domingo, 29 de janeiro de 2017

Esconderijos da verdade

A verdade morreu, viva a não verdade! Assim se diz. Nas monarquias anuncia-se que o rei morreu, viva o rei! Há esperança. A vida é mais. Mas hoje, no reino da verdade, que é mais radical do que todas as monarquias, o que parece é que a morte vence. O rei morreu, viva a morte! — E se não for assim? Se houver nesse necrológio uma cavalar pressa pós-moderna que não nos deixa desconfiar de que a verdade se escondeu e anda suspirando pelas alcovas, sussurrando em versos e trovas, no breu das tocas, anda nas bocas, acendendo velas nos becos, falando alto pelos botecos? Chico Buarque, que é poeta, conhece isso. E se a resposta a “O que será que será?” da sua “À flor da Terra” for: é a verdade?! Se a verdade andar oculta e disfarçando? Porque antes de mais nada ela é uma história, e nela pode muito bem estar escondida, aguardando o tempo. Seria esplendoroso: a verdade morreu, viva a verdade!

Vamos olhar essa história? Ao risco de alguma dureza de linguagem. Se formos em companhia pode ser suave. Uns ajudam os outros. Não dá é para não ir. Essa conversa de pós-verdade se tornou séria. Mexe com a vida. E mexe mal.

Seis séculos antes de Cristo, os grandes pensadores pré-socráticos conceberam a verdade como o próprio mundo se movendo, e a vida com ele. Mar vai, mar vem. Vai e oculta a areia da praia. Vem e a areia aparece. Mostrar e esconder, eis a verdade. Não nos pertence. Pertence ao mundo, e nós com ele. Embolados nas marés. Nadando e tomando caixotes de espuma e areia.

No século V a. C. os magníficos “professores da Grécia”, os sofistas, puseram os pré-socráticos de cabeça para baixo. Ensinaram que não há verdade. Não nos cansemos procurando. Vamos argumentar, convencer. Com o melhor argumento, naturalmente. Como não sabemos qual é o melhor, apresentemos os dois ou três mais prováveis. E ponhamos a audiência para decidir por convencimento. Geremos convicções. Já é muito.

No século IV a. C., Sócrates, Platão, Aristóteles disseram que não. Duas vezes. Não é verdade que não haja verdade. É difícil encontrá-la, mas vale uma vida estar à sua procura. E uma segunda vez: não, convicções não bastam. São necessárias provas. A verdade não é um convencimento, é uma demonstração. Empenha a vida. As provas devem ser lógicas. Os enunciados com pretensão de verdade, os discursos, precisam ser consistentes. Não ter contradições internas. As conclusões devem decorrer rigorosamente das premissas que as antecedem. Se for assim, o enunciado está correto. E, sendo correto, só pode ser verdadeiro. Porque a verdade nunca é, não pode ser, incorreta. — Para eles isso era bastante óbvio. Deixou de ser mais à frente.

Mais à frente é do século I ao XIII d. C., mais ou menos. Aí passou a ser requerida uma verdade adicional: a das coisas elas mesmas. Não bastava a correção dos enunciados. Era preciso que as próprias coisas fossem verdadeiras. Pois, afinal, Deus as criou. E Deus não cria falsidades. Ele não tinha entrado na conversa até aqui. Entrou e mudou tudo. Os caminhos então se bifurcaram. Sto. Agostinho, no século V, procurou dentro de si. Deus habitava lá. O sentido do mundo só podia estar lá. Sto. Tomas, no XIII, olhou para fora. Foi aí que criou sua definição, que colou tanto que passou por ser a única forma da verdade, como se não tivesse antes dela corrido uma longa história. “Adequação das coisas ao intelecto e do intelecto às coisas”. Os séculos seguintes aceitaram e lutaram com essa definição. Nietzsche, no XIX, a odiou. Disse que ela submetia a vida à teologia. Atacou a verdade. Mas não a anulou. Não foi sofista. Reivindicou uma verdade mais alta, a da vontade de potência da vida. Foi uma apoteose. Não prosperou.

No século XX a filosofia estava de língua de fora. Vinte e seis séculos! Vacilou. A ciência entrou e trocou verdade por eficácia, alinhou-se com a tecnologia. E pronto: a verdade morreu.

Morreu? Qual verdade? Talvez a da adequação, a de Sto. Tomás. Mas e a dos pré-socráticos, marés, água e areia? A negação da verdade dos pós-modernos é igual à dos sofistas? (Adianto que não.) A correção do discurso, de Platão e Aristóteles, caducou? Deus saiu de cena? As coisas não possuem mais uma verdade própria? A potência da vida de Nietzsche esfarelou-se? A eficácia pós-moderna é necessariamente pós-verdadeira? — Tudo a verificar. A “pós-verdade” parece uma enorme arrogância anti-histórica. (É verdade que também dizem que a história acabou...)

Muita coisa para pensar. Não são delírios filosóficos. Têm a ver com ir comprar pão e comparecer à urna para votar. Vamos ter de desdobrar essa reflexão por mais umas colunas. Desculpem, mas isso mexe nas nossas vidas. Depois volto à poesia que é também orvalho. Manuel Bandeira sabia. Vamos nos alegrar com leveza. Agora ainda precisamos carregar algumas pedras.

Marcio Tavares D'Amaral

Sinistro

‘Sinto muito, o senhor está morto!’

— Como assim, o que você está falando, estou aqui na sua frente...

— Sim, eu vejo. Mas é por pouco tempo. Se eu fosse o senhor, ia para casa, conversava com os parentes, acertava todas as pendências.

— Que pendências? Só entrei aqui para fazer um seguro, e você me diz que estou morto?

— Não, desculpe, não sou eu quem diz; foi o senhor quem me disse isto quando preencheu a ficha.

— Eu não disse nada! Só falei que moro no Rio.

— Isso. Mora no no Grajaú e trabalha na Barra. Pega a Linha Amarela. Passa na Rocinha. Deve ir a shopping, no fim de semana... tem as joalherias...

— E qual o problema?

— O senhor sabe que a cada ano 59 mil pessoas morrem assassinadas no Brasil? São 29 mortos por cem mil habitantes. Está no Atlas da Violência, do Ipea e do Fórum Brasil de Segurança Pública. Dados de 2014. Ainda não temos os números de 2016. Mas vão ser piores, com esta crise toda.

— Ora, são estatísticas, não quer dizer nada.

— Quer dizer que, em 2014, um de cada 3.436 brasileiros morreu. Cento e sessenta e três por dia. Seis vírgula oito por hora. Imagine, ano após ano contrariando as probabilidades... Uma hora a sorte acaba.

— Não é bem assim. Eu me cuido, Não saio tarde, evito certos lugares. Não me meto em confusão.

— O senhor só não percebe. Quer ver: o senhor tem parentes em Alagoas, não tem?

— Tenho, meus pais ainda moram lá.

— Pois é, o senhor parece boa pessoa, deve visitá-los com frequência...

— Claro, são meus pais.

— Então, isso duplica os riscos. A chance de ser assassinado no Rio é de 32,1 mortes por cem mil moradores. Em Alagoas, chega a 63 mortes por cem mil.

— Tá certo, vou mandar as passagens para meus pais virem me visitar...

— Ajuda. Mas não resolve. O senhor tem também a questão étnica...

Resultado de imagem para A morte e o brasil charge

— Questão étnica?

— Noto que o senhor tem uma certa ascendência africana...

— Eu sou negro, não está vendo?

— Sinto muito. Não é preconceito. Mas, para cada branco morto, morrem 2,4 negros.

— Essa não, você diz isto para aumentar o valor do seguro.

— Desculpe, mas não posso vender este seguro. Qual o seu time?

— Meu time?... Botafogo. O que isto tem a ver?

— Tudo. O Botafogo andou jogando naquele estádio da Ilha do Governador, não foi? Um risco! Imagine, pega a Linha Vermelha, vai se guiando pelo Waze e cai na Maré. Sem volta.

— Você só pode estar brincando; então eu estaria mais seguro se torcesse pelo Flamengo ou pelo Vasco?

— Vasco, não, um perigo! A Cracolândia, bem no seu caminho...

— Quer dizer que não posso fazer um seguro?

— Lamento, realmente, sinto muito: o senhor está morto!

— ...

— Ah, mas se a sua senhora quiser, temos um bom pacote de auxílio funeral.

Luiz Claudio Latgé

Paisagem brasileira

Paisagem rural, Ribeiro de Sá

Prepotência de Eike servia à corrupção

Em junho de 2011, o empresário Eike Batista admitiu que emprestara o seu jatinho Legacy ao governador Sérgio Cabral para que ele chegasse a um resort da Bahia para a festa de aniversário do seu amigo Fernando Cavendish, dono da empreiteira Delta.

Interpelado sobre a eventual impropriedade do mimo, Eike vestiu o manto de homem mais rico do Brasil, oitavo do mundo, e respondeu:

"Tive satisfação em ter colocado meu avião à disposição do governador Sérgio Cabral, que vem realizando seu trabalho com grande competência e determinação. Sou livre para selecionar minhas amizades, contribuir para campanhas políticas, trazer a Olimpíada para o Rio (...) e auxiliar a realização de diversos projetos sociais e culturais do Estado".

Batista exercitava a superioridade dos poderosos. Ele sabia a natureza de suas relações com o governador e tinha certeza de que esse segredo jamais seria rompido.

Entre 2009 e 2011 o casal Cabral voara 13 vezes nas asas de Eike, mas isso era apenas um aperitivo. Ele deslizara US$ 16,5 milhões para os bolsos de Cabral, sempre "com grande competência e determinação".

A sabedoria convencional leva as pessoas a acreditar que empresários muito ricos são também muito inteligentes. Os casos de Eike e de Marcelo Odebrecht mostram que às vezes a prepotência lhes embaça o raciocínio.

Eike não precisava ter assumido um tom principesco ao tratar do empréstimo do avião.

Da mesma forma, em 2014, ao ser incriminado na Lava Jato, Odebrecht deu uma lição de moral à imprensa: "A euforia de se publicar notícias de impacto em período eleitoral extrapolou o razoável. (...) Neste cenário nada democrático, fala-se o que se quer, sem as devidas comprovações, e alguns veículos da mídia acabam por apoiar o vazamento de informação protegida por lei, tratando como verdadeira a eventual denúncia vazia de um criminoso confesso e que é 'premiado' por denunciar a maior quantidade possível de empresas e pessoas".

Tanto no caso de Eike como no de Odebrecht, as suspeitas de 2011 e 2014 revelaram-se conversas de freiras. A verdade ia muito além. Para glória da Viúva, Marcelo Odebrecht e seus 77 executivos tornaram-se "criminosos confessos". Eike irá pelo mesmo caminho.

Deploráveis sinais de barbárie ao sul do Equador

Os massacres nos presídios vêm expondo a barbárie de gangues que usam armas rudimentares para o assassinato, seguido de degola das vítimas ou mesmo esquartejamento, e exibem seus atos em redes sociais. A grande mídia não apresenta as imagens, mas cópias são disputadas no comércio ambulante de grandes cidades porque há segmentos sociais que curtem esse tipo de expressão da maldade humana.

Outros crimes bárbaros ocorrem diariamente no Brasil, como estupro de bebês, execução sumária de delinquentes, perseguição implacável a famílias de adversários, latrocínio de idosos na área rural e esfaqueamento de parentes ou amigos por motivos fúteis. O elenco de atrocidades é inesgotável em todas as classes sociais, mas identificam-se, na maioria dos casos, o desespero pela miséria, a ignorância, a solidão, o abandono de vulneráveis e a ausência de instituições para assegurar integridade física, conforto emocional e bem-estar social de cada cidadão.
"Somos uma nação e uma sociedade violenta, não, violentíssima para ser mais exato. O estereótipo de somos historicamente um povo nascido e criados em um berço de esplendor na qual a índole brasileira se formou pela miscigenação adorável e amável na qual as raças aqui se encontraram é uma falácia dolorosa desmentida todos os dias no cotidiano pelos atos de barbárie que assolam a nossa sociedade.":

Esse quadro mostra que o país não atingiu a modernidade, pois outros indicadores são ainda mais taxativos quanto ao atraso, escancarando as deploráveis condições em que vivemos: infraestrutura obsoleta, problemas sanitários, dificuldades para mobilidade espacial, ineficiente sistema educacional, acomodação em favelas, desemprego e subemprego de diferentes faixas etárias, crianças abandonadas, idosos desamparados, alta taxa de mortalidade materna, precária assistência médica e insignificante segmento com instrução adequada para o mundo pós-industrial.

Há inexplicável aceitação dos brasileiros, que não se mobilizam para viver com o conforto obtido em diferentes países, mesmo na América do Sul. Essa atitude decorre, talvez, do individualismo que molda nosso caráter: desde que os problemas pessoais estejam resolvidos, não nos preocupamos com o coletivo. Isso se alia ao sentimento de deixar tudo nas mãos de Deus, que controla os destinos de cada um. Evidencia ainda outro viés que perpassa nossa conduta e é, infelizmente, mais difícil de superar, porque implica interesses mais amplos e profundos.

Trata-se de um silencioso pacto entre eleitores e políticos para troca de favores pessoais, estabelecendo larga distância dos interesses nacionais e alimentando as tramas da corrupção. Ele decorre do fatiamento do orçamento público para que os parlamentares atendam os interesses paroquiais e, consequentemente, seus eleitores de cabresto sem vinculação com um grande projeto nacional. Ele permitiria alcançar a indispensável racionalidade administrativa para a formulação de um plano de transformação na infraestrutura e nas relações sociais que encaminhasse o desenvolvimento socioeconômico em todo o país e, consequentemente, a modernização em benefício de todos os brasileiros.

Mesmo assim, ninguém propõe uma mudança radical na práxis política, que é a face mais deplorável do mandonismo, do clientelismo e da dependência perpétua dos eleitores em relação aos caciques regionais.

Gilda de Castro

Vergonha de todos


Mass Media At Work:
Tenho um pouco de medo quando os meios de comunicação não podem se expressar com a ética que lhes é própria
Papa Francisco

O imponderável

Um dos maiores e mais antigo desejo dos seres humanos é adivinhar o futuro.

Neste sentido, os egípcios, 3.500 a.C, jogavam dados – a cleromancia – para desvendar os tempos vindouros.

Em todas as civilizações, há registro de métodos e tentativas de decifrar o enigma que escapa da compreensão humana. A luminosa civilização grega cultuava Pítia ou Pitonisa (serpente) que, segundo a mitologia, era a sacerdotisa do oráculo de Delfos, frequentemente, visitada por celebridades e cidadãos comuns para ouvir conselhos.

Joe Webb  crea una serie de collages que permiten al espectador un diálogo con otras épocas y galaxias. Personajes de Webb también se mueven de un siglo a otro con las mezclas y proyecciones de la artista. El trabajo de Webb es el resultado de el tiempo que trabajó como diseñador gráfico. Joe dice como las limitaciones y variaciones de imágenes que se pueden crear collages.:
Joe Webb
Com efeito, as prospecções futuristas seguem atuais: a leitura das linhas das mãos, a escuta de búzios, o significado dos astros e os mais variados recursos (passo ao largo da visão religiosa do profetismo).

Por outro lado, uma abordagem científica – a futurologia – oferece aos seus discípulos, no máximo, cenários ou eventos possíveis, prováveis e desejáveis.

Na transição dos anos, é muito comum o exercício de cenarização por parte dos cientistas sociais, particularmente politólogos e economistas, em relação ao ano que inicia, no caso, o que se espera para o Brasil em 2017.

Por prudência, cabe a seguinte ressalva: na atualidade, o ritmo vertiginoso das transformações consagra a mudança como uma regra e, por consequência, agrava a nossa angústia existencial diante da “modernidade líquida”, belíssima definição do recém-falecido pensador polonês Zygmunt Baumann. Belo e simples conceito para qualificar a era da incerteza que exibe uma profunda crise da razão.

Neste quadro, que prospecção se pode fazer em relação ao Brasil? 2016 terminou melhor do que começou.

A despeito do elevado nível do desemprego e recessão de 7% do PIB (2015 e 2016), alguns sinais apontam para uma recuperação lenta e gradual da economia: a limitação constitucional dos gastos possibilita um ajuste fiscal de médio e longo prazo; a inflação de 6,29% (IPCA) caminha em direção da meta; a redução da Selic em 0,75% indica um provável ciclo de redução da taxa de juros e, ocorrendo, estabiliza a trajetória Divida/PIB, hoje em 70%; o crescimento expressivo da exportação de manufaturados e semimanufaturados e de 15,3% do setor agropecuário (safra 2016/17) produz o efeito acelerador/multiplicador da economia.

Subitamente, o imponderável – a morte trágica do Ministro Teori Zavascki – “uma trapaça da sorte”, na feliz expressão do Ministro Luís Roberto Barroso, joga um penumbra sobre o futuro do Brasil. Que seja, apenas, uma penumbra e que a trapaça pare por aí.

Empresário de estimação

Em março de 2010, o ranking de bilionários da revista Forbes anunciava um feito extraordinário: Eike Batista subira 53 posições em apenas um ano, tornando-se o oitavo homem mais rico do mundo. Um vencedor, um exemplo - “nosso padrão, nossa expectativa, o orgulho do Brasil”, segundo a ex-presidente Dilma Rousseff.

O então megaempresário, que já criara constrangimentos ao petismo – além de dívidas impagáveis que todos os brasileiros já estão pagando -, quebrou um ano depois dos elogios de Dilma. Agora, diante de um mandado de prisão, é uma bomba que pode detonar a qualquer momento. Daquelas que o alto comando petista preferia ver protegida pela cidadania alemã de Eike.

Assim como tudo que se refere a Eike, a história de sua prisão também é megalômana, digna de best-sellers. Envolve política e corrupção, milhares de dólares, ouro, fuga, dupla nacionalidade, Interpol.

Alvo da operação Eficiência da Polícia Federal, Eike foi delatado por dois doleiros aos procuradores da Lava-Jato, no Rio de Janeiro. Apurou-se que ele pagou US$ 16,5 milhões de propina ao ex-governador Sérgio Cabral, hoje na penitenciária de Bangu. A transação teria sido feita em 2011, por meio de uma triangulação entre bancos do Panamá e do Uruguai, maquiada por um contrato de venda de uma mina de ouro.

Dois dias antes de o mandado de prisão ser expedido, Eike embarcou para os Estados Unidos – a negócios, segundo seus advogados – usando seu passaporte alemão. Simplesmente espetacular.

Como se sabe, Eike não está só.


Trazê-lo à tona pode fazer com que a Lava-Jato encaixe mais peças no sofisticado quebra-cabeça que tem revelado a institucionalização da corrupção no país desde as primeiras incursões do mensalão, vista hoje como um ensaio de amadores.

As palavras dele podem corroborar com informações coletadas em arquivos e delações de dirigentes de outras empresas pagadoras de propinas. Dinheiro farto para engordar campanhas eleitorais, assegurar maioria parlamentar, rechear bolsos, garantir conforto e delícias de inescrupulosos.

Mesmo que Eike nada fale, só a expedição do mandado de prisão escancara a criminosa associação da corrupção com a política de campeões nacionais, cuja conta, estima-se, supera R$ 200 bilhões, só no BNDES.

Dinheiro que garantiu o posto de homem mais rico do Brasil para Eike e fez a fortuna de escolhidos de Lula e Dilma. Dinheiro que não financiou milhares de empreendedores capazes de amenizar a crise e o desemprego. Dinheiro que está sendo pago por todos os brasileiros.

A lista dos amigos campeões não é extensa. São empresas frequentes no rol de escândalos ou de grandes devedores. Ou nos dois.

Nela, incluem-se empréstimos à criminosa confessa Odebrecht, à Friboi, enrolada com o José Carlos Bumlai, amigo de Lula, à Fibria e à Lactos Brasil. Também está a falida megaoperadora de telefonia Oi, que manteve negócios suspeitos com a Gamecorp de Fábio Luís, filho de Lula. E instalou uma estação de rádio base (Erb), antena exclusiva próxima ao sítio de Atibaia que Lula garante que não é dele, mas que, como no lobo da história infantil, tem olhos, focinho e boca que remetem ao ex.

Eike conseguiu torrar R$ 20 bilhões do BNDES.

Cinco meses depois de frequentar pela primeira vez o top ten da Forbes, o empresário de estimação do PT, a quem Lula conferiu privilégios de interlocução antes mesmo de fazer o seu primeiro discurso na ONU, arrematou em um leilão beneficente o terno que o ex usou na posse, em 2003. Pagou R$ 500 mil.

Queria moldar a imagem de empresário do bem. E, assim como Lula, usou o chapéu alheio.

Lava Jato pode consagrar ou arruinar Supremo

Confrontados com o descalabro exposto nos depoimentos dos 77 delatores da Odebrecht, os ministros do Supremo Tribunal Federal deveriam esquecer a Constituição e o Código Penal por um instante, para se concentrar num conto de Ernest Hemingway. Chama-se ‘As Neves do Kilimanjaro’. Começa com um esclarecimento:

“Kilimanjaro é uma montanha coberta de neve, a 6 mil metros de altitude, e diz-se que é a montanha mais alta da África”, anotou Hemingway. “O seu pico ocidental chama-se ‘Ngàge Ngài’, a Casa de Deus. Junto a este pico encontra-se a carcaça de um leopardo. Ninguém ainda conseguiu explicar o que procurava o leopardo naquela altitude.”

O leopardo do conto serve de metáfora para muita coisa. Tanto pode simbolizar a busca romântica pelo inalcansável como pode representar o espírito de aventura levado às fronteiras do paroxismo.


O Supremo, como se sabe, é o cume da Justiça brasileira. Seus ministros acham que estão sentados à mão direita de Deus. Num instante em que a deduragem dos corruptores confessos da Odebrecht empurra mais de uma centena de encrencados na Lava Jato para dentro dos escaninhos da Suprema Corte, cabe aos ministros interrogar os seus botões: o que fazem tantos gatunos da política no ponto mais alto do Poder Judiciário?

Num país marcado pela corrupção desenfreada, os gatunos da Lava Jato beneficados com o chamado foro privilegiado simbolizam o sentimento de impunidade cultivado pela oligarquia política. Que pode virar instituto suicida se o Supremo for capaz de dar uma resposta à altura do desafio.

Um bom começo seria a ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo, homologar até terça-feira (31) todos os acordos de delação. Isso liberaria a força-tarefa da Lava Jato para abrir os inquéritos que transformarão indícios em provas.

De resto, será necessário que o ministro sorteado para substituir Teori Zavascki na relatoria da Lava Jato se convença da importância do seu papel. Seja o seco Celso de Mello, o melífluo Ricardo Lewandowski ou qualquer outro, o novo relator precisa entender que a conjuntura cobra do STF um rigor compatível com a desfaçatez.

No futuro, quando os arqueólogos forem escavar esse pedaço da história nacional, encontrarão sob os escombros de um Brasil remoto carcaças que serão tão inexplicáveis quanto a do leopardo de Hemingway. Resta saber se serão as carcaças de gatunos suicidas ou de magistrados que não se deram ao respeito. A Lava Jato pode consagrar ou arruinar o Supremo.

Em cidade protegida pela Constituição

Em resposta à crise das penitenciárias, erra o governo, em parte, como erraram os governos anteriores e os estaduais. É que o lugar do problema não está no presídio nem na fronteira. Está distribuído no território urbano brasileiro.
Acerta o governo, em parte, ao tratar o tema como questão nacional. Mas ela não se resolverá com planos de segurança. Como nos diz a experiência, eles são importantes, mas parciais.

Há 40 anos o Brasil tinha metade da população e um terço dos domicílios. Embora tenha sido espetacular o esforço brasileiro ao consolidar nesse período um sistema urbano com 5.500 cidades, 20 metrópoles e duas megacidades, de fato, nossas cidades apresentam extensas áreas sem urbanização e escassez de serviços públicos. Produzimos edificações de alta qualidade, mas a precariedade e a irregularidade são majoritárias no parque imobiliário nacional. Demos ênfase ao específico e deixamos à margem o genérico.


Os governos não acompanharam o crescimento das cidades. Desassistidos, bairros e regiões urbanas ficavam pouco a pouco sob domínio territorial de traficantes, que expandiam seus negócios apoiados em armas cada vez mais potentes.

Outras organizações criminosas, sem a droga como base, também se estruturaram territorialmente. Ambos os modelos têm lucros controlando ampla rede comercial que inclui o transporte alternativo, a distribuição de gás engarrafado, o mercado imobiliário, extrapolando para o embricamento no sistema político.

É no domínio territorial que reside a força da bandidagem, como visto esta semana na Cidade Alta e em Irajá, no Rio; e também no DF, em Salvador, em Natal, entre outras metrópoles. Desse domínio resultam a violência e a mortandade, de centenas de pessoas nos presídios e de dezenas de milhares nas ruas de nossas cidades.

O lugar do problema, portanto, é a ausência de Estado em partes significativas do território nacional. O seu encaminhamento depende de uma questão ético-política fundamental: o reconhecimento do direito de todo cidadão brasileiro de viver em cidade integralmente protegida pela Constituição.

A presença do Estado não é retórica. Significa prestação dos serviços públicos, inclusive o de segurança, regularização da propriedade, controle urbanístico e edilício. Há que ter lei do Estado, não da gangue, como em Ipanema, nos Jardins ou no Corredor da Vitória — local do caso La Vue, do ex-ministro. É além de escola e de hospitais. Na ausência, bairros pobres e favelas continuarão dominadas pelo “poder paralelo” e como cidadela de facções e milícias.

Mas, se historicamente o Estado está fora, como poderá de imediato estar dentro?

A cidade brasileira é um ativo fundamental ao desenvolvimento social e econômico. Há de ser planejada, ordenada, cuidada com estruturas funcionais permanentes pelo poder local. A discricionariedade dos governantes, com seus projetos de ocasião, precisa ser substituída por políticas públicas de médio e longo prazos onde a redução da desigualdade intraurbana seja o cerne. Também o âmbito federal tem grandes responsabilidades. Seus programas e políticas têm que ser consequentes, com conceitos e objetivos claros. É preciso que o Ministério das Cidades diga a que veio.

Veja-se a habitação. Mesmo com o alto déficit ambiental e sanitário das cidades, a urbanização de loteamentos e favelas foi abandonada, apesar de importante experiência na década de 1990. Os investimentos federais priorizaram a construção de conjuntos residenciais, em geral, tal como na ditadura, segregados da cidade e segregadores das populações pobres — logo tomados pela bandidagem. Ao invés de servirem de libertação, serviram à dominação.

Se o destino é de país desenvolvido, precisamos mudar o rumo. Planos nacionais de segurança, sim, são importantes; e há uma emergência. Mas sozinhos não serão efetivos. É preciso política nacional de recuperação de todo o território nacional para o domínio da Constituição — uma política de cidadania.

O país pede estruturas permanentes e competentes que tratem o urbano como função de Estado.

Sérgio Magalhães

Imagem do Dia


visitheworld: Lake O’Hara, Yoho NP / Canada (by Sergio Rymar).:
Lago O'Hara (Canadá)

Governos não são para gestores

O que há em comum entre Dilma, Trump e Doria? Além do fato de serem outsiders, todos esses personagens se apresentaram aos eleitores com a imagem de bons gestores.

No primeiro caso, Dilma foi apresentada como uma “burocrata competente”, ou seja, alguém com experiência na administração pública e, portanto, com uma visão mais técnica do que política. Trump e Doria exploraram a imagem do “homem de negócios”, “alguém que governará com a mesma eficiência e buscando os mesmos resultados alcançados na esfera privada”. Enquanto a primeira foi beneficiada por um ilusório bom momento econômico, os outros dois se beneficiaram da rejeição dos eleitores aos “políticos profissionais”.


Ocorre que a civilização ocidental atribuiu à política — para o bem ou para o mal — uma lógica própria. Mesmo sendo discípulo de Platão, Aristóteles definiu a atividade política como a administração da pólis, realizada por cidadãos virtuosos, ao invés do rei-filósofo. Sim, para Aristóteles, o homem era por natureza um animal político, mas o mesmo, tal como Montesquieu, definia a melhor forma de governo como aquela capaz de conjugar democracia e aristocracia, cabendo a esta última a tarefa de separar aquilo que seria a boa legislação daquilo que seriam as “paixões momentâneas”. Mutatis mutandis, a tarefa de legislar seria incumbência de uma pequena elite política.

As virtudes públicas preconizadas pelos gregos foram, mais tarde, transformadas em virtu (astúcia) por Maquiavel. A este coube demonstrar que a política possuía uma lógica peculiar e demandava do príncipe uma habilidade própria para a manutenção do seu reinado. Nesta mesma linha de raciocínio, Max Weber no século XX diferenciaria a ética da convicção da ética da responsabilidade ao afirmar que, quanto maior a inserção do indivíduo na esfera política, mais intensa é a substituição de suas convicções pessoais pelas responsabilidades impostas pelo cargo.

Com o insulamento próprio dos burocratas, a ex-presidente Dilma negou a tarefa de conviver com o dia a dia da negociação política com o Congresso Nacional e foi incapaz de operar, no campo econômico, a transição entre convicção e responsabilidade. Trump fez uma campanha xenófoba e, uma vez eleito, tenta, tal qual o Super-Homem, fazer com que a Terra se mova no sentido contrário. Já Doria cometeu a primeira gafe antes mesmo de tomar posse ao afirmar que doaria seu primeiro salário para uma entidade que cuida de “crianças defeituosas”, conceito que causa náusea ao mais empedernido crítico do politicamente correto.

Por mais salutar que seja a incorporação de métodos da gestão privada nos órgãos públicos, a política está no berço da civilização ocidental e apenas os políticos mais profissionais são capazes de sustentar a imagem do não insider.

Gustavo Müller 

Resistir é preciso

Resistir é preciso. Foi essa a mensagem da Marcha das Mulheres, uma inédita manifestação, simultânea em cinco continentes, contra a brutalidade com que o novo presidente dos Estados Unidos insiste em humilhá-las. E não só a elas.

Trump mal saíra do seu baile estilo anos 50, e as mulheres do século XXI já estavam nas ruas anunciando que vão enguiçar esse trator, movido a atraso e ódio, que ameaça esmagar seus direitos duramente conquistados. Madonna pegou o microfone e avisou: “Lutamos pela liberdade de sermos o que somos e de sermos iguais. Vamos manifestar juntos porque assim, a cada passo da travessia dessa escuridão, dessa era da tirania que é o governo Trump, não teremos medo”.


A Marcha das Mulheres que se espalhou por centenas de cidades americanas e do mundo foi uma irrupção do inesperado. Pelo seu imenso porte, uma surpresa, até mesmo para quem a convocou. E uma aula de democracia contemporânea, do modo de fazer política em tempos de internet e globalização, quando cada um decide em seu foro íntimo que luta quer lutar e joga no mundo sua convocatória. Uma advogada aposentada criou um perfil no Facebook convocando à marcha. Recebeu uma avalanche de adesões. A indignação individual floresceu em ação coletiva.

Vai ser um duro enfrentamento. Afinal, as mulheres são persistentes. Vêm quebrando um paradigma milenar que lhes negava o reconhecimento de sua plena humanidade. Conquistaram direitos de que não estão dispostas a abrir mão e forjaram uma ideia clara do seu lugar no mundo contemporâneo. Espalhadas em todos os continentes, estão em todas as casas, são mães de família, profissionais, cientistas, juízas, celebridades, anônimas. De todas as cores, idades e nacionalidades. São metade da humanidade. O homem mais poderoso da Terra, que exprime um genuíno desprezo por elas, não contava com um adversário dessa envergadura, saindo de cada porta. Seu arsenal nuclear, seus agentes da CIA podem pouco contra elas, que mostram a cara e dizem nas ruas sua indignação. As mulheres em movimento são como a floresta que assombrou Macbeth.

Elas sabem por que o conservadorismo as tem na mira. Um dos ingredientes principais desse veneno é o inconformismo com a perda da supremacia dos homens nas famílias e nos múltiplos espaços da sociedade trazida pela emancipação das mulheres. Sentindo o chão fugir debaixo dos pés, os Trumps da vida querem ressuscitar um mundo em agonia. São eles que se sentem mais atingidos e roubados em suas prerrogativas de autoridade, justamente esses que se habituaram a ter nelas o par perfeito, as bonecas para dançar “My way”, elas que não faziam caminho nenhum, que não iam a parte alguma.

Como conviver agora com mulheres que sabem o que querem e o que não querem, falam com voz própria, afirmam o direito sobre seu próprio corpo e desejo, que levam à prisão espancadores e estupradores? E ainda ousam se candidatar à Presidência dos Estados Unidos! Tudo isso vira de pernas para o ar o mundo em que esses homens estavam instalados, como um direito natural, imutável. A reação vem amadurecendo há muito tempo e se personificou agora, de forma caricatural no presidente recém-eleito dos Estados Unidos. Faz parte da caricatura acreditar que piadas obscenas, gestos agressivos, insultos e ameaças intimidariam e calariam as mulheres. Mas as ruas se coloriram no primeiro grande gesto de resistência a esses tempos de trevas. As mulheres foram as primeiras a protestar defendendo seus direitos e o de todos os que foram agredidos, em nome da civilização por quem se sentem responsáveis e que querem construir com direitos humanos, liberdades individuais e equilíbrio do planeta. Arrastaram multidões.

Fica um alerta: no Brasil também estamos em risco. Uma assustadora onda conservadora, inconformada com o avanço das liberdades, ameaça fazer a História retroceder. No apodrecido Congresso Nacional, um amálgama de fanatismo religioso, bancada da bala e parlamentares de extrema-direita aproveita o campo de ruínas em que se transformou o sistema político para tentar reverter os direitos conquistados nas ultimas décadas por mulheres e gays, para coibir o avanço da ciência e difundir nas escolas teorias criacionistas.

Não se minimize o perigo dessa aliança sombria. Humanistas que somos, temos o mau hábito de não acreditar em catástrofes. Poucos acreditaram no pesadelo Trump. Quem quer acordar no pesadelo que seria o triunfo dessa aliança? Antes que esse fantasma se materialize, é provável que tenhamos, nós também, que sair às ruas. Resistir é preciso.

Rosiska Darcy de Oliveira 

A era das carroças

Em muitas cidades a prefeitura comemora quando consegue recapear algumas ruas, entre tantas esburacadas ou já esfarelentas. “Já” esfarelentas, não: ainda e desde muito tempo esfarelando, com a vida útil do asfalto vencida, as pedras entupindo bueiros e causando enchentes, toda a rua “em processo de rápida deterioração”, como diria um técnico, sabendo que sua advertência não será como nunca foi levada a sério pelos governantes.

Afinal, dirão eles, o problema é herdado de governos anteriores, que não fizeram a devida manutenção, o asfalto envelhecendo mal sem cuidados nem consertos, além de mal feito pela corrupção ou pela incompetência sem fiscalização.
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Henry Chamberlain. A sege e a cadeira (1822)
Enquanto isso, começamos a acordar que o Estado – das prefeituras à presidência da República – não é pai do povo, é seu filho e deve ser vigiado. Quem trabalha sustenta o Estado, recebendo serviços públicos de filho ingrato.

Recape, por exemplo, recupera mas não melhora rua, que apenas volta a ser a velha rua para trânsito sempre crescente, com transporte público sempre precário. Até que muitas ruas voltem a ser, como nos mapas antigos, apenas “vias carroçáveis”, onde só carroças conseguirão transitar.

Não, não as carroças do Collor, movidas a cavalos-vapor; mas carroças com cavalo e carroceiro, que a cidade foi enxotando para a periferia mas, enfim, voltarão vitoriosas. Passarão pelos buracos e destroços levando jardineiros, vendedores de víveres, disquentregas e até roça-táxis.

Caminharemos – ou trotaremos – para a Era da Carroça.

O prefeito será um carroceiro com mestrado em Oxfordê.

A toda poderosa ABC, Associação Brasileira dos Carroceiros, bancará candidato à presidência da República por uma coligação-carroção de muitos partidos.

Aquele Rolls-Royce da Presidência será trocado por uma carruagem de museu com cavalaria das Forças Armadas.

A AIC, Associação Internacional da Carroagem, arrebatará a diretoria da Fifa, da Onu e, de quebra, do FMI.

A indústria automobilística lançará carroçarros, carroças movidas a motor, nos bairros ricos ou rebeldes com asfalto, e movidas a cavalo nos bairros pobres ou resignados. Estacionamentos terão baias para cavalos, e o quadro de maior sucesso na tevê será A Carroça da Sorte, com um carroção distribuindo prêmios pelo país.

E as pessoas passarão a nascer aC ou dC, antes ou depois da Era das Carroças.

A Seleção ganhará a Copa, e o time desfilará no Carroção dos Bombeiros.

Isto, claro, se antes não acharem um jeito de recuperar não só algumas, mas todas nossas ruas.

Domingos Pellegrini