humanos são desvalorizadas e ameaçadas enquanto se permita que organizações como o Hamas e o Estado Islâmico existam.

Os objetivos da guerra em Gaza devem ser claros. Ao fim da guerra, o Hamas deve estar totalmente desarmado e a Faixa de Gaza deve ser desmilitarizada, para que os civis palestinos possam viver vidas dignas no território, e os civis israelenses possam viver sem medo ao lado da Faixa de Gaza.

Até que esses objetivos sejam atingidos, a luta para manter a nossa humanidade vai ser difícil. Muitos israelenses são psicologicamente incapazes nesse momento de ter empatia com os palestinos. A mente está cheia até a borda com nossa própria dor, e não resta espaço nem para reconhecer a dor dos outros.Muitas das pessoas que tentaram manter esse espaço — como a família Kutz — estão mortas ou profundamente traumatizadas. Muitos palestinos estão em uma situação semelhante — suas mentes também estão tão cheias de dor que não podem ver a nossa.

Mas os que estão de fora e não imersos na dor devem fazer um esforço para ter empatia com todos os seres humanos que sofrem, ao invés de preguiçosamente verem apenas uma parte da terrível realidade. É o trabalho dos que estão de fora ajudar a manter o espaço para a paz. Nós depositamos esse espaço pacífico com vocês, porque não podemos mantê-lo no momento. Cuidem bem dele para nós, para que um dia, quando a dor começar a sarar, tanto israelenses como palestinos possam habitar este espaço.