O preço da prostituição fica claro para o povo brasileiro. São manobras de quem não tem votoMajor Olimpio (PSL), senador morto este ano vítima de Covid sobre o Congresso passaria a controlar o uso de recursos públicos
sábado, 15 de maio de 2021
Política de bordel
Todos os Bolsonaros da CPI
Há quase um ano (20/5/2020), publiquei neste espaço uma coluna que começava assim: “No dia ainda incerto, mas infalível, em que Jair Bolsonaro se sentar no banco dos réus, veremos se usará a tática a que se habituou no poder para se impor numa discussão —silenciar seus interlocutores cortando-lhes a palavra e repetindo aos gritos seus bordões, como ‘Chance zero!’, ‘Ponto final!’, ‘Caso encerrado!’, ‘Próxima pergunta!’, ‘O recado está dado!’, ‘Cala a boca!’ e ‘E daí?’”. De lá para cá, Bolsonaro acrescentou várias ejaculações ao seu vomitório, como “Página virada!”, “Acabou, porra!” e o imortal “Enfia no cu!”.
Na coluna, eu dizia que a Justiça não se contentaria com uma argumentação tão lacônica. “Bolsonaro”, escrevi, “terá de responder extensivamente sobre os episódios em que violou a Constituição, estuprou as instituições, acusou sem provas, jogou o povo contra o Congresso e o STF, botou órgãos de Estado a seu serviço, encobriu sujeiras dos filhos e dos asseclas, mentiu compulsivamente, agrediu minorias e promoveu o desmoronamento da nação com seu ministério de celerados. O crime de mandar os humildes para a morte, exortando-os a sair de casa em plena pandemia, talvez tenha de ser julgado por um tribunal com sede na Holanda”.
No dia 1º daquele mês de maio, o Brasil tinha 6.354 mortos. No dia 30, atingiu 28.834 —um crescimento de 353%. Alguém acreditaria que chegaríamos a números como os 430 mil de hoje? Sim: os médicos e cientistas que —e está tudo gravado— alertaram para isso o tempo todo.
Bolsonaro não está em pessoa no banco dos réus. Mas, simbolicamente, sim. É representado por cada um de seus cúmplices que se senta à mesa da CPI e que, querendo ou não, fornece informações.
Na coluna, eu dizia que a Justiça não se contentaria com uma argumentação tão lacônica. “Bolsonaro”, escrevi, “terá de responder extensivamente sobre os episódios em que violou a Constituição, estuprou as instituições, acusou sem provas, jogou o povo contra o Congresso e o STF, botou órgãos de Estado a seu serviço, encobriu sujeiras dos filhos e dos asseclas, mentiu compulsivamente, agrediu minorias e promoveu o desmoronamento da nação com seu ministério de celerados. O crime de mandar os humildes para a morte, exortando-os a sair de casa em plena pandemia, talvez tenha de ser julgado por um tribunal com sede na Holanda”.
No dia 1º daquele mês de maio, o Brasil tinha 6.354 mortos. No dia 30, atingiu 28.834 —um crescimento de 353%. Alguém acreditaria que chegaríamos a números como os 430 mil de hoje? Sim: os médicos e cientistas que —e está tudo gravado— alertaram para isso o tempo todo.
Bolsonaro não está em pessoa no banco dos réus. Mas, simbolicamente, sim. É representado por cada um de seus cúmplices que se senta à mesa da CPI e que, querendo ou não, fornece informações.
Marcelo Queiroga foi Bolsonaro. Fábio Wajngarten foi Bolsonaro. E, daqui a dias, Ernesto Araújo e Eduardo Pazuello serão, espetacularmente, Bolsonaro.
Meu silêncio é melhor que o seu
O avião levantara voo há mais de duas horas quando a mulher sentada ao meu lado me perguntou se poderia trocar de lugar comigo. Eu reservara uma cadeira junto ao corredor, porque gosto de me sentir livre para esticar as pernas. Trocar de lugar com ela significaria ficar entalado por mais oito horas. Num voo longo, é um pesadelo. Pior do que isso, só mesmo ficar entalado entre duas senhoras com bebês de colo. Disse-lhe que sim, sorrindo, pois sou o tipo de pessoa capaz de se deixar matar para não parecer indelicado; ou talvez seja apenas demasiado covarde para dizer que não. Tenho horror a conflitos.
A troca de lugar não serviu de muito. Decorridos três minutos, o homem debruçou-se sobre mim, como se eu não fosse uma pessoa, mas um estorvo:
A mulher não queria trocar de lugar por uma questão de comodidade; queria trocar de lugar para ficar mais longe do marido. Haviam começado a discutir ainda antes do avião levantar voo. Os dois se odiavam com o ódio formidável de quem já trocou juras de amor eterno. É uma ingenuidade, na qual tropeço o tempo todo, acreditar que o ódio resulta da ignorância mútua. O verdadeiro ódio exige anos de amor e de profunda intimidade.
A troca de lugar não serviu de muito. Decorridos três minutos, o homem debruçou-se sobre mim, como se eu não fosse uma pessoa, mas um estorvo:
— Está sentindo minha falta? — perguntou à mulher. Ela enfiou o rosto na revista de bordo, fingindo-se surda.
— Pode ficar calada — disse o homem. — Meu silêncio é melhor que o seu.
Calaram-se, ambos, por mais três minutos. Então, foi a vez de a mulher se debruçar sobre mim — o estorvo —, e disparar na direção do marido:
— Você me faz mal, me envelhece, me faz uma pessoa amarga e pessimista. Você me tira toda a luz.
— É mútuo — disse o homem, levando a mão direita à cabeça. — Está vendo esses cabelos brancos? É por sua causa. Além desta dor nas costas, que me está matando. Antes de você aparecer eu nunca tinha tido dores nas costas…
— Antes, você era jovem — zombou a mulher.
Coloquei os fones nos ouvidos. Escolhi um álbum do percussionista nigeriano Babatunde Olatunji. Mesmo assim, continuei a ouvir, ainda que abafada pela intensa batucada de Babatunde, a rouca troca de queixas do casal. Também a mim já me doíam as costas. Pedi licença à mulher e saí para o corredor. Caminhei até a cauda do avião. Um sujeito gordo cortou-me o caminho. Disse que se lembrava muito bem de mim. Estudáramos juntos numa escola em Londres. Nunca estudei em Londres. Ele, todavia, assegurou-me que sim, contando histórias divertidas daquela época. Quando, finalmente, regressei à minha fila, a mulher reocupara o lugar original. Uma outra senhora, cansada da discussão, decidira intervir:
— Porque não se separam? — perguntou, num tom de voz glacial.
— Porque não se separam? — perguntou, num tom de voz glacial.
O casal não se mostrou ofendido com a pergunta. “Por vezes, o ódio é o amor possível”, retorquiu o homem, muito sério. “Por vezes, só o ódio sustenta um casamento.”
Horas depois, o comandante anunciou a chegada, no horário previsto, pedindo aos passageiros para apertarem os cintos. Por essa altura já a mulher adormecera, com a cabeça encostada ao ombro do marido. Eram a imagem perfeita de um casal feliz.
José Eduardo Agualusa
José Eduardo Agualusa
A perplexidade do óbvio
As chamadas forças contrárias ao Bolsonaro e também ao PT estão perplexas diante da resiliência do primeiro, apesar de seu governo desastroso e indecente, e diante do crescimento do apoio ao Lula, apesar de todas notícias do ocorrido em estatais durante seu governo. É uma perplexidade diante do óbvio: o país e seu eleitorado estão divididos de maneira polarizada, o que facilita bases sectárias para os dois lados terem provavelmente lugar no segundo turno. Além disto, cada um destes lados tem se mobilizado no sentido de ampliar sua base de apoio, não só para fortalecer-se no primeiro turno, mas também para ganhar no segundo.
Apesar de todo mal que faz, da incompetência reconhecida de seu governo, de indicadores claros de corrupção na família e na relação com o Congresso, apesar de quase 450.000 mortos pelo covid por relaxamento e negacionismo, apesar de tudo isto, Bolsonaro amplia sua base junto ao Centrão e outros grupos políticos, sem perder sua base central. Sobretudo, devido ao medo da volta do PT ao poder. Por sua vez, o Lula circula desembaraçado, com a auréola de vítima de perseguições jurídicas, fazendo aliança nos estados com partidos do centro e conseguindo apoio em meios conservadores, políticos e empresariais, que nada perderam e até ganharam durante os governos petistas.
Enquanto isto acontece no lado do Lula e do Bolsonaro, o chamado bloco democrático e seus candidatos, Ciro, Huck, Dória, Tasso, Leite, Mandetta, parecem perplexos diante do óbvio. A sensação é de que estes candidatos se concentram tanto em suas respectivas candidaturas, que caem na perplexidade ao óbvio: em tempo de extremos, os partidos mais radicais têm facilidade para chegar ao segundo turno, se os outros não se unificam desde o primeiro turno.
Prova desta perplexidade é uma mensagem colocada pelo PSDB em suas redes com a capa de um livro hipotético, tendo a foto de Bolsonaro e o título “Como trazer o PT de volta ao poder”. Uma mensagem que passa perplexidade e derrotismo.
No lugar de uma estratégia para ocupar ganhar os votos dos muitos que não desejam um ou outro dos extremos, o chamado polo democrático se divide para saber quem será o candidato. Ficam à espera de previas dentro do PSDB entre e da vontade de outros postulantes dos demais partidos.Todos batendo cabeça e perplexos quando percebem que os outros dois estão conseguindo apoio.
Está na hora de os que não estão com Lula ou Bolsonaro darem um prazo aos que se propõem a ser alternativa, para encontrarem um nome que os unifique, com uma proposta que seduza, passando confiança aos eleitores. Talvez ainda seja tempo de saírem da perplexidade do óbvio. Se não saírem e se unirem, não vai demorar que seus apoiadores migrarão para um dos outros dois lados.
Apesar de todo mal que faz, da incompetência reconhecida de seu governo, de indicadores claros de corrupção na família e na relação com o Congresso, apesar de quase 450.000 mortos pelo covid por relaxamento e negacionismo, apesar de tudo isto, Bolsonaro amplia sua base junto ao Centrão e outros grupos políticos, sem perder sua base central. Sobretudo, devido ao medo da volta do PT ao poder. Por sua vez, o Lula circula desembaraçado, com a auréola de vítima de perseguições jurídicas, fazendo aliança nos estados com partidos do centro e conseguindo apoio em meios conservadores, políticos e empresariais, que nada perderam e até ganharam durante os governos petistas.
Enquanto isto acontece no lado do Lula e do Bolsonaro, o chamado bloco democrático e seus candidatos, Ciro, Huck, Dória, Tasso, Leite, Mandetta, parecem perplexos diante do óbvio. A sensação é de que estes candidatos se concentram tanto em suas respectivas candidaturas, que caem na perplexidade ao óbvio: em tempo de extremos, os partidos mais radicais têm facilidade para chegar ao segundo turno, se os outros não se unificam desde o primeiro turno.
Prova desta perplexidade é uma mensagem colocada pelo PSDB em suas redes com a capa de um livro hipotético, tendo a foto de Bolsonaro e o título “Como trazer o PT de volta ao poder”. Uma mensagem que passa perplexidade e derrotismo.
No lugar de uma estratégia para ocupar ganhar os votos dos muitos que não desejam um ou outro dos extremos, o chamado polo democrático se divide para saber quem será o candidato. Ficam à espera de previas dentro do PSDB entre e da vontade de outros postulantes dos demais partidos.Todos batendo cabeça e perplexos quando percebem que os outros dois estão conseguindo apoio.
Está na hora de os que não estão com Lula ou Bolsonaro darem um prazo aos que se propõem a ser alternativa, para encontrarem um nome que os unifique, com uma proposta que seduza, passando confiança aos eleitores. Talvez ainda seja tempo de saírem da perplexidade do óbvio. Se não saírem e se unirem, não vai demorar que seus apoiadores migrarão para um dos outros dois lados.
Governar através do sexo
No final do século XIX, o Ocidente desenvolveu uma forma de falar de sexo que até então nunca vira a luz. Nós conhecíamos discursos jurídicos sobre comportamentos sexuais, que tipificavam o permitido e o proibido. Conhecíamos discursos morais e teológicos, com suas distinções entre o moral e o imoral. Mas nunca havíamos visto discursos médicos e clínicos sobre o sexual. Ou seja, nunca a definição sobre o que é da ordem do sexual havia passado por distinções como “normal” e “patológico”. Não por acaso, foi exatamente nessa época que o Ocidente viu proliferar, pela primeira vez, tratados sobre perversões, classificações clínicas detalhadas e precisas a respeito de “desvios” em relação a uma sexualidade “normal”. O mundo então descobriu, entre nós, a existência de pessoas descritas como “sádicos”, “fetichistas”, “exibicionistas”, “masoquistas”, “zoofílicos”, “homossexuais”, entre tantos outros. O primeiro texto no qual um comportamento sexual era definido como um transtorno psíquico fora publicado em 1870 pelo médico alemão Carl Friedrich Otto Westphal. Nele, tratava-se de descrever o sentimento homoafetivo como “sentimento sexual contrário”. A partir de então, o Ocidente rapidamente criou uma forma totalmente nova de falar de sexo.
Essa forma, no entanto, não era uma descrição mais acurada de “doenças” que já existiam, mesmo sem serem reconhecidas enquanto tais. Ela era sobretudo uma maneira mais minuciosa de regular os corpos, de normatizar e intervir nos desejos, de organizar as formas da vida social. Como já se sabia a época, sexo não é um problema privado, mas uma questão pública. A ele estão vinculadas instituições como a família e o casamento, regras de aliança e filiação, hierarquias de gênero e sujeição, disciplina, natalidade e reprodução, trabalho. Ao definir as patologias da vida sexual, esse funcionário público que era o médico podia ir às casas para sentenciar a masturbação das crianças, separar pais e filhos do mesmo quarto, exortar que as mulheres reconhecessem seu “lugar natural”, receitar “trabalhar com afinco em sua vocação” como remédio para a dispersividade do desejo.
Mas seria interessante se perguntar por que, em um dado momento histórico, o poder público entendeu que deveria aproximar-se mais dos corpos, classificá-los, perscrutar de forma minuciosa os desejos. Por que, em um dado momento histórico, o poder e suas instituições (como o hospital, a escola, as universidades, os institutos de pesquisa) precisaram falar tanto de sexo, em um tom de quem alerta para um pretenso risco generalizado de degenerescência? Não seria exatamente nos momentos em que a ordem social se sente mais ameaçada, no momento em que os corpos parecem enfim se mover e sair de seus pretensos lugares naturais, que o poder tem que aproximar mais, chegar até os quartos e corpos dos sujeitos?
Se isso for verdade, então não será estranho ver, em vários momentos históricos, tanta preocupação do poder com sexo. Não se trata de uma espécie de manobra diversionista feita para desviar a atenção de questões estruturais da sociedade. Na verdade, essa é uma questão absolutamente estrutural, pois diz respeito não apenas como a sociedade irá se reproduzir, mas também como as hierarquias serão desejadas, como a insubmissão em relação à norma será afastada.
Nesse sentido, há de se sublinhar as razões pelas quais tal discurso médico sobre o sexual apareça exatamente em um momento histórico marcado por inúmeras convulsões sociais e levantes revolucionários. Os anos de 1830, 1848, 1871 são apenas algumas datas que nos lembram como a Europa foi tomada por corpos que ocupavam as ruas, bloqueavam a circulação, exigiam uma nova ordem e saiam, de forma violenta, de seus “lugares naturais”. Corpos em contato e em fusão. Contra essa insubmissão dos corpos nas ruas nada melhor do que ensinar a submissão à norma sexual e a desconfiança perpétua em relação à polimorfia confusa de nossos desejos. Nada melhor do que instaurar um policial no interior de cada sujeito, nem que ele esteja vestido com as roupas do médico. Fazer as pessoas temerem a insubmissão nas ruas através do temor que se instaura contra a insubmissão do seu próprio desejo.
De fato, essa percepção não estava errada. Afinal, quando uma revolução enfim tomar o poder e durar, como foi o caso da revolução soviética, o mundo assistirá a um questionamento sistemático e um desejo profundo de reconstrução institucional de tudo relativo a sexo. Ao menos entre 1917 e 1924, a revolução soviética irá questionar os sistema de trabalhos e exploração no interior da família burguesa, fazendo de tarefas privadas tarefas que deveriam ser de responsabilidade do poder público. A União Soviética irá proliferar creches, restaurantes e lavanderias públicas para liberar as mulheres do trabalho doméstico, modificar a estrutura das relações de gênero, compreendendo que a igualdade social exige fortalecimento do reconhecimento da plasticidade libidinal dos sujeitos.
Ela irá facilitar os divórcios, legalizar o aborto (a URSS será o primeiro país no mundo a adotar o direito de aborto em estruturas públicas e gratuitas), descriminalizar relações homoafetivas, criar pensões mesmo para os ditos filhos ilegítimos, discutir invenções jurídicas para formas não monogânicas de relações afetivas como a “paternidade coletiva”, ou seja, paternidade reconhecida por mais de um homem. Alexandra Kollontai, por exemplo, era uma daquelas que lutavam para que, no comunismo, “o ato sexual seja algo tão simples quanto beber um copo d’água”.
Vale a pena lembrar disso nesse exato momento histórico que é o nosso, no Brasil de 2021. Pois assim, não será surpresa para ninguém que, neste exato momento, o poder fale tanto de sexo. Fale todos os dias, de forma jocosa, sarcástica, ameaçadora, apocalíptica. Fale através de piadas preconceituosas ou de pregações sobre o fim do mundo que estaria a galope através de crianças que “não sabem ler, mas sabem usar camisinha”, como disse o senhor que atualmente ocupa o cargo de ministro da Educação. Ou seja, talvez não seja estranho que ele fale de uma maneira muito similar àquela que os alemães ouviam, na década de trinta do século passado, quando eram exortados a desenvolver aversões contra o que se chamava à época de “bolchevismo sexual” e suas perversões.
Aversões produzidas através de textos que afirmavam, por exemplo: “Nossa mais alta tarefa consistirá em facilitar a formação de uma família aos dois companheiros ligados pela vida. Sua destruição definitiva equivalerá à supressão de toda humanidade superior. Mesmo concedendo à mulher um vasto campo de atividade, nunca deveremos perder de vista que o objetivo último de uma evolução verdadeiramente orgânica e lógica é a formação da família. Ela é a menor unidade mas também a mais importante de toda estrutura do Estado (…) Como o bolchevismo quer aniquilar toda individualidade, ele destrói a família, que imprime ao homem sempre uma marca individual. É por isto que ele detesta todas as aspirações nacionais. Ele quer uniformizar os povos tornando-os dóceis… Mas todas as tentativas de aniquilar a vida pessoal serão reduzidas a nada enquanto restar no coração do homem uma centelha de religião, pois é na religião que sempre se manifesta a liberdade pessoal em relação ao mundo ambiente”.
Esse era um texto do Partido Nazista alemão que concorria à eleição de 1932. Religião, família, liberdade individual, luta contra a homogeneização: tudo isso em nome de uma sexualidade que assuma “lugares naturais”, que não perverta as formas sociais orgânicas da evolução, a lógica do existente, em suma, toda “humanidade superior”. Essa era, como dizia o panfleto, “nossa mais alta tarefa”. No que se via como a luta contra o comunismo era não apenas luta contra uma nova ordem econômica, mas luta contra a potencialidade de uma nova circulação do desejo, que de fato ocorrera nos anos iniciais do período revolucionário. Eram corpos insubmissos que procuravam não apenas circular no espaço social, mas mudar a ordem legal e institucional. A lembrança dessa potencialidade era diuturnamente levantada. Era contra ela que o discurso da luta contra o comunismo era vociferado. Ontem e hoje.
Essa forma, no entanto, não era uma descrição mais acurada de “doenças” que já existiam, mesmo sem serem reconhecidas enquanto tais. Ela era sobretudo uma maneira mais minuciosa de regular os corpos, de normatizar e intervir nos desejos, de organizar as formas da vida social. Como já se sabia a época, sexo não é um problema privado, mas uma questão pública. A ele estão vinculadas instituições como a família e o casamento, regras de aliança e filiação, hierarquias de gênero e sujeição, disciplina, natalidade e reprodução, trabalho. Ao definir as patologias da vida sexual, esse funcionário público que era o médico podia ir às casas para sentenciar a masturbação das crianças, separar pais e filhos do mesmo quarto, exortar que as mulheres reconhecessem seu “lugar natural”, receitar “trabalhar com afinco em sua vocação” como remédio para a dispersividade do desejo.
Mas seria interessante se perguntar por que, em um dado momento histórico, o poder público entendeu que deveria aproximar-se mais dos corpos, classificá-los, perscrutar de forma minuciosa os desejos. Por que, em um dado momento histórico, o poder e suas instituições (como o hospital, a escola, as universidades, os institutos de pesquisa) precisaram falar tanto de sexo, em um tom de quem alerta para um pretenso risco generalizado de degenerescência? Não seria exatamente nos momentos em que a ordem social se sente mais ameaçada, no momento em que os corpos parecem enfim se mover e sair de seus pretensos lugares naturais, que o poder tem que aproximar mais, chegar até os quartos e corpos dos sujeitos?
Se isso for verdade, então não será estranho ver, em vários momentos históricos, tanta preocupação do poder com sexo. Não se trata de uma espécie de manobra diversionista feita para desviar a atenção de questões estruturais da sociedade. Na verdade, essa é uma questão absolutamente estrutural, pois diz respeito não apenas como a sociedade irá se reproduzir, mas também como as hierarquias serão desejadas, como a insubmissão em relação à norma será afastada.
Nesse sentido, há de se sublinhar as razões pelas quais tal discurso médico sobre o sexual apareça exatamente em um momento histórico marcado por inúmeras convulsões sociais e levantes revolucionários. Os anos de 1830, 1848, 1871 são apenas algumas datas que nos lembram como a Europa foi tomada por corpos que ocupavam as ruas, bloqueavam a circulação, exigiam uma nova ordem e saiam, de forma violenta, de seus “lugares naturais”. Corpos em contato e em fusão. Contra essa insubmissão dos corpos nas ruas nada melhor do que ensinar a submissão à norma sexual e a desconfiança perpétua em relação à polimorfia confusa de nossos desejos. Nada melhor do que instaurar um policial no interior de cada sujeito, nem que ele esteja vestido com as roupas do médico. Fazer as pessoas temerem a insubmissão nas ruas através do temor que se instaura contra a insubmissão do seu próprio desejo.
De fato, essa percepção não estava errada. Afinal, quando uma revolução enfim tomar o poder e durar, como foi o caso da revolução soviética, o mundo assistirá a um questionamento sistemático e um desejo profundo de reconstrução institucional de tudo relativo a sexo. Ao menos entre 1917 e 1924, a revolução soviética irá questionar os sistema de trabalhos e exploração no interior da família burguesa, fazendo de tarefas privadas tarefas que deveriam ser de responsabilidade do poder público. A União Soviética irá proliferar creches, restaurantes e lavanderias públicas para liberar as mulheres do trabalho doméstico, modificar a estrutura das relações de gênero, compreendendo que a igualdade social exige fortalecimento do reconhecimento da plasticidade libidinal dos sujeitos.
Ela irá facilitar os divórcios, legalizar o aborto (a URSS será o primeiro país no mundo a adotar o direito de aborto em estruturas públicas e gratuitas), descriminalizar relações homoafetivas, criar pensões mesmo para os ditos filhos ilegítimos, discutir invenções jurídicas para formas não monogânicas de relações afetivas como a “paternidade coletiva”, ou seja, paternidade reconhecida por mais de um homem. Alexandra Kollontai, por exemplo, era uma daquelas que lutavam para que, no comunismo, “o ato sexual seja algo tão simples quanto beber um copo d’água”.
Vale a pena lembrar disso nesse exato momento histórico que é o nosso, no Brasil de 2021. Pois assim, não será surpresa para ninguém que, neste exato momento, o poder fale tanto de sexo. Fale todos os dias, de forma jocosa, sarcástica, ameaçadora, apocalíptica. Fale através de piadas preconceituosas ou de pregações sobre o fim do mundo que estaria a galope através de crianças que “não sabem ler, mas sabem usar camisinha”, como disse o senhor que atualmente ocupa o cargo de ministro da Educação. Ou seja, talvez não seja estranho que ele fale de uma maneira muito similar àquela que os alemães ouviam, na década de trinta do século passado, quando eram exortados a desenvolver aversões contra o que se chamava à época de “bolchevismo sexual” e suas perversões.
Aversões produzidas através de textos que afirmavam, por exemplo: “Nossa mais alta tarefa consistirá em facilitar a formação de uma família aos dois companheiros ligados pela vida. Sua destruição definitiva equivalerá à supressão de toda humanidade superior. Mesmo concedendo à mulher um vasto campo de atividade, nunca deveremos perder de vista que o objetivo último de uma evolução verdadeiramente orgânica e lógica é a formação da família. Ela é a menor unidade mas também a mais importante de toda estrutura do Estado (…) Como o bolchevismo quer aniquilar toda individualidade, ele destrói a família, que imprime ao homem sempre uma marca individual. É por isto que ele detesta todas as aspirações nacionais. Ele quer uniformizar os povos tornando-os dóceis… Mas todas as tentativas de aniquilar a vida pessoal serão reduzidas a nada enquanto restar no coração do homem uma centelha de religião, pois é na religião que sempre se manifesta a liberdade pessoal em relação ao mundo ambiente”.
Esse era um texto do Partido Nazista alemão que concorria à eleição de 1932. Religião, família, liberdade individual, luta contra a homogeneização: tudo isso em nome de uma sexualidade que assuma “lugares naturais”, que não perverta as formas sociais orgânicas da evolução, a lógica do existente, em suma, toda “humanidade superior”. Essa era, como dizia o panfleto, “nossa mais alta tarefa”. No que se via como a luta contra o comunismo era não apenas luta contra uma nova ordem econômica, mas luta contra a potencialidade de uma nova circulação do desejo, que de fato ocorrera nos anos iniciais do período revolucionário. Eram corpos insubmissos que procuravam não apenas circular no espaço social, mas mudar a ordem legal e institucional. A lembrança dessa potencialidade era diuturnamente levantada. Era contra ela que o discurso da luta contra o comunismo era vociferado. Ontem e hoje.
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